Fernando Botero, Escultura e formosura

1932-2023 A comédia humana da América Latina

Havia quem associasse as suas figuras rechonchudas às personagens criadas pelo seu compatriota Gabriel García Márquez, o que o deixava profundamente irritado. «Desde 1957 que eu já pintava Boteros, pintava o meu mundo. Toda essa realidade desproporcionada, exagerada, já o tinha feito antes. Mas nunca ganhei o prémio Nobel, claro, e esse é que é o problema», lamentava.

Mas Botero também não tinha razões de queixa. O seu trabalho atingiu um grau de notoriedade muito raro, sendo reconhecido em todo o mundo, até por crianças, e exposto nalguns dos principais museus e espaços públicos das grandes metrópoles. O sucesso do artista era atestado não só pela popularidade das suas obras – que fez com que se tornasse um dos artistas mais falsificados do mundo – como pelo invejável património: chegou a ter um Rolls Royce igual ao da Rainha de Inglaterra e um iate; e possuía casas em Bogotá, na Grécia, na Toscana e no principado do Mónaco, onde faleceu no passado dia 15 de setembro, aos 91 anos. No Twitter, o Presidente da Colômbia reagiu assim: «Morreu Fernando Botero, «o pintor das nossas tradições e defeitos, o pintor das nossas virtudes, o pintor da nossa violência e paz».

Nascido em Medellín a 19 de abril de 1932, algumas décadas antes do aparecimento do infame cartel, Fernando Botero Angulo era de origens humildes, filho de um vendedor ambulante e de uma costureira. Quando tinha apenas quatro anos, no espaço de poucos meses ganhou um irmão mais novo e perdeu o pai.

Levado por um tio para aprender a arte de tourear, rapidamente desistiu da ideia, mas encantou-se com aquele mundo e foi por ele inspirado. Pintou cartazes para publicitar as corridas e a sua primeira pintura foi uma aguarela de um toureiro. Muitos anos depois, confrontado com o sofrimento dos animais, continuaria a defender essa tradição.

Realizou a sua primeira exposição em 1948, e para pagar os estudos fazia ilustrações para um jornal local, El Colombiano. Ainda andou na universidade em Medellín mas acabou por ser expulso por os seus desenhos serem considerados obscenos, e em 1951 mudou-se para a capital, Bogotá.

Não ficou muito tempo. Em 1952, com os proventos das suas pinturas, atravessou o Atlântico em direção à Europa, fixando-se em Madrid, onde se inscreveu na Real Academia de Arte de San Fernando. Para se sustentar, vendia desenhos e pinturas no exterior do Museu do Prado; para aprender, fazia cópias dos mestres antigos.

Sempre irrequieto, no ano seguinte passou por Paris e mudou-se para Florença, onde pôde estudar demoradamente os grandes pintores do Renascimento, como Piero della Francesca, Andrea Mantegna e Paolo Ucello, que acabariam por revelar-se uma influência central do seu estilo posterior.

De regresso a Bogotá, em 1954 casou-se com Gloria Zea, com quem viajou pelo México e EUA (Washington D.C.) e de quem teve três filhos até 1960, ano de separação do casal. Um deles, Fernando, como o pai, estudou na Suíça, Paris e Harvard, e viria a ser ministro da Defesa do seu país.

Depois da exposição no Museu Nacional de Bogotá, em 1955, que redundou num fracasso, 1958 revelou-se um ano de afirmação e de viragem para o pintor. Foi convidado para dar aulas na Escola de Belas Artes e participou no XI Salão de Artistas Colombianos com um quadro de grandes dimensões intitulado La Camara degli Sposi (Homenagem a Mantegna). Considerada inicialmente pelo júri uma caricatura da obra homónima do artista italiano do século XV, em que se inspirava, a pintura foi primeiro recusada, em meio de grande polémica, para depois ser novamente aceite e distinguida com o primeiro prémio. Adquirida por um empresário de Chicago, o seu rasto perdeu-se até hoje.

«Fernando Botero criou um mundo próprio. Um universo pessoal onde estão presentes a vasta mitologia e a fauna humana da América Latina», assinalava o filho, Juan Carlos Botero. «A sua riqueza de personagens parece inesgotável. Este mestre teve a inteligência de seguir o exemplo dos grandes: para ser universal, primeiro é preciso ser local». Juan Carlos sublinhava ainda outra característica decisiva da obra do pai: «A sátira em várias de suas telas é evidente, e é por isso que as autoridades do país, com os seus líderes, soldados, bispos, padres, políticos e ministros, são pintadas com humor e inegável ironia. A sua ambição como artista é desmesurada, porque parece que ele se propôs a retratar toda a comédia humana da América Latina».

