A incerteza é o próprio apelo e desafio da literatura, e hoje todas as distinções são aplicadas como um castigo, uma forma de invasão desses mecanismos do espetáculo que atua empurrando tudo para esse vazio da experiência, uma vez que, nos rituais que são próprios da sociedade do consumo, e que decorrem de condições de vida e processos de produção alienantes, não há lugar para a experiência individual. Tudo se submete aos valores distrativos, e a partir daí torna-se essencial que cada leitor se furte a esse ritmo, tornando-se o secreto agente de uma sabotagem construtiva.
Um bom exemplo deste regime tenso e subtilmente desagregador do espesso manto de noções que hoje substituem a própria perceção do real é precisamente aquele que domina a obra de Jon Fosse, o autor norueguês de 64 anos que acaba de receber o galardão da Academia Sueca «pelas suas peças de teatro e prosa inovadoras que dão voz ao indizível», de acordo com o comunicado do júri na conferência de imprensa realizada esta quinta-feira em Estocolmo. Um gigante das letras no seu país, Fosse é um autor bastante reservado, que se esquiva o mais possível ao lado mundano da vida literária, dando poucas entrevistas, protegendo o seu foco, o que lhe permitiu tornar-se um autor prodigiosamente prolífico, cobrindo os mais variados géneros, e tendo ganho todos os principais prémios nórdicos, isto apesar de escrever em nynorsk, uma variante menos comum da escrita norueguesa que é usada nos seus condados rurais ocidentais.
Nascido a 29 de Setembro de 1959 na comuna norueguesa de Haugesund, a partir do final da década de 1990 que as suas peças começaram a circular, a ser encenadas em vários países, sendo hoje um dos dramaturgos contemporâneos mais representados nos palcos europeus. Em Portugal, só recentemente começaram a ser publicados alguns dos seus romances com a chancela da editora Cavalo de Ferro, mas Fosse considerava Jorge Silva Melo um amigo pessoal, tendo algumas das suas 30 peças teatrais sido traduzidas, encenadas e publicadas na coleção de teatro que a Cotovia, editora que encerrou a sua atividade em novembro de 2020, mantinha em colaboração com a companhia Artistas Unidos. Há cerca de década e meia fez uma interrupção no seu trabalho como dramaturgo para se dedicar integralmente à prosa, tendo escrito um longo romance em sete partes (Septologia) o qual, na sua edição original, se estende por 1300 páginas. Além de muitos livros de poesia, que foi o que começou por escrever ainda na adolescência, publicou também uma vintena de romances, alguns ensaios e livros infantis.
‘Aos sete anos de idade, quase morri’
Ruth Margalit, num formidável ensaio na revista The New York Review of Books, ao abordar o seu longo romance Septologia descreve Fosse como um realista místico, apontando a forma como a sua prosa surge impregnada de simbolismo religioso, assumindo, na sua linguagem encantatória e nas suas repetições, o ritmo do rosário. Ao lermos os romances de Fosse, naquele registo que parece proceder num fôlego sempre medido, sem grandes haustos, naquilo que ele descreve como uma «prosa lenta», de baixa intensidade, procedendo por avanços e recuos, que segue o regime da meditação, sentimos muitas vezes que esta uma escrita que procura urdir um labirinto de derivas interiores, ficando muito próxima da oração. Numa longa e esclarecedora entrevista dada a José Riço Direitinho para o jornal Público, em 2021, Fosse assinalou a influência na sua obra das tradições monásticas dos antigos cristãos, e da tradição mística medieval. Contou ainda um episódio que acabaria por ter uma centralidade decisiva na forma como veio a organizar a sua vida enquanto escritor. «Eu não gosto de falar nisto, é uma história dolorosa, mas, aos sete anos de idade, quase morri. Vi-me naquela típica experiência de um lugar onde tudo era bonito e estava em paz, com uma estranha forma de felicidade. Eu olhava para a casa onde cresci e sabia que a via pela última vez, olhava também para os meus pais e sabia que seria a última vez que os via, mas tudo estava em paz. Foi a experiência fundamental da minha vida. Tudo isto acaba por fazer de mim um artista. Acho que a minha arte está sempre perto desta experiência»
A Caverna
Certamente não teria sido possível a Fosse como a tantos outros autores noruegueses que hoje vêm assumindo um assinalável destaque nas letras a nível internacional produzir obras tão significativas não fosse pela sólida política cultural que aquele país tem levado a cabo em tantas áreas, entre elas a literatura, com muitos criadores a serem subsidiados independentemente do género literário e das vendas, como explicava Riço Direitinho num dos seus artigos, destacando como o Estado adquire parte das edições dos seus livros para que estes sejam distribuídos pela rede de bibliotecas públicas, adiantando que os apoios à divulgação internacional e às traduções não são despiciendos e são eficazes. Num país com uma população que é metade da portuguesa, e com uma língua apenas falada pelos seus habitantes, é hoje evidente o triunfo desta aposta, e a mesma deveria obrigar-nos a reconhecer o fracasso da estrutura de apoios públicos em Portugal, nomeadamente no que toca à literatura, onde todos os anos somas absurdas são «desviadas para iniciativas que são da ordem do circunstancial, do espetáculo, do foguetório, das celebrações e comemorações», como vem assinalando Diogo Ramada Curto nas suas crónicas, consubstanciando um regime de políticas áulicas que, em vez de dar aos criadores a possibilidade de se libertarem dos imperativos mundanos e das orientações de um público que praticamente não lê nada, consegue assim enfeudar estes autores, e fazê-los circular pelo país nesse limbo dos festivais que apenas serve para as autarquias servirem simulacros de uma vida cultural em cidades ou povoações do interior onde muitas vezes nem há uma livraria para oferecer outra coisa que consiga resistir ao ciclo acelerado das novidades de cada estação. Outro aspeto que nos causa espanto é o facto de ter sido deixada à disposição de Fosse uma residência na capital norueguesa num edifício do século XIX, situado na propriedade do Palácio Real de Oslo, chamado ‘Grotten’ (‘Caverna’), e que é atribuído, por decreto real, a título honorário, como residência permanente a um destacado artista norueguês. Jon Fosse é o quarto distinguido com esta honra ‘real’ desde 1920, explica Riço Direitinho.
