Bobby Charlton. O homem que viveu duas vezes

Nome maior do Manchester United, no espaço de dois anos foi campeão do Mundo (1966) com a Inglaterra e campeão da Europa com o seu clube de sempre (1968), de ambas as vezes batendo o seu amigo Eusébio. Morreu no passado dia 21.

Quando, pelo meio daquele inferno de chamas e ferros retorcidos em que se transformara o Airspeed Ambassador de nome Elizabethan que, pelas 14h31 do tempestuoso dia 6 de fevereiro de 1958 fazia a sua terceira tentativa de levantar voo do aeroporto de Munique onde efetuara escala, vindo de Belgrado, para reabastecimento, Harry Gregg olhou em redor por entre os fios de sangue que lhe embaraçavam a visão, percebeu que os seus companheiros de equipa Jackie Blanchflower, Dennis Violet e Bobby Charlton estavam presos aos lugares pelos cintos de segurança mas sem sentidos. Lançou-se num tremendo trabalho de salvamento que lhe valeria para sempre a alcunha de Herói de Munique.

Gregg, nascido em Tobermore, na Irlanda do Norte, era um homem forte e corpulento. Por um dos buracos da fuselagem conseguiu tirar para fora do aparelho destroçado todos os que ainda respiravam à sua volta. O que ficaria mais famoso deles dava pelo nome de Robert Charlton, natural de Ashington, Northumberland, e tinha apenas 21 anos. Foi a sua primeira morte. A segunda teve lugar agora, no passado 21 de outubro. Todos o conheciam por Sir Bobby Charlton, figura maior do Manchester United, campeão do Mundo em 1966, vencedor da Taça dos Campeões Europeus em 1968, Bola de Ouro também em 1966. Um gentleman. Como escreveu um dia Bob Dylan: “Goodbye’s too good a word, so I just say fare thee well”. Da minha parte – “It’s was a privilege, Sir!”

Das 44 pessoas que iam, nesse dia, a bordo do voo G-ALZU da British European Airways (BEA), vinte perderam a vida. Entre eles alguns jogadores com que Matt Busby, o treinador do Manchester United, prometera construir a equipa mais forte da Europa: Geoff Bent, Roger Byrne, Eddie Colman, Duncan Edwards (sobreviveu ao acidente mas faleceu na cama de hospital 15 dias mais tarde), Mark Jones, David Pegg, Tommy Taylor e Billy Whelan. Duncan Edwards era, de todos, o mais brilhante e o centro do trabalho de Busby que queria montar o conjunto em seu redor. Sem Duncan, o passo seguinte foi fazer de Bobby Charlton o ponto axial do grupo. Bobby não deixou ficar mal o seu treinador nem os adeptos do United e do futebol em geral. Tornou-se um jogador excecional, com características técnicas, táticas e físicas que fizeram dele, muito provavelmente, o melhor jogador inglês de todos os tempos.

Não era um sujeito expansivo. Levava tudo muito a sério. O sorriso só lhe despontava na cara em situações muito especiais. Era também um gentleman. Um dos maiores cavalheiros que o jogo conheceu. Sir Bobby Charlton. Havia sempre nele uma certa distância. Uma distância suficiente para, apesar de o ter conhecido bem, e de ter estado com ele muitas e muitas vezes, em diversos locais do mundo, não ter sido possível jamais considerá-lo um amigo. Era demasiado formal. Ou, se preferirem, demasiado britânico.

Uma tarde de chuva em Stamford Bridge

A vida proporcionou-me muitos momentos curiosos, muitas situações irrepetíveis. Tive sorte. Ao longo de uma carreira que se aproxima vertiginosamente do fim, o destino deu-me a oportunidade de ter conhecido relativamente bem todo os grandes jogadores do mundo de várias gerações, excetuando Diego Armando Maradona, com o qual só me cruzei e conversei um par de vezes. A primeira vez que pude gozar da disponibilidade sempre amável de Sir Bobby Charlton foi em Gotemburgo, em janeiro de 1992, na cerimónia gigantesca de apresentação de candidatura da Inglaterra à organização da fase final do Campeonato da Europa de 1996, altura em que Portugal também quis fazer papel de candidato com uma intervenção pindérica de fazer envergonhar as pedras da calçada do Rossio.

Bobby Charlton era, por assim dizer, a figura mais emblemática do trabalho de diplomacia levado a cabo pela The Football Association e, depois de me ter assinado um livro primoroso que divulgava até ao mais pequeno pormenor todas as vantagens da candidatura inglesa, predispôs-se a trocar uma série de ideias que só serviram para me confirmar o que sempre pensei sobre ele. Tinha um espírito arguto e uma objetividade segura e inabalável. Características que o fizeram transformar-se num dos maiores jogadores do seu tempo, um tempo em que os jogadores de dimensão extra-planetária abundavam pelos estádios deste pequenino planeta redondo e apenas ligeiramente achatado nos polos: Pelé, Eusébio, Tostão, Beckenbauer, Yashin, George Best, Cruyff e por aí adiante numa lista que não tinha fim.

