Eça quis ver Lisboa pela última vez – misturar-se com a multidão pitoresca de ladrões, beatas, caceteiros e carrascos.
Disfarçou-se de João da Ega, o fidalgo parasita e demagogo – assim não o estranhariam em Lisboa. O vaidoso que nunca acaba o que começa – assim o receberiam nas elites do ventre da capital. O intriguista que se finge acusador dos males da Nação – assim não o deixariam à porta do Palácio.
Passou pelo Parlamento e viu que a extrema-direita faz política sem princípios e a extrema-esquerda quer riqueza sem trabalho. Procurou os moderados, mas tinham ido de fim de semana. Baixou a cabeça e seguiu adiante. Subiu a São Bento, mas a República também já não morava lá. Disseram-lhe que não valia a pena voltar, porque por ali já não se resolvem os problemas – subsidiam-nos.
Foi ao Rato e correram com ele quando se disse socialista. Ainda mostrou o cartão, mas rasgaram-lho na cara. Tentou a São Caetano, mas a festa não era ali. Ao menos deram-lhe uma trela e um barrete de Vilão para ir ao Bailinho. Ainda estranhou ver o Jardim aos gritos, imaginava-o de pantufas no outro Panteão.
Mandaram-no às Caldas, mas o periscópio já não estava ao alto, o submarino havia ido ao fundo. Foi à Soeiro Pereira Gomes, mas rapidamente percebeu que há os que morreram e os que esperam a sua vez. É verdade, há mortos que ainda estão vivos. Esqueceram-se de os avisar.
Disseram-lhe que há Marianas que se julgam soberanas e Venturas que provocam tonturas. Ficou curioso e decidiu mudar de personagem. Disfarçou-se de Conselheiro Acácio – assim não o estranhariam no meio da mediocridade da política extremista. Avisaram-no que uns rugiam, outros rosnavam.
Nesse mundo de aleijões e grotescos encontrou a raiva e o despeito, farsas e tragédias, ensaios e opúsculos. Desferiram-lhe golpes de retórica afiada e espetaram-lhe farpas na epiderme. Quiseram desinfetá-lo.
Viu ajoujados marxistas e leninistas – Arnaldo, o ‘educador’; Tomé, o ‘catanas’; Viegas, o ‘dizedor’. Salva-se o Garcia, o ‘defensor’. À saída cruzou-se com o Louçã, o ‘caviar’ que tinha ido recolher as rendas antes que o pai Mortágua as ocupasse. Sim, o Camilo era um visionário.
Viu carrancas e regedores, abrunhos e agitadores – André, o ‘grosso’ que quando fala, o Parlamento cala-se; Maria, a ‘parrachita’ bloqueada; Rita, a ‘fratelli’ que arrasa pela beleza e inteligência. Ainda lhe deu vontade de ficar naquela federação de descontentes – fartos da ditadura da minoria e do silêncio da maioria –, mas foi-se já sem paciência para ser um agitador.
Levaram-no a Belém, mas já nem havia Graça que lhe descontasse – só a nova missão de ser inútil; na Travessa do Possolo, pouco mais do que pilhérias envelhecidas; na Sé, o sacristão apagava as velas para enxotar o beatério imbecil; no Bairro Alto atiraram-lhe copos de água choca – a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade tornaram-se palavras ímpias e impuras.
Ainda passou pelo Teatro Nacional, mas quando subiu o pano, nem uma ideia – o teatro perdeu a sua significação e vai-se só para rir e ficar de bom humor. Procurou os poetas, mas algemaram-lhes os pulsos. E na literatura, já não há escritas que tenham em si a consciência e o espírito da revolução. Eça acabou a viagem pálido e com olheiras. A Pátria tem uma ténia