Como os exploradores dos séculos passados cujas as crónicas lia fascinado quando era só um miúdo, Hubert Reeves decorou esse retrato que em tempos chegou a ser muito comum, o das crianças que colecionavam mapas e estampas, que partiam dos seus anseios e apetites para desenvolver escalas sobre a vastidão do universo, que atacavam os livros de divulgação científica e esses projetos fenomenais do conhecimento que foram as grandes enciclopédias em busca de alimento para compor os seus devaneios à volta do quarto.
Começava cedo esse desejo de percorrer o mundo, lançar redes sobre o além, e este astrofísico franco-canadiano veio provar como é através do olhar que o isco da imensidade nos agarra: «À noite o sol desce no horizonte e, no braseiro de cores que se acende a ocidente, o seu lugar exato torna-se presente […]. A obscuridade abre-nos o céu. O alcance do nosso olhar estende-se por milhares, mesmo milhões de anos-luz. O vasto universo entra no nosso campo visual». Pela forma como sempre buscou apoiar-se no ímpeto de invenção e nas poderosas intuições dos poetas no seu esforço de tornar compreensíveis as descobertas feitas no campo da ciência, Hubert Reeves, que morreu a 13 de outubro, aos 91 anos, ficou conhecido como o «poeta das estrelas».
Nos últimos anos, apesar do seu otimismo radiante, reconhecia que a beleza do mundo estava ameaçada pelo sexto episódio de extinção em massa na Terra, e via uma «pulsão de morte» que tinha tomado conta do comportamento da atual civilização, que estava a alterar profundamente a configuração da vida no planeta. E, no entanto, recusava-se a assumir um diagnóstico apocalíptico, preferindo uma certa reserva, como se nota na entrevista que deu ao Público em 2014: «O futuro é desconhecido. Não acredito que os seres humanos possam exterminar a vida. Ela é muito robusta, muito mais adaptável do que pensávamos antes. Encontramos sempre novas formas de vida que são muito mais resistentes do que pensávamos e por isso ela continuará». Admitia, contudo, que era possível conjeturar que, desses mesmo futuro, a humanidade não viesse a fazer parte, e que podem bem vir a ser os vírus e as bactérias a herdar o planeta. Assim, para aqueles que gostam de negar os efeitos do desastre climático que atravessamos, há sempre a possibilidade de lembrar que o futuro até parece risonho, dependendo do ponto de vista. «A questão é o futuro do ser humano. Possivelmente, mais tarde, outra espécie animal poderá desenvolver inteligência. Há poucos milhões de anos, uma espécie recebeu um dom da natureza e uma inteligência fantástica e é hoje em dia este dom que ajuda estas pessoas a viver num ambiente hostil. Mesmo que a humanidade desapareça, ninguém sabe o que pode acontecer dentro de 100 milhões de anos».
Apesar do seu esforço para alertar para os problemas ambientais e a crise climática, havia no tom de Reeves uma capacidade de relativizar as nossas noções sobre o que se segue. Em Já não terei tempo, Reeves afirma que a astronomia e a ecologia podem ser vistas como as duas faces do mesmo tema: a nossa existência. «A astronomia, ao contar-nos a história do Universo, diz-nos de onde viemos e como chegámos até aqui. A ecologia, ao dar-nos a conhecer as ameaças ao nosso futuro, tem como objetivo dizer-nos como nos mantermos nele». Ao invés de recair enfaticamente no drama, encarava todos os fenómenos com curiosidade mais do que propriamente com um sentido de urgência desgastante, talvez por estar convencido de que o que virá a acontecer não depende da nossa vontade.
O que este astrofísico se recusava era a embarcar nos delírios da potência humana, deixando as artes divinatórias para mentes mais esotéricas e desavergonhadas, preferindo firmar o seu percurso no campo das matérias prováveis, e traçando assim esse retrato acolhedor que o Le Monde recupera ao falar num avô que nos contava histórias deslumbrantes e, simultaneamente, um feiticeiro que misturava os ingredientes do universo num caldeirão. «Um litro de Via Láctea, um extrato de Lua, alguns grãos misteriosos de matéria negra… Explicou-nos que éramos todos feitos de poeira estelar, pois a maior parte dos elementos que nos constituem, como o carbono, o oxigénio e o azoto, provêm diretamente das fornalhas estelares», regista o diário francês.
