Li recentemente A Grande Mudança, de Stephen Greenblatt, e Pompeia, de Robert Harris, livros que não são recentes, mas cuja qualidade justifica a sua leitura em qualquer momento. Pertencentes a géneros literários distintos – o primeiro recebeu o Prémio Pulitzer de Não Ficção Geral em 2012; o segundo é um romance –, menciono-os em conjunto não apenas porque ambos se baseiam em eventos históricos reais, mas também porque as suas narrativas se sobrepõem parcialmente.
A trama de Pompeia entrelaça a ficção com a erupção do Vesúvio de 24 de agosto de 79 d.C. e inclui entre as suas personagens figuras como o naturalista Plínio, o Velho. Com a eminente destruição de Pompeia e Herculano como cenário, este thriller oferece uma descrição vívida do que poderão ter sido as últimas horas da Villa dos Papiros, antes de ser soterrada por cinzas vulcânicas. Assim permaneceu até 1750, ano do início das escavações arqueológicas que revelaram a sua biblioteca, a maior da Antiguidade que chegou até nós. No entanto, os seus 1785 rolos de papiro foram encontrados carbonizados devido às altas temperaturas e à falta de oxigénio a que estiveram sujeitos.
A Grande Mudança relata como o humanista florentino Poggio Bracciolini (1380-1459) encontrou, em 1417, num mosteiro da Alemanha, uma cópia de uma importante obra da Antiguidade considerada perdida: De rerum natura (Da natureza das coisas). Este longo poema epicurista enfatiza a materialidade do mundo, composto por átomos, a mortalidade da alma e a rejeição da religião e da superstição. O seu autor, o romano Tito Lucrécio Caro (c. 94-c. 50 a.C.), pretendia ajudar o Homem a libertar-se do medo da morte e a alcançar a felicidade através da ataraxia, a tranquilidade da mente. Esta era atingível através do prazer sensível moderado e do conhecimento e da aceitação da verdadeira natureza das coisas, nomeadamente a compreensão de que a morte era apenas a dissociação dos átomos componentes do corpo, e que não havia punições nem recompensas após a vida.
O conceito de átomo (indivisível, em grego) tinha sido introduzido por Leucipo e Demócrito, no século V a.C. Segundo estes filósofos pré-socráticos, os átomos, em número e variedade infinitos, moviam-se permanentemente em vórtices espontâneos, preenchendo o espaço vazio, também ele infinito. Nos seus incessantes turbilhões, estes corpúsculos associavam-se e formavam a matéria. A escola epicurista, baseada no pensamento de Epicuro de Samos (341-270 a.C.), integrou o atomismo, embora defendesse que os átomos não se moviam em remoinhos, mas sim em trajetórias retilíneas paralelas.
Ocasionalmente, poderiam sofrer um imprevisível desvio, o clinâmen, que permitia o choque e a união com outros. O atomismo epicurista também adquiriu uma dimensão moral e ética, associando o clinâmen à livre vontade humana, isenta das restrições impostas pela religião, superstição e ignorância. A doutrina aristotélica, que rejeitava a existência de átomos e vácuo, acabou por prevalecer, e o atomismo por se eclipsar. Contudo, a descoberta de Bracciolini, ainda que a Igreja a viesse a considerar perigosamente heterodoxa, fá-lo-ia renascer.
Obras de arte como a Primavera (c. 1482) de Botticelli foram conscientemente influenciadas pelo poema de Lucrécio. Esta pintura (imagem) é uma alegoria da fecundidade da Natureza que se renova, da beleza fugaz da vida e de um mundo em constante transformação. No século XVII, filósofos e cientistas mecanicistas como Pierre Gassendi e Robert Boyle reconheceriam no atomismo uma doutrina que se ajustava à sua conceção do mundo como um grande relógio, cujo funcionamento obedecia a princípios mecânicos e regras matemáticas. Com o subtítulo de ‘Origem e História do Pensamento Moderno’, A Grande Mudança ajuda-nos a compreender a mudança cultural operada a partir do Renascimento.
Nas últimas páginas de Pompeia, numa notável fusão de realidade e fantasia, Rectina, uma velha amiga de Plínio, tenta a todo o custo salvar os papiros da célebre residência de Herculano (que em 1970 foi recriada em Malibu, na Villa Getty). Em 1989, a análise de fragmentos carbonizados, recorrendo à tecnologia, revelou que um dos papiros era De Rerum Natura.