Na atribuição do Prémio Camões a João Barrento são tidos em conta méritos muito particulares, sendo esta uma escolha que desafia uma titularidade ostensiva de criadores, tantas vezes de segunda ordem, face àqueles que actuam no campo cultural produzindo, em território periféricos e atrasados, uma visão de contexto, englobando obras e autores imensamente influentes. Basta dizer que são mais de 60 as obras traduzidas do alemão, em todos os géneros, incluindo os oito volumes das obras de Walter Benjamin, os três volumes de O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, Fausto e Torquato Tasso, de Goethe, a monumental edição de Todos os Poemas, de Friedrich Hölderlin, além de antologias de autores contemporâneos fundamentais como Paul Celan e Heiner Müller, e algumas antologias panorâmicas, entre as quais se destaca A Alma e o Caos, dedicada à poesia expressionista alemã. O júri da 35.ª edição do Prémio Camões destacou justamente “a obra relevante e singular em que avultam o ensaio e a tradução literária”, salientando “as traduções de literatura de língua alemã, que vão da Idade Média à época contemporânea, e em todos os géneros literários [e que] formam o mais consistente corpo de traduções literárias do nosso património cultural e constituem indubitavelmente um meio de enriquecimento da língua e de difusão em português das grandes obras da literatura mundial”. E mesmo neste gesto de elementar justiça e que vem reconhecer uma obra que muito provavelmente foi bem mais eficaz no esforço de resgatar a nossa língua à sua condição ilhada e provinciana, pode divisar-se um sinal de uma injustiça igualmente importante, pois se reconhece o magnífico trabalho de João Barrento, acaba por ignorar outra figura fundamental neste esforço de divulgação como é Aníbal Fernandes, que ao longo de décadas e, sobretudo a partir do francês, tem-se mostrado não menos empenhado em revelar filões de obras e autores estranhos, sinalizando uma abrangência talvez ainda mais vasta, trabalhando para nos trazer obras que tantas vezes dispensam o estatuto dos clássicos, ou a perfeição e ambição da obra-prima, mas que recortam uma margem de uma vitalidade radiante, rompendo com as formas ritualizadas do discurso que tem maior acolhimento, nomeadamente por parte da academia.
Feita esta ressalva, é importante vincar como o percurso de João Barrento soube aproveitar a lição de Lukács quando este nos lembra que o crítico “fala sempre das questões últimas da existência, mas sempre também num tom que leva a crer que apenas se trata de livros ou quadros, de belos momentos supérfluos da grande vida”, adiantando que aquilo em que se aplica é a garantir o fluxo dessa “eterna pequenez do mais profundo trabalho do pensamento sobre a vida”. Assim, todo o esforço de Barrento operou uma resistência secreta frente à cidade atual, em que o cerne histórico se esvazia, e que nos ocupa inteiramente e sufoca nesse seu “monstruoso feixe de ‘funções’”, dando origem a uma paisagem sem medida humana, sustentada sobre as “grandes catacumbas feéricas da mercadoria glamorosa e desalmada”. Face a esse entusiasmo artificial que domina as massas acomodadas, Barrento exprime um profundo mal-estar ao deparar-se com este dissimulado deserto “onde sopra o vento de uma capitalismo do descartável”, produtor de existências sem exterior, sem contraponto reativo. Assim, a sua dedicação opõe-se desde logo ao ruído, à linguagem inquinada e que logo nos deixa sem saída, mantendo uma espécie de fé na noção partilhada com Italo Calvino de que as coisas são “salvas” pelo olhar que interpreta. Esta é, por isso, uma obra quase de marcenaria interpretativa, em que a tradução se revela um momento essencial de forma a instituir no espaço da nossa língua os materiais e as fontes essenciais do passado, reunindo a floresta para saltar entre fragmentos no seu enorme estaleiro e permitir que novas embarcações possam desencadear outras descobertas. Toda a sua obra é também um testemunho de “um amoroso perdido e desencantado”, um homem que desenhou o seu percurso como uma memória prodigiosa, empenhada na restituição dessas presenças vivas, como para consolar-se da sua solidão, para reclamar de volta o peso e o efeito de abismo das grandes imagens refletoras, e isto num ensejo sedicioso face ao nosso tempo, “hoje perfeitamente redutível à sua vertente mais publicitária, que tanto gosta de criar expectativas para logo as desfazer com certezas”. Trata-se de engendrar o próprio horizonte, uma visão que desloca a perpetiva dos protocolos da mediocridade