A aceitação no seu próprio país não lhe bastava e em 1960 mudou-se para Nova Iorque. Na época, pontificavam os expressionistas abstratos, com Willem de Kooning à cabeça; Jackson Pollock tinha morrido num trágico acidente quatro anos antes, transformando-se num mito americano. Embora Botero se tenha mantido fiel a si próprio, o seu estilo não permaneceu incólume a esta influência.

Numa entrevista à agência EFE, haveria de apontar: «Parece que a arte que dá prazer é suspeita, dir-se-ia que a arte é feita para enjoar as pessoas e que a obra deve ser feia. Há um divórcio entre o artista e a sociedade». E concluía dizendo que as exposições de vanguarda eram «um aborrecimento mortal».

Voltou a casar-se e desta segunda união nasceria o seu filho Pedrito em 1970. Quatro anos depois, num dia de chuva, quando a família passava férias em Espanha, um camião despistou-se na estrada entre Sevilha e Málaga e abalroou o carro onde seguiam. Pedrito não resistiu e o pintor ficou com as mãos entrapadas durante meses. Quando se viu livre das ligaduras, eternizou o pequeno num quadro célebre e tocante, vestido de polícia, em cima de um cavalinho de baloiço.

Entretanto, Botero começara a fazer as suas icónicas esculturas. Foi tão bem-sucedido neste ramo que a consagração chegou no final de 1979, com uma mostra no Hirshhorn Museum and Sculpture Garden, do Smithsonian, em Washington D.C. A partir daí teve livre-trânsito para museus em todo o mundo e tornou-se o artista latino-americano mais valioso e desejado. «Eu sou a pintura colombiana», terá dito um dia a um colecionador. As exposições sucederam-se, de Londres a Tóquio, de Moscovo à Cidade do México.

Passando por Lisboa, onde as suas esculturas ocuparam a Praça do Comércio durante alguns meses, em 1998. Uma delas, oferecida pelo magnata do jogo Stanley Ho, ficou na capital portuguesa. Ainda hoje pode ser vista no Jardim Amália Rodrigues, no topo do Parque Eduardo VII.

Claro que Botero não gostava que o vissem como o artista das figuras avantajadas. Aliás, se fazia pessoas gordas – nunca disformes, pelo contrário – era precisamente para realçar as formas, mostrando ter aprendido bem a lição dos mestres italianos do Renascimento que tanto apreciava. Nas suas mãos, o excesso de peso e o exagero dos volumes eram meios para realçar a beleza e a sensualidade. E não era só ele que achava isso:_as suas esculturas são constantemente tocadas por populares que não resistem ao apelo daquelas curvas. O jornal colombiano Cambio relata que o pénis do seu Adão no Time Warner Center, em Nova Iorque, «está desgastado e esgotado». Continua o mesmo jornal: «Os pezões da sua exuberante donzela de Cartagena estão condenados a suportar as carícias de todos os turistas que chegam à cidade. Em Medellín […] o seu Soldado romano ‘é objeto de uma estranha devoção… os turistas tiram fotos tocando o minúsculo falo para encontrar o amor eterno ou para aumentar a virilidade’».

Já entrado na casa dos 80, Botero trabalhava «como um rapaz de quinze anos», dizia a sua filha. Em 2013, voltou a surpreender, com uma exposição de 70 desenhos e três esculturas intitulada BoteroSutra – as famosas personagens gordas, agora ensaiando as mais diversas posições no ato sexual. O_artista colombiano gostava, sobretudo, de dar largas à imaginação, e o Kama Sutra fora um belo meio de a espicaçar.

As obras foram oferecidas ao Museo de Antioquia, que se tornou assim a instituição que detém mais peças do artista.

No início deste mês de setembro, Botero havia sido internado com uma pneumonia. Mas quis regressar a casa, onde continuou a pintar até aos últimos dias.

Faleceu cinco meses depois da sua terceira mulher, a pintora grega Sophia Vari. Que, por sinal, era bastante esguia.