AH! O tempo… Como ele passa. Até nos pormenores, que neste caso até era um pormaior, como diria o Carlos Pinhão. Vamos, por exemplo, até Março de 1964, dia 7. O Sport Club Lusitânia, mais popularmente chamado de Lusitânia dos Açores, esse mesmo que hoje pelas quatro e meia da tarde defronta o Benfica na terceira ronda da Taça de Portugal (por causa das exigências tem de saltar da sua ilha, a Terceira, para jogar no Estádio João Paulo II, em São Miguel), tinha acabado de obter uma vitória de estadão sobre o campeão moçambicano, o Ferroviário de Lourenço Marques, no Estádio Municipal de Angra do Heroísmo – 3-1. Contemos a história como deve ser para que não se ofereça a confusões.
Nessa altura, Portugal podia andar por aí a armar aos cucos deitando da boca para fora o salazarento discurso de império único e indivisível do Minho a Timor mas já ninguém engolia a patranha. A Índia Portuguesa tinha sido invadida por essa figura apresentada como sinistra que dava pelo complicado nome de Jawaharlal Nehru, o Pandita, e no que respeitava ao futebol havia, como seria de esperar, súbditos de primeira, de segunda e de terceira classe. As equipas dos Açores, por exemplo, ficavam-se pelo campeonato regional e era um pau. Não tinham acesso a medirem-se com as da Metrópole excepto numa situação caricata inventada à medida de engrampar o parolo: a partir dos quartos-de-final criou-se uma eliminatória especial na qual se defrontavam os vencedores de um campeonato que juntava os campeões das colónias africanas e o vencedor de um confronto entre o vencedor do Regional da Madeira e do Regional dos Açores. Ora tubérculos para a tafularia.
Andavam os outros a dar o coiro, se me permitem a expressão, enquanto os das colónias (as ilhas eram uma espécie de colónias no meio do mar) num embate a dois jogos garantiam uma das meias-finais. É evidente que a debilidade das equipas ultramarinas era tão vincada que para o outro semi-finalista limitava-se a um pró-forma.
Ganhar e desistir!
Quase parece uma das frases bombásticas do Manuel João Vieira quando lhe dá na mona concorrer à Presidência da República mas foi mesmo assim que o assunto se resolveu. Os golos de Eduardo Martins, Teófilo e Airosa (contra o de Mombaca) davam uma vantagem confortável para a segunda mão e a rapaziada da Casa de Dona Violante do Campo, o lugar onde nascera o Lusitânia, em 1922, indo, curiosamente, buscar o nome ao avião com que Gago Coutinho e Sacadura Cabral iniciaram a sua travessia do Atlântico Sul, estava otimista. Como 14.ª delegação do Sporting Clube de Portugal, tinha sido fácil adotar um equipamento às riscas verdes e brancas.
Nessa tarde de Março, quatro mil pessoas foram assistir ao embate com o campeão moçambicano (e das colónias africanas) e saíram do campo convencidas de que iriam defrontar o FC_Porto na meia-final. Por seu lado, os rapazes de Lourenço Marques não se davam por vencidos: «Temos todas as possibilidades de virar o resultado na segunda mão», avisava o ponta-de-lança O’Neill.
Vamos e venhamos: se estas eliminatórias da Taça de Portugal já tinham muito que se lhe diga, ainda mais haveria para dizer se se acrescentar que a malta das colónias não tinha hipótese de se defender nos seus próprios campos. Era o que faltava ir agora o Lusitânia até às bordas do Pacífico defender os dois golos de vantagem em Lourenço Marques! A révanche ficou macada para a Tapadinha e foi um pau. Sem ritmo para muito mais, o assunto ficou-se por um 2-2 que apurou os angrenses. Momento histórico, sem dúvida. Afinal uma meia-final da Taça de Portugal não é nada para deitar fora, pois não?
E, como é hábito no futebol em Portugal, deu-se a tranquibérnia: se o FC_Porto deveria jogar a primeira mão nos Açores, deu-se a contrariedade de não encontrar voos para o dia marcado. E agora? Que fazer? Os angrenses não ficaram muito aflitos. Talvez já esperassem por uma das habituais goleadas. A_Federação Portuguesa de Futebol meteu-se ao barulho e não fez mais do que a sua obrigação. Ouviu uma parte e ouviu a outra. E recebeu da parte dos dirigentes do Lusitânia uma proposta tão conveniente que foi um encanto: os açorianos predispunham-se a desistir das meias-finais da Taça de Portugal se quem mandava no FC_Porto se responsabilizasse pela compensação exigida – um encontro particular marcado para Angra do Heroísmo mal as ligações entre o continente e a ilha fossem restabelecidas. Não houve grande heroísmo na atitude, é preciso dizê-lo, mas o futebol é mesmo assim, pratos de lentilhas servem de moeda para muitos negócios.
A meia-final entre Lusitânia e FC_Porto não existiu. O que não deu grande vantagem aos portistas, pelos vistos, batidos sem apelo nem agravo na final, por 2-6, pelo Benfica. O momento, esse, ficou guardado na memória de um clube já centenário que prepara a festa, em ilha alheia, para receber o campeão nacional, o Benfica. Quem sabe? Quem sabe se vai ainda a tempo? Ah! Esse maldito tempo que nunca pára para fazer as pazes com o Destino e as contas com a História. Seja lá como for, o país voltou a ouvir falar do Lusitânia. Só isso é uma vitória.