satisfeitinha consigo mesma para superar esses combinados de migalhas que são contrabandeados à margem da bibliografia passiva, reconhecendo que a arte maior quase não é lida e a sua capacidade de fazer funcionar de forma muito diferente as coisas com a sua mera presença numa cultura. Os ensaios de João Barrento são sempre mais informados, a sua prosa tem uma respiração mais tensa e capaz de transportar o leitor na vibração que lhe transmite, e destaca-se de imediato “quando comparada com tanto laxismo impressionista e tanta filologia aguada que grassam ainda entre nós nos estudos literários”. São análises que escapam a esses levantamentos inócuos, ao resíduo das teses que apenas reforçam a estagnação teórica no campo das letras, distinguindo-se desde logo pela clareza do género de artigo presunçoso, académico, que consegue sempre falhar o alvo, vir-nos com rodeios sem nunca chegar ao principal, nem tocar os elementos de discórdia, mar redundando naquele registo das conversas obscuras e maníacas à volta de elementos acessórios. Isto de algum modo permite também fazer uma crítica da própria Universidade, particularmente no campo das Humanidades, que, contrariamente ao que seria um instinto de preservação que seria de esperar num momento de ameaça real, em vez de enfrentar essa ameaça e se debater para fazer relevar a sua importância, degenerou num pequeno inferno local, uma série de capelinhas interligadas ou associações de adoração mútua, impondo um catálogo, um álbum de lembranças ressequidas. Não passa de um recanto de filatelistas e bilharistas, para utilizar a expressão de Gombrowicz, rodeada de um cemitério de obras e de autores assassinados, recusados precisamente por darem origem a uma polarização, a uma linha de demarcação entre as obras que desafiam o espírito. Na melhor das hipóteses, estas faculdades de letras chegam a ser um concerto abafado dessas relações musicais tempestuosas que se deram há mais de um século. Numa relação expansiva, articulando os fulgores de passagens essenciais, João Barrento instituiu o seu curso autónomo, dirigindo-se à generalidade do público leitor que gosta de se manter informado, e que, mesmo numa atmosfera de cansaço fundamental, se mostra capaz de uma perspetiva intensamente estruturada, reavendo uma hierarquia de valores incitante a partir da leitura de obras e autores fundamentais, dessas grandes imagens e construções simbólicas do passado, traduzindo-as numa compreensão e numa sensibilidade que as integra quase à maneira de informações genéticas, como entendia esse mestre da leitura que foi George Steiner. Numa altura em não só está longe de se ter dissipado do ar aquele perfume de “adeuses” a que este se referia, Barrento reativa noções decisivas, lembrando-nos que atual é, “não apenas aquilo de que o presente se reclama contra o passado, mas também, e com um caráter de compulsividade que contrasta com o aleatório e o arbitrário da moda, aquilo que no passado era já matéria em latência, decisiva para a configuração de um futuro presente à espera de ser descoberto e ativado”. Na sua militância de certas obras, não só as dos autores a que dedicou anos da sua vida enquanto tradutor, desde logo Walter Benjamin ou Robert Musil, mas também enquanto biógrafo (destaque-se a extraordinária obra dedicada a Goethe, “O Eterno Amador”), na cumplicidade das suas leituras com um caráter sempre pedagógico e empolgante, e nessa devoção extraordinária a uma autora como Maria Gabriela Llansol, num exemplo de dinamismo que nos força a reconhecer esse caráter compulsivo das escolhas que definem um percurso. E, nesse estupendo volume de crónicas, “Uma seta apontada no coração do dia” Cotovia, 1998), que lido hoje agudiza mais ainda a sensação da perda deste género entre essas orações diárias que dão forma aos jornais, ele aponta desde logo o efeito patético desses criadores que se julgam a trilhar caminhos originais, e descose as bainhas de certas mistificações persistentes, notando que não se está empenhadamente na cultura sem assumir relações epigonais. “Epígonos somos obviamente todos, vivendo como vivemos na “velha casa da linguagem”, como escreveu aquele que me ocorre como o mais genial e convicto praticante de um ‘epigonismo ativo’: o austríaco Karl Kraus (…). O que distinguirá uns de outros nesta cadeia infinita de dívidas, neste rol de fiados em que estamos inscritos todos os que trabalhamos com a linguagem e com as ideias (no campo científico isto é um dado aceite e não problemático), é que alguns se limitam a uma deambulação circular