A arte de dirigir

Depois de uma importante remodelação ministerial, Cavaco Silva convidou-me a ir a S. Bento e propôs-me um ‘acordo’: ele contar-me-ia tudo e eu respeitaria o que ele dissesse. Aceitei.

Na apresentação do seu livro A Arte de Governar, Cavaco Silva disse que um dos momentos mais difíceis para os primeiros-ministros são as remodelações ministeriais. Lembrei-me imediatamente da remodelação de 1990, a mais importante dos dez anos do cavaquismo, quando saiu do Governo o seu amigo Eurico de Melo. Essa remodelação apanhou o país totalmente de surpresa e foi amplamente comentada.

Na altura, eu era diretor do semanário Expresso.

No dia seguinte, Cavaco convidou-me a ir a S. Bento.

Recebeu-me na sua zona privada e sentámo-nos os dois a uma pequena mesa-redonda.

Sem rodeios, disse-me:

  • Vou propor-lhe um acordo. Eu conto-lhe só a si como foi feita a remodelação, não lhe escondo nada, e o senhor compromete-se a escrever o que eu lhe disser. Aceita?

Eu já tinha estado várias vezes com Cavaco Silva e sabia que podia confiar no que ele me dissesse.

Por isso, respondi-lhe imediatamente que sim.

Tinha em mãos um grande furo jornalístico.

Cavaco falou aí durante meia hora, contando-me com pormenor como as coisas se tinham passado.

Fora para S. Bento só com uma secretária, e fechara-se lá durante o fim de semana.

Ela ia localizando as pessoas a convidar para ministros – e, estabelecida a ligação, Cavaco ia ao telefone e perguntava-lhes apenas uma coisa: se estavam disponíveis para fazer parte do Governo.

Se dissessem que não, a conversa acabava ali; se fosse um sim, ficavam em stand by.

Completados os contactos, quando sabia as pessoas com quem podia contar, Cavaco dizia a cada um a pasta que lhe estava destinada.

Foi este o método seguido.

Só estando envolvidos no processo ele e a secretária, não havia qualquer perigo de uma fuga de informação. E como só no fim dizia a cada convidado a pasta que lhe estava destinada, se ele recusasse nunca saberia para que Ministério iria; e nenhum dos convidados (nem ninguém) poderia saber se era uma primeira ou segunda escolha.

Feitas assim, as remodelações levadas a cabo por Cavaco Silva foram exemplares: apanharam o país de surpresa, não transpirou nada antes, não houve especulação depois.

Mas a história daquela remodelação, para mim, não acabou ali. Chegado à redação do jornal, vários jornalistas disseram-me – como era natural – que tinham informações sobre o assunto.

Nestas alturas, há sempre grande agitação nas redações.

Anotei o que os jornalistas me diziam (que muitas vezes estava em contradição com o que ouvira de Cavaco), sem lhes dizer, obviamente, com quem tinha estado.

Escrevi a notícia sozinho, respeitando o compromisso assumido com o primeiro-ministro, com uma única exceção.

O jornalista Benjamim Formigo, que nem era da área da política, garantiu-me como absolutamente fidedigna uma informação que tinha, envolvendo o Ministério da Defesa.

Ele relacionava-se bem com alguns militares, e decidi incluir esse pormenor; era também um modo de aproveitar, embora minimamente, o contributo dos jornalistas da casa.

A notícia que escrevi sobre a remodelação era extensa, e aquela informação ocupava apenas meia dúzia de linhas.

Pois, na segunda-feira seguinte à saída do jornal, recebi um cartão de Cavaco Silva dizendo que estava tudo correto – exceto as tais seis linhas que, segundo ele, eram «mentira»!

Não lhe escapou nada…

Sobre a arte de governar, ainda há alguma coisa a acrescentar. Em 2003 publiquei um livro chamado Confissões de Um Diretor de Jornal, onde contava episódios relevantes ocorridos no Expresso e descrevia o modo como tomava decisões (em geral, em contradição com a maioria dos jornalistas).E explicava porquê: as decisões estratégicas precisam de ter ‘rasgo’, e as maiorias exprimem uma certa mediania. Seguir sempre a opinião da maioria é fatal para um líder, seja em que área for.

É fundamental pensar diferente e conseguir surpreender.

Ora, um tempo depois, recebi um cartão de Cavaco Silva onde fazia referências simpáticas ao livro, destacava esse capítulo do funcionamento interno do jornal, e concluía: «Verifico que há bastantes semelhanças entre a direção de um jornal e a chefia de um Governo».

Confesso que não estranhei.

É que eu já tinha constatado que, entre a minha forma de agir e a de Cavaco Silva, e mesmo numa certa postura institucional, havia vários pontos em comum.

Mário Soares, aliás, percebeu isso.

E um dia disse a Balsemão, à minha frente: «O Saraiva não gosta de políticos como nós. Gosta é de caras de pau como o Eanes e o Cavaco».