Charlton jogou no United entre 1956 e 1973. 606 jogos oficiais pela equipa principal e 199 golos. Depois, como muitos outros, recusou-se a aceitar que o fim tinha chegado. Os seus últimos tempos no United foram tristes. A sua relação com a nova estrela da equipa, George Best, foi sempre complicada e Bestie não teve papas na língua quando demonstrou ter algum “desprezo” (sic) por andar a carregar às costas um grupo de velhos decadentes. Pior ainda foi a maneira como Gregg, o homem que lhe salvou a vida, o retratou em 1978, na cerimónia de homenagem às vítimas de Munique. Falando logo a seguir ao discurso de Bobby, o norte-irlandês também não teve qualquer pejo em desancar o seu velho companheiro de equipa: “Ouvi aqui palavras muito bonitas mas que não valem nada. Prefiro perguntar-me – o que é que Charlton fez durante estes anos todos pelas famílias dos nossos amigos que morreram?”.

Terminada a vida em Old Trafford e depois de um época no Preston North End, Bobby Charlton desperdiçou-se em jogos avulso com a camisola de clubes como o Waterford, da Irlanda, o Newcastle KB_United ou o Perth Azzurri, da Austrália. Quis ser treinador. Assumiu a carreira de manager no Preston tendo o seu antigo camarada Nobby Stiles como jogador-treinador. As coisas correram tão mal que Bobby decidiu que tinha de voltar a jogar para tentar fazer algo pela equipa. De pouco ou nada serviu. O Preston desceu de divisão e saiu em conflito com o presidente do clube John Bird. O futebol inglês parecia querer fechar-lhe as portas.

Em junho de 1996 eu estava em Inglaterra para cobrir o Europeu. Portugal estava finalmente de volta (desde 1986) à fase final de uma grande competição. A_UEFA decidiu que seria agradável fazer alguns jogos entre jornalistas e comentadores de rádio e de televisão nos dias mortos do torneio. Em Stamford Bridge reencontrei, mais uma vez, Sir Bobby Charlton. O treinador que nunca conseguira sê-lo ficou destacado para orientar a equipa composta por gente da imprensa internacional que defrontava os representantes da imprensa britânica. Foram, provavelmente, os momentos mais divertidos que partilhei com o ensimesmado Sir Bobby. Levou a sua tarefa a sério. Falou com os jogadores na cabina, quis ver-nos num aquecimento com bola para perceber as nossas características, deu-nos indicações. Tive ordens para jogar na frente, onde sempre quis jogar desde garoto, a ponta-de-lança. A meu lado tive a companhia de um sujeito com uma habilidade natural para tratar a bola: um holandês chamado Ruud Gullitt. Chovia fininho como é próprio de chover em Londres. O combate foi rijo. À boa maneira inglesa. “Thank you Sir Bobby for that unforgetable momment!”.

Tempos difíceis e mais uma vida

Usei o título do filme de Alfred Hitchock para este obituário, mas poderia ter dito que Sir Bobby Charlton, na realidade, viveu três vezes. De candeias às avessas com o seu United e com o futebol em Inglaterra, resolveu passar uns tempos na Austrália, funcionando como diretor de vários clubes e não se dispensando a fazer uma perninha de vez em quando. Curiosamente, foi nessa fase de afastamento que a Rainha Isabel II lhe atribuiu a Most Excellent Order of the British Empire. Regressou. Ocupou o cargo de responsável pela organização do futebol no Wigan Athletic mas, mais uma vez, mostrou que a carreira de diretor não era feita à sua medida. Decididamente, Sir Bobby Charlton andava perdido e procurava avidamente o seu lugar.

Mudou-se para a África do Sul, voltou a jogar avulso, com pouco respeito pelo seu próprio nome, envolveu-se em diversos negócios, sobretudo nos de exploração de ouro e joias, não conseguia manter-se quieto, abriu escolas de futebol e países como os Estados Unidos ou a China. A pouco e pouco a sua terceira e última vida começava a ganhar forma e passou a ser uma realidade quando Sir Matt Busby sentiu que já tinha chegado a sua hora e abandonou essa tremenda instituição do clube de Manchester que se chama Board of Directors, uma espécie de conselho de Estado, a despeito de, entretanto, o United ter sido comprado pela empresa da família americana dos Glazer. Os adeptos ficaram revoltados. Bobby Charlton, cooptado para o lugar de Busby, ficou encarregue de fazer chegar aos novos proprietários as preocupações naturais dos mais empedernidos dos fãs: “Tentei fazer ver-lhes a importância que os nossos adeptos sempre tiveram na construção deste que é um dos maiores clubes do mundo de todos os tempos”.

Nos seus últimos anos de vida, Sir Bobby Charlton tornou-se numa espécie de figura alegórica, utilizado tanto para dar a cara por uma nova política governamental de combate ao cancro infantil ou para ser embaixador dos Jogos Olímpicos de Londres. A pouco e pouco deixou de ser visto em público e desapareceu de Old Trafford onde deram o seu nome a uma das bancadas do estádio. A demência foi cruel para Sir Bobby, logo ele que cultivava tão bem a pose do gentleman que era. Agora, na hora da sua morte, muito poucos serão aqueles que não sabem quem foi Bobby Charlton. Olhem, ele próprio não sabia…