Não gosto de comemorações

Não vibrei com o anúncio de que a partir do próximo ano, além do 25 de Abril, também se comemorará com pompa e circunstância o 25 de Novembro. Poupem-nos a mais comemorações! Façam o contrário: comemorem o 25 de Abril com dignidade mas sem espalhafato nem grandes despesas.

Tenho dito repetidamente que não gosto de comemorações. Também por isso, não vibrei com o anúncio, feito pelo presidente da Câmara de Lisboa, de que a partir do próximo ano, além do 25 de Abril, se comemorará com pompa e circunstância o 25 de Novembro. Poupem-nos a mais comemorações! Julgo que as pessoas ficariam mais felizes se ouvissem Carlos Moedas dizer: os tempos estão difíceis, vamos comemorar o 25 de Abril com dignidade mas sem espalhafato nem grandes despesas. Isto, sim, seria o discurso certo. Valha a verdade que, nos dois discursos oficiais do 5 de Outubro em Lisboa – o do Presidente da República e o do presidente da Câmara – o tom foi muito mais contido do que em comemorações anteriores. E ficou claro nas entrelinhas que a I República não foi um mar de rosas mas um período muito complicado. Até há poucos anos, toda a classe política se desfazia em elogios ao republicanismo, às glórias da República, à ‘ética republicana’, à revolução que abrira na história de Portugal uma nova aurora de paz e prosperidade. Ora, a revolução de 5 de Outubro foi tudo menos isso. Limitou-se a pôr um Presidente no lugar do Rei – e nada mais mudou. As guerras partidárias continuaram, o tráfico de influências também, os episódios sangrentos repetiram-se. A República não resolveu um único problema que vinha da última fase da Monarquia, e agravou vários: a economia piorou, a intolerância aumentou e cometemos a asneira de mandar soldados mal treinados para França, onde foram carne para canhão (dos alemães). Por isso, glorificar hoje a República é uma tolice. Mesmo aquela ideia de que na República havia mais liberdade do que na Monarquia não é verdadeira. Os padres eram perseguidos, os jornais conservadores eram assaltados, o Partido Democrático de Afonso Costa era omnipresente e impunha uma ditadura: a chamada ‘ditadura democrática’ (ou seja, a ditadura do Partido Democrático), termo bizarro pelo paradoxo que encerrava. A propósito de ‘ditadura democrática’ – não a dessa época mas a de outra muito posterior, já pós 25 de Abril – conto um episódio passado comigo que é bastante revelador. Em 1979 foi fundado um jornal diário chamado Portugal Hoje, que sucedia a A Luta e estava, como este, ligado ao Partido Socialista. O diretor era um jornalista tarimbeiro de nome João Gomes, um daqueles socialistas que se apresentavam como herdeiros do ‘espírito republicano’; o diretor-adjunto era um cronista fino que assinava Nuno Brederode Santos. E foi este que, antes da fundação, me convidou para escrever uma coluna de opinião. E deixou claro que a minha liberdade era total: «Você, se quiser, pode acusar o Mário Soares de sodomia», disse-me com a sua peculiar ironia. Aceitei. Escrevi meia dúzia de artigos. Até que, um belo dia, ao comprar de manhã o jornal, verifiquei com estupefação que a página onde era suposto vir o meu texto (julgo que a página 3) era totalmente ocupada por um anúncio da Intersindical. Telefonei para alguém do jornal, que me confidenciou: «O João Gomes começou a folhear o jornal impresso e, depois de ler o seu artigo, correu à sala das máquinas, mandou parar a rotativa, tirou o seu texto e encheu a página com aquele anúncio». Era difícil acreditar. Já não sei o que escrevia nesse artigo, mas não ultrapassaria os limites da urbanidade, pois não era esse (nem é) o meu estilo. Por outro lado, nessa época o PS e o PCP estavam em guerra aberta – e não era normal um socialista tirar um texto de opinião para o substituir por um anúncio da central sindical afeta ao Partido Comunista. Posso, pois, considerar-me uma vítima do ‘zelo censório republicano’, sem precisar de chamar ‘sodomita’ a Mário Soares, como ironizara Brederode Santos. Uns dias depois, um jornalista amigo, confirmando o que o outro dissera, dar-me-ia um exemplar dos primeiros jornais impressos, onde ainda vinha a minha coluna. Contei este episódio a Marcelo Rebelo de Sousa (na altura diretor-adjunto do Expresso e responsável pela secção Gente) que ali reproduziu, lado a lado, as duas versões da página 3 daquela edição do Portugal Hoje: uma com a coluna de opinião, outra com o anúncio. Por estas e por outras, prezo muito a liberdade. E não simpatizo com eventos onde, pela sua própria natureza, a liberdade crítica está ausente.