Da porrada que a vida distribui pelos homens (muito mais a uns do que a outros, é claro), alguns têm a capacidade de fazer disso um talento. E Hollywood já teve mais encanto por essas figuras que encarnam noções de precariedade e de falência. Para abordar a condição dos homens, para chegar a ter pena deles, primeiro passa-se pelo nojo antes de chegarmos à ternura. E para falar de Burt Young não basta dizer que foi um desses duros aos quais os realizadores recorriam para aguçar a verosimilhança das suas histórias, isto num tempo em que o cinema era a mitologia dos homens comuns. Havia nele, para lá daquela consistência de um tipo baixote e corpulento, uma certa nota de frustração, mesmo nas situações das quais saía vitorioso. Com aquele ar meio pesaroso e arrastado, «aquela pinta de bulldog e o semblante carregado», como refere o obituário do The New York Times, Young foi um desses atores secundários com uma carreira prolífica no grande ecrã, contando com mais de 160 créditos no cinema e na televisão. Representou muitas vezes um chefe da máfia, um detetive matreiro com experiência nas lides ruaceiras ou um trabalhador maltrapilho. Este ator nascido em Queens, Burt Young, um ator corpulento, nascido em Queens, e que tropeçou no seu destino quando andava embeiçado por uma miúda, aproveitou aquele seu ar desgastado e a atitude despojada para se tornar um desses personagens que emprestam autenticidade a filmes como Chinatown, Era Uma Vez na América e, sobretudo, Rocky, fiolme pelo qual Young se viu nomeado para um Oscar. O ator morreu a 8 de outubro em Los Angeles, sem causa anunciada, mas a notícia só foi confirmada ao Times pela filha, Anne Morea Steingieser, dez dias depois. Burt Young tinha 83 anos.
A capacidade que Young tinha de destacar-se e entrar em combustão sem aviso, dava-lhe a capacidade de roubar a cena nos momentos certos, e, por isso, mesmo quando interpretava um vilão, nunca se confundia com o genérico canastrão que cospe as deixas em tom raivoso. Havia ali uma subtileza que tinha acesso a um passado em que fora muitas vezes singularizado como um miúdo problemático, um tipo conflituoso, que chegou a ter uma breve e bem sucedida carreira como pugilista profissional, tendo trocado os primeiros murros no ringue no período em que adquiriu alguma disciplina enquanto fuzileiro naval. Havia, por isso, camadas e um nível de complexidade nas suas interpretações, em que o seu temperamento denunciava um longo historial de fracassos. O professor de representação Lee Strasberg, cujas aulas Young frequentou, descreveu-o certa vez como uma «biblioteca de emoções».
Aos 20 e poucos anos, depois de ter pendurado as luvas, era um biscateiro, e a certa altura conseguiu um rendimento fixo no negócio das carpetes, limpando-as, vendendo-as, instalando-as, e foi então que se encantou pela miúda que lhe servia bebidas num bar e que lhe confessou que o9 seu sonho era estudar representação com Lee Strasberg. Young nunca tinha ouvido tal nome, e até achou que seria alguma mulher, mas viria a perceber que a representação, seguindo a disciplina do «método» era a terapia perfeita para ele, uma vez que lhe permitia lidar com as suas frustrações e agressividade, afiná-las e pô-las a render.
A sua forma de encarnar os papéis sem rodeios, sem abrilhantar a cena, não demorou a causar uma boa impressão, e conseguiu alguns papéis em grandes produções, como Mafiosos Enlatados, de James Goldstone, Os Detetives, de Barry Shear, O Passe da Meia-Noite e Ladrão Que Rouba a Ladrão, ambos de Mark Rydell, O Vício do Jogo, de Karel Reisz… Mas foi a colaboração com outro desses durões de Hollywood, o cineasta Sam Peckinpah, que viria a ser mais frutuosa, tendo sido dirigido por ele em Assassinos de Elite (1975), protagonizado por James Caan, e Convoy (1978), protagonizado por Kris Kristofferson e Ali MacGraw. «Eram ambos rebeldes e fora da lei, com um profundo respeito pela arte», disse a filha de Young ao Times. «Chegaram a um perfeito entendimento por causa da intensidade e da honestidade que Peckinpah exigia. Ele não tinha paciência a falta de autenticidade».
No início da década de 1970, Young fez ainda aparições memoráveis em séries de televisão como M*A*S*H, e revelou o seu talento para roubar a cena na sua poderosa, ainda que breve, aparição em Chinatown (1974), a obra-prima neo-noir de Roman Polanski, como um corno que, na cena inicial do filme, recorre ao detetive privado Jake Gittes, interpretado por Jack Nicholson, que assim se vê embrulhado numa história de incesto e homicídio. Mas aquele que viria ser o grande sucesso, e o papel pelo qual mais o recordamos, só veio dois anos mais tarde, ao dar vida a Paulie Pennino em Rocky, de John G. Avildsen. Na altura, Young era o único ator do elenco com créditos firmados e, como ele gostava de destacar, foi quem recebeu a soma mais choruda, num filme feito com poucos recursos e cuja vida atribulada veio a fazer deste inesperado sucesso uma dessas lendas de Hollywood, e a rampa para uma das carreiras de maior sucesso, sendo impossível traçar uma fronteira precisa entre Rocky Balboa e Sylvester Stallone, que não apenas protagonizou o filme como tinha escrito o guião. Young encarnou o melhor amigo daquele pugilista a quem ninguém dá grande crédito, mas que acaba por conseguir um combate frente ao campeão de pesos pesados, Apollo Creed (Carl Weathers). Quanto a Paulie, este acaba por funcionar como uma síntese formidável daquilo que Young tinha para oferecer como ator, um alcoólico com um coração de ouro que trabalhava num matadouro em Filadélfia, e além de ser o melhor amigo de Balboa, era também o irmão de Adrian, a mulher introvertida introvertida que se torna a namorada do protagonista.
O filme era um verdadeiro drama, anguloso, e em muitos aspetos bastante sombrio, com a realização de John G. Avildsen a dar tempo para que Rocky, Paulie e Adrian se impusessem como personagens invulgarmente complexas, que se esforçam por engolir todos os golpes que a vida lhes serviu, para se levantarem e irem mais longe. Estava muito longe das sequelas, quase sempre caricaturais, todas elas, exceto uma, dirigidas por Stallone. «Na verdade, não era uma história de luta, era uma história de amor, sobre alguém que não desiste e se levanta sempre que é derrubado», disse Young sobre o primeiro filme numa entrevista de 2006 ao Bright Lights Film Journal. «Nem sequer ganhava, apenas se levantava». Isso bastou para que Rocky se tornasse um marco da década de 1970, sendo nomeado para 10 Óscares, incluindo Young para melhor ator secundário. Acabou por conquistar três Óscares, entre eles o de melhor filme.