Nascido em Montreal, a maior cidade da província de Quebec, no Canadá, a 13 de julho de 1932, Reeves gostava de regressar à sua infância, ao encanto que os seus pais incutiram nele pelas ciências naturais, pela observação do céu à noite, e foi esse o balanço que lhe permitiu depois aproveitar-se do seu entusiasmo pela matemática, como uma linguagem invulnerável à subjetividade, para trilhar um caminho pela física teórica, que estudou primeiro em Montreal e depois nos EUA, na Universidade de Cornell, no Estado de Nova Iorque, onde, recorda, «se encontravam os fundadores da astrofísica nuclear. Havia a magia das grandes universidades americanas, onde nos sentimos capazes de fazer grandes coisas. Havia uma criatividade contagiante que nos dava asas». O Le Monde regista a forma como Reeves mergulhou no passado do Universo, dando-se conta de que ser astrofísico era tornar-se o historiador do cosmos e da matéria. «Estava particularmente interessado em três elementos leves – lítio, berílio e boro – demasiado grandes para terem sido criados na altura do Big Bang, mas demasiado frágeis para terem sido concebidos no fogo termonuclear das estrelas». No início dos anos 60, dava aulas em Montreal e tornou-se conselheiro científico da NASA, tendo sido responsável por formar toda uma geração que viria a dinamizar os departamentos de ciências espaciais que estavam a surgir por todo o lado nas universidades norte-americanas, isto numa altura em que uma das principais frentes na rivalidade entre as grandes potências no período da Guerra Fria era a conquista do espaço. Contudo, Reeves nunca teve grande paciência para as mesquinhezes do regime competitivo entre as nações, e desejava retomar um espírito de colaboração, desejando chegar à Europa.
Em 1964, tirou uma licença sabática e ensinou física nuclear na Universidade Livre de Bruxelas, e não demoraria muito para ser convidado a partilhar os seus conhecimentos em França. Este foi um ponto de viragem na sua vida, acabando por se tornar diretor para a investigação do Centro Nacional para a Investigação Científica de França. Depois vieram os livros, e o seu empenho em transmitir o entusiasmo pela ciência que cultivaram nele os seus pais. Esta sua segunda vida, nasceu através do incentivo que recebeu de tantos amigos, que gostavam de o ouvir discorrer ao longo de horas sobre os mistérios do cosmos, e foi dessa forma que surgiu um primeiro esboço do livro Patience dans l’azur, cujo título é um verso de Paul Valéry (na edição portuguesa), publicada pela Gradiva na coleção orientada por Carlos Fiolhais, tomou-se a liberdade de ir buscar a Mário Sá-Carneiro o verso Um Pouco Mais de Azul. Na altura, aquele primeiro manuscrito foi enviado a uma trintena de editores, e todos se recusaram a publicá-lo, por considerarem que a astronomia não interessava a ninguém. Quando Reeves já não via outro destino para o seu livro que não a gaveta, o físico Jean-Marc Lévy-Leblond, que dirige a coleção ‘Science ouverte’ das Editions du Seuil, sugeriu-lhe que escrevesse um livro. Da gaveta para os prelos foi um salto, e a edição chegava aos escaparates em 1981, tendo os franceses acolhido aquela obra em que, em vez de uma dissecação árida do cosmos, servia dele uma perspetiva enredante que tornava a sua exploração algo tão incitante como a sensação de se ler um bom romance. «Disseram-me que teria sorte se vendesse três mil exemplares. Atualmente, vendemos mais de um milhão de exemplares e está traduzido em mais de trinta línguas», declarava Reeves ao Le Monde em 2002. Seguiram-se mais trinta livros.