Desatar o nó cego da saúde

Opções ideológicas erradas conduziram à situação de pré-caos que se vive nos hospitais. Não será tempo de percebermos que o problema está na raiz, e de repensarmos todo o sistema de saúde de alto a baixo?

O Serviço Nacional de Saúde debate-se com três problemas críticos. Há um problema de falta de pessoal, há um problema de excesso de procura em certas áreas e há um problema de organização. A falta de pessoal, sobretudo de médicos, tem uma razão óbvia: o crescimento do setor privado da saúde. Oss hospitais privados têm-se multiplicado como cogumelos e vão naturalmente buscar os profissionais onde os há: ao SNS.

Oferecem-lhes melhores salários e melhores condições de trabalho – e médicos e enfermeiros não pensam duas vezes. 

Para os reter ou ter de volta, o Estado teria de lhes pagar muito mais do que paga e dar-lhes melhores condições de trabalho. 

Ora, isso implicaria um investimento gigantesco que o Orçamento não está em condições de suportar.

Esse é o primeiro nó cego.

Neste aspeto, a ex-ministra da Saúde, Marta Temido, com a cumplicidade de António Costa, cometeu um erro colossal, que agravou um problema que já não era nada fácil: acabou com as parcerias público-privadas.

Estas ainda retinham muitos médicos no SNS.

Se continuassem hoje a existir, seriam certamente mais numerosas e não existiria tanta fuga de médicos de um setor para outro.

Assim…

Marta Temido cometeu um segundo erro pouco falado mas de profundas consequências: acabou com a contratação de médicos pelos hospitais, trocando-a por uma contratação centralizada – distribuindo-se depois os médicos pelas unidades carenciadas.

Ora, quando os médicos eram contratados pelas direções hospitalares, constituíam-se equipas, estabeleciam-se laços fortes de colaboração profissional, e havia uma expectativa concreta de progressão na carreira.

Isso contribuía para reter os médicos e evitar as fugas.

Estar integrado em equipas estáveis é muito diferente de andar a saltitar de hospital em hospital.

Com a falta de médicos, veio a dificuldade em marcar consultas, o aumento dos prazos para a realização de cirurgias, o descontentamento dos doentes e dos próprios responsáveis hospitalares, sujeitos a enorme pressão,

Todo o sistema começou a tremer.

Muitos doentes passaram a acorrer às urgências sem necessidade: era a forma de resolverem problemas que doutro modo não conseguiam solucionar. 

As urgências começaram a rebentar pelas costuras.

É certo que muita gente, perante o falhanço do SNS, acorreu aos hospitais privados.

Mas esta quebra terá sido ‘compensada’ pelos imigrantes, que entram no país de forma descontrolada e vieram cair no SNS.

Vejamos agora as falhas de organização.

Estas são mais difíceis de concretizar. 

Há, porém, um dado objetivo, que é esclarecedor: de 2015 para cá, a despesa aumentou enormemente (mais de 70%, imagine-se) e o sistema funciona pior. 

Gasta-se muitíssimo mais dinheiro e as coisas pioraram.

Mais: durante o tempo da troika, fizeram-se poupanças na Saúde e não me recordo de haver um décimo das queixas que hoje se ouvem.

Vão perguntar a um senhor chamado Paulo Macedo, que era o ministro na altura, como conseguiu o milagre.

Estamos perante uma equação complicadíssima, que não se resolverá sem ir à raiz do problema. E a raiz é esta: Portugal não tem condições para sustentar um sistema de saúde universal e gratuito. Outros países terão possibilidades de o fazer, mas Portugal não tem.

É uma heresia dizer isto, mas é a realidade – e ela está hoje claramente à vista.

Escrevo há muito tempo que não faz qualquer sentido existir um sistema de saúde gratuito para toda a gente.

É justificável que os serviços de saúde sejam gratuitos para quem não possa pagar; mas não é lógico que quem tem possibilidades de o fazer não pague nada ou quase nada.

Pessoas com capacidade financeira vão ao SNS fazer exames que custam centenas de euros, pelos quais pagam meia dúzia de cêntimos. 

Sempre fui adepto do princípio do utilizador-pagador. 

Aliás, os serviços ‘gratuitos’ são um engano – pois pagam-se depois em impostos. 

Se as pessoas pagassem o custo dos serviços prestados, a saúde não teria um peso tão grande para o erário público, e haveria condições para pagar melhor aos médicos.

O desequilíbrio entre público e privado diminuiria (como acontece, de resto, noutros setores) e não se daria o êxodo de médicos que se verifica. 

Melhorariam os prazos das consultas e das cirurgias.

E não acorreria às urgências tanta gente sem necessidade.

Sejamos lógicos. O voluntarismo, a ideologia, foi o que esteve na base de muitos erros que se cometeram e conduziram à atual situação de pré-caos. Se o SNS for gratuito para os necessitados mas pago por quem pode pagar, a maioria dos problemas na Saúde resolver-se-á – aliviando ainda por cima os cofres do Estado, que não terão de suportar os atuais monstruosos encargos. 

E com vantagem para os contribuintes.

Quem ainda tem dúvidas, pense nisto: a criação do SNS tinha como objetivo dar a todos as mesmas condições na prestação de cuidados de saúde.

Ora, as políticas levadas a cabo tiveram a consequência exatamente oposta: cavaram ainda mais o fosso entre o público e o privado. 

Com a saída do SNS de muitos médicos (e dos melhores), a qualidade baixou, as carências aumentaram, fecham urgências e serviços – e cada vez mais há uma saúde para ricos e uma saúde para pobres.

Deixemos de parte a ideologia que conduziu a esta situação.

Começa a ser tempo de sermos, simplesmente, racionais.