Enquanto a URSS existiu, o PCP foi sempre um partido cúmplice de Moscovo. Apoiou a repressão na Hungria em 1956 e em Praga em 1968 e o seu colaboracionismo é comprovado, entre outros factos, pela entrevista de Cunhal a Fallaci, pela ação pró-MPLA de Rosa Coutinho em Angola e pela revelação de um ex-general da KGB sobre o papel do PCP no desvio de arquivos da PIDE para Moscovo. O que custa a entender é que o alinhamento subsista mesmo depois da implosão da URSS e da adoção pela Rússia de um sistema capitalista de tipo oligarca.
Sobre esta aparente incoerência, recordo o curto tempo em que vivi na República Democrática Alemã (RDA), em 1985, onde procurei um tratamento médico experimental para a doença de que então padecia. Curiosamente, foi a conselho de um médico de Chicago que recorri ao Hospital Universitário de Rostock, uma cidade báltica onde decorria o projeto a cargo de um nefrologista de reputação internacional.
A minha permanência na cidade constituiu uma experiência inolvidável. Ao contrário do que era publicitado pela propaganda comunista, o contraste do Leste com a República Federal Alemã eraimpressionante. Para lá do Muro, as infraestruturas estavam em ruínas, a população ansiava por bens inexistentes, o mercado negro fora legalizado através de lojas francas em que o regime recolhia divisas e a televisão ocidental entrava em cada casa, desmentindo as versões oficiais. Por tudo isto, o poder comunista na RDA vivia em sobressalto e a presença de informadores era descarada, o que incutia o receio de represálias. E, claro, ninguém acreditava que o muro fosse uma medida de proteção.
A presença na cidade de um improvável estrangeiro que falava alemão despertou curiosidade e, numa noite, fui convidado pelo médico para um sarau, onde se reuniram algumas das elites locais. Depois de ouvirmos Bach entre paredes juncadas de porcelana de Meissen e forradas com uma biblioteca extravagante, o filtro do medo vazado pelo champanhe da Crimeia levou a que acabássemos a falar da URSS, onde, dias antes, Gorbachov chegara à liderança.
Era indesmentível que aquela elite não apreciava o ocupante soviético ou os seus costumes bárbaros. Ninguém antecipava a glasnost, mas não havia entusiasmo na nova liderança da URSS, que uns viam como ‘mais do mesmo’ e outros temiam que redundasse num regresso às políticas ‘aventureiras de Khrushchov.
Quando fiz uma pergunta sobre a relação com os amigos russos, alguém explicou que não eram amigos. Se o fossem, seriam dispensáveis. Eram família, um laço do qual ninguém se pode libertar. Não ouvi elogios ao comunismo mas, sim, a admissão de que essa relação incestuosa lhes garantia ordem e estabilidade e os defendia dos desvarios da liberdade do temido Ocidente. São esses alemães do Leste, e muitos dos seus filhos, que ou permanecem comunistas ou engrossam as fileiras da extrema-direita. Em ambos os casos, são saudosistas.
A génese da russofilia do PCP tem a mesma raiz: a saudade da autoridade por contraponto à liberdade individual, a que não é alheio o facto de Putin ter dirigido o KGB na RDA. Recordar Rostock faz-me compreender que o PCP pode não gostar do modelo económico da Rússia e ter ficado órfão da URSS quando esta perdeu a Guerra Fria, mas vê em Moscovo e na sua ambição imperial a única forma de afrontar o Ocidente.