e submissa na sombra dos avós, enquanto outros, como o próprio Kraus, encontram os seus caminhos próprios a partir da herança recebida e investem com novas armas contra Tebas. Tebas? Que vem a cidade grega fazer para aqui? Vem lembrar que o termo ‘epígono’ tem origem na história dos ‘Sete contra Tebas’, narrada numa epopeia pré-homérica intitulada precisamente Epigonoi, e onde foram beber alguns grandes que vieram depois, como Homero, Apolodoro e Pausânias. Assumindo sem reservas a geração da geração anterior (que não conseguiu conquistar Tebas), os epigonoi agem no espírito de um estrito conservadorismo e tradicionalismo, para, aceitando o desafio dos pais, destilando e preservando o que a tradição tem de melhor, mas indiferentes à ordem antiga enquanto sistema tirânico, anunciavam outra, diferente, futura.” Barrento mantém com figuras recentes e cruciais daquele princípio de socialização da cultura um diálogo intenso, presenças que, se podiam assumir uma evidência excessiva, tornando-se algo patológicos nos seus vícios, não deixavam assim mesmo de apontar caminhos, experiências ousadas, e de estar comprometidos com certas noções cruciais, como Eduardo Prado Coelho, amigo a quem Barrento dedicou, entre outras homenagens e sinais de uma correspondência bastante produtiva, o livro “O Género Intranquilo, anatomia do ensaio e do fragmento”, e que fazia sempre questão de lembrar que a arte não é qualquer coisa que um artista faz para “distrair” os seus contemporâneos, mas sim uma forma de conhecimento, vincando que “só as obras que alargam o espaço do cognoscível poderão mais tarde proporcionar experiências de um enorme prazer àqueles que as virem, lerem ou ouvirem”. E remata notando que, por esta razão, o processo artístico tem regras análogas ao processo científico. E, no entanto, na escrita de João Barrento, menos jubilosa que a do amigo, a par do rigor, do esforço de análise com vista a este ideal de alargar e dinamizar o espaço do cognoscível, há ainda uma veemência particular e até uma certa “cólera”, como assinalou Prado Coelho, e isto talvez se deva a uma compreensão própria de alguém que dedicou a sua vida a esse movimento anímico de transfusão de sangues, sendo o depositário de anseios e da nostalgia de períodos em que a cultura teve um papel bem mais atuante, é natural que sinta de forma dilacerante a ameaça “da cegueira feliz e da imparável ascensão do otimismo irresponsável deste apocalipse alegre em que vamos vivendo há décadas: tudo se dilui e é absorvido numa vertigem da velocidade e da superficialidade, em que as contradições são apagadas ou neutralizadas pelos media, em que o pensamento foi deixando de ter lugar público, porque foi substituído pelo espetáculo, em que a dor e a morte são anestesiadas, dessacralizadas ou ocultadas, no ponto extremo de um processo de secularização e ‘profanização’ (…)”. Sem ceder ao niilismo, e prova disso é a forma como se tem mantido sempre comprometido com a divulgação das obras de outros autores e das suas próprias análises que erguem num clamor enfático as suas dívidas, e isto por contraponto a uma cultura “que caiu na mais rasa banalização de tudo e perdeu o sentido estético do mundo”; “uma cultura em que vingam os feios, porcos e maus, vivendo na alegre inconsciência de si”, e em que se perdeu o sentido dos valores mais (humanamente) elementares e essenciais. Não resta assim grande margem para ambiguidades neste diagnóstico, que traz um balanço de vários séculos e nos vem dizer que abdicámos da herança do passado, dos aspetos mais dinâmicos do regime epigonal, para aderir a uma “cultura do simulacro pobre”, a qual se oferece a uma estúpida resistência ao pensar, praticando uma clamorosa e crescente dessolidarização do Lebenswelt (“mundo da vida”) e das relações humanas. Neste sentido, e quando nos diz que, enquanto ensaísta, se esforçou toda a vida por ler indícios e fazer diagnósticos, olhando também para trás, não receia ser tachado de apocalíptico, e não esconde como vem assistindo a uma transformação fundamental que nos coloca, hoje, já do lado de “uma anticultura do inconsequentemente radical (em extensão)”. E, aproveitando-se de um sublinhado de Benjamin, num dos seus diários cita a fala do protagonista da peça “Julius von Tarent”, de Leisewitz: “… admiro o poderoso impulso para a liberdade até na mosca que se debate”. Barrento não hesita em assinalar como “esse impulso é, de facto, mais forte na mosca do que em todas as vidas, cada vez mais frouxamente humanas, de sociedades em que tudo se compra e vende.