Sá Carneiro: estadista ou enfant terrible?

Durante os anos em que viveu, Sá Carneiro mostrou-se sobretudo um troublemaker. Governou fugazmente, mas durante duas décadas foi um homem da luta, do confronto, mais de desfazer, de demolir, do que de fazer. O destino não lhe deu tempo para mostrar se era um estadista.

Acabei de ler um livro de Luís Filipe Menezes com um título horrível: Homo-líder. Mas o livro é engraçado, conta muitas histórias da vida interna do PSD, mais longínquas e mais recentes, sendo um excelente contributo para o estudo da nossa história política contemporânea. Todos os políticos com algum protagonismo deviam fazer o mesmo.

Menezes tem uma prosa solta, fluida, que se lê muito bem, pesem embora pequenos senãos onde se percebe que não é um escritor. Mas antes um ‘amador’ com alguns senãos do que um escritor encartado chato e enfadonho.

Como todos os sociais-democratas, Luís Filipe Menezes endeusa Sá Carneiro. Este é o ‘Jesus do PSD’. A sua palavra é sagrada. Tudo o que ele disse é hoje uma escritura.

Admirei Sá Carneiro em alguns momentos, sobretudo quando conseguiu a primeira maioria absoluta pós-25 de Abril ocorrida em Portugal. Mas houve alturas em que não me identifiquei minimamente com ele. O meu pai chamava-lhe «um galinho de Barcelos», não tanto por ser pequeno, mas sobretudo pela pose agressiva, dada ao conflito. No dia da sua morte, porém, pouco depois de as TVs darem a notícia da queda do avião, ligou-me e só disse isto: «A política portuguesa perdeu a graça». De facto, ele dava uma animação à vida política que mais ninguém conseguiu dar.

Mas estas mesmas observações conduzem inevitavelmente à seguinte pergunta: Sá Carneiro era um estadista ou um agitador? Era um construtor ou um demolidor?

Percebo hoje que o facto de nunca me ter identificado com ele tem aí o seu cerne. Eu sou definitivamente um construtor. Talvez a formação de arquiteto tenha contribuído para isso. Aquilo que mais me preenche é desenhar qualquer coisa e depois vê-la concretizar-se. E não precisa de ser uma grande obra: tanto pode ser uma casa como uma simples mesa de madeira.

Ora Sá Carneiro era sobretudo um troublemaker. Não teve tempo para ser estadista, só governou um ano, mas durante duas décadas foi um homem da luta, do confronto, mais de desfazer, de demolir, do que de fazer.

Começou no tempo de Salazar com a sua ligação ao bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, um príncipe da Igreja que afrontou Salazar e foi condenado ao exílio. A sua primeira luta foi, pois, contra a ditadura salazarista.

Depois veio Marcello Caetano, e Sá Carneiro pareceu querer participar na construção de um país novo, mais aberto. Aceitou ser deputado pelo regime; mas depois ajudou a derrubá-lo. Marcello Caetano queixava-se de que os deputados liberais, em vez de apoiarem os seus esforços de democratização, acabaram por se pôr contra ele, inviabilizando na prática uma alternativa e precipitando a revolução.

Hoje, 50 anos passados, creio que Caetano era um homem sério, verdadeiramente interessado numa reforma do Estado Novo que herdou de Salazar, e se tivesse encontrado apoio leal nas forças progressistas, não comunistas, o regime podia ter evoluído para uma democracia, sem revolução. É claro que havia o problema bicudo da guerra colonial. Mas até esse podia ter-se eventualmente resolvido com muito menos custos humanos, evitando-se as sangrentas guerras civis em Angola e Moçambique, e talvez a desastrosa evolução da Guiné.

Mas Sá Carneiro, com a demissão de deputado, desenterrou o machado de guerra dos liberais contra Marcello Caetano – e aí o regime ficou condenado. A partir daí, tudo cairia, num efeito de dominó.

Depois veio o 25 de Abril. Sá Carneiro teve de se afastar por motivo de doença, mas, quando voltou, iniciou uma guerra de vida ou de morte contra Ramalho Eanes. O pretexto era desmilitarizar a vida política, em nome do primado dos civis. Derrubar a tutela do poder militar sobre a sociedade civil. Que, sendo um objetivo respeitável, soava a bastante injusto: os militares tinham feito a revolução, tinham implantado a democracia, tinham-lhe dado – a ele e a todos – a possibilidade de se expressarem livremente, e não fazia sentido declarar-lhes guerra, sobretudo tão cedo.

Para Sá Carneiro, Eanes era a bête noire. E aí eu estava definitivamente do outro lado. Sempre apoiei Eanes. Nos tempos conturbados da revolução, ele representava a ‘ordem’ contra a ‘desordem’. Foi ele que chefiou o 25 de Novembro, que evitou a tomada do poder pelos comunistas. Foi ele que promoveu o regresso dos militares aos quartéis. Só isso era suficiente para não fazer sentido atacá-lo.

Depois foi a constituição da Aliança Democrática (a célebre AD), a defesa da tese da bipolarização – a separação clara das águas entre direita e esquerda –, a vitória com maioria absoluta, a abertura de uma nova esperança para muitos portugueses que não se identificavam com o comunismo nem com o socialismo.

Esse foi o seu momento de construção. Mas não teve tempo de o consolidar, pois o destino atraiçoou-o.

Assim, nunca se saberá se Sá Carneiro era um estadista ou se a sua verdadeira natureza era a de ser, mesmo, um enfant terrible.