É uma forma de apoio que não procura transformar o artista num ‘dependente’, numa figura mendicante e que faz os possíveis por agradar a vereadores de cultura e funcionários que, a partir dos gabinetes camarários, durante alguns dias cada ano, representarem o papel dos antigos mecenas na forma como distribuem os dinheiros públicos. A escrita de Fosse assinala uma espécie de confiança essencial, num registo repetitivo, com um vocabulário que está do lado oposto às acrobacias do estilo, a essa «masturbação de grilos» (Eduardo Prado Coelho) que vai sendo desenvolvida nos cursos de escrita criativa e que caracteriza boa parte da ficção portuguesa, incapaz de contrariar ou sequer resistir impondo narrativas que elevem as possibilidades de os factos exteriores serem assimilados à nossa experiência. Ora, como sintetiza Riço Direitinho, boa parte da «literatura norueguesa traduzida – sobretudo as histórias que se desenrolam até metade do século XX – tem como pano de fundo das suas acções aldeias piscatórias submersas na miséria, na fome, nas duríssimas condições climáticas – são lugares ancestrais, míticos, onde tudo parece ter sido negado aos seus habitantes, como se uma vontade divina quisesse descobrir quanta dor é que afinal o coração humano ainda consegue suportar». A literatura portuguesa que vai triunfando está completamente alheada desse desígnio de transmitir com alguma força de denúncia ou esplendor as experiências que caracterizam esta forma de destituição que tem ocorrido nos centros urbanos, com esse pesadelo distópicos dos arredores betonados, essa «tundra de paisagens indiscriminadas», num registo sufocante em que não se salva nenhum ponto de vista, nenhuma noção de si.
Uma espécie de transe
A prosa de Fosse, pelo contrário, despe-se do lado ornamental, não apenas recorre a repetições, como o seu vocabulário é bastante austero, chega a parecer uma escrita um tanto inóspita, um reflexo das vastidões congeladas que caracterizam a paisagem do país. Uma escrita que recusa o artificialismo, e na qual abundam os adjetivos genéricos, por vezes reforçados por advérbios igualmente insípidos. A narração segue uma espécie de monólogo interior, repleta das imperfeições vivas que se encontram na fala (e que normalmente são apagadas na escrita): recuos, hesitações e aproximações. É uma prosa que chega a soar como se o narrador estivesse a transcrever meticulosamente o seu discurso interior, e Fosse comparou o seu processo de escrita com um «ato de escutar», adiantando que não pensa no leitor quando o faz. «Se o fizesse, acabaria por sentir pena dele». Fosse insiste que vê a escrita como uma espécie de «dádiva» ou «graça», deixando-se levar, não planeando nem a estrutura nem o enredo, como se fossem os livros a escreverem-se a si próprios. E ele vai tomado desse encanto. Assim, domina a arte do tédio, em busca «do invisível, da indefinível presença de algo». Por isso, o minimalismo dos seus romances a certa altura torna-se vívido, alcançando um vigor inesperado, arrebatando o leitor, que por fim consegue ganhar pé e reganhar uma competência percetiva, o que chega a dar-lhe a sensação de estar numa espécie de transe, dominado por um universo em que tudo o que toca é integrado, e assume um efeito de radiância e de um significado profundo, quase religioso.
Abandonando o vício das nossas estreitas noções do humano, também a realidade assume uma outra textura e capacidade de assombro na experiência interior que dela construímos. «Eu cresci naquele lugar junto ao fiorde de Hardanger, diante do mar», contava Fosse na entrevista acima mencionada. «Dali via as ondas, as montanhas escuras, andei em barcos desde que me lembro, primeiro com o meu pai, e por volta dos sete anos já andava sozinho, de um lado para outro. É uma paisagem muito impressionante, e no Inverno é completamente escura, com uma luz aqui e outra além, nas casas dispersas. Ainda lá estou quando escrevo. Vivo parte do ano numa aldeia austríaca, a paisagem em redor tem algumas similaridades. Foi lá que escrevi Septologien, mas era na paisagem do fiorde de Hardanger que pensava. Transformo as coisas, mesmo a paisagem, não se consegue reproduzir a realidade. Para ser literatura, a realidade tem que ser transformada naquilo que se chama imaginação»