O pântano persegue Guterres

Guterres quis agradar a todos. Acontece que já não é Alto-Comissário para os Refugiados, mas Secretário-Geral das Nações Unidas.

Finalmente alguém levou António Guterres a sério. E, finalmente, o mundo ficou a conhecê-lo como nós o conhecemos. A família socialista saiu em socorro – até porque nunca se deixa um dos nossos caídos no campo de batalha. E Marcelo, claro, ou já não tivessem tocado campainhas e rezado juntos.

E lá vieram os ‘vulgarólogos’ dizer que não o devemos criticar porque é português – mesmo que diga disparates – e os ‘tudologistas’, que teve um momento infeliz e não queria dizer aquilo – mesmo que o discurso estivesse escrito. Não, este é o António Guterres que conhecemos, ou já nos esquecemos?

Jaime Gama apontou-lhe o ‘frenesim’ e Vasco Pulido Valente chamou-lhe a ‘picareta falante’. Este é o Guterres do bigodinho em homenagem a Salvador Allende; o monitor do curso de Formação Moral e Religiosa; o acólito ‘Tonico’ que por pouco não teve uma carreira eclesiástica – melhor seria que estivesse agora a pregar em Roma e não a borregar em Nova Iorque.

António Guterres, o homem do diálogo, devia saber que a palavra ‘mas’ é usada como conjunção adversativa ou como sinónimo de falha, defeito ou bloqueio; que essa conjunção expressa sentido de oposição; que antigamente o diabo estava nos detalhes e que agora o diabo está nos detalhes… da comunicação.

Há um ditado judaico que diz que justificar um erro é errar outra vez e um provérbio português que quem erra por natureza, não acerta por juízo. Os dois recordam-nos aquele que um dia foi primeiro-ministro de Portugal e nos deixou no pântano.

Este é o António Guterres do fiasco da ‘Agenda de Lisboa’ que, há vinte anos, prometia uma Europa com a economia mais forte do mundo; é o mesmo que foi considerado ‘mau’ governante por quase 90% dos gestores de topo portugueses. Aquele que se espalhou no PIB e confundiu autoridade com diálogo; o dos conselhos de ministros informais que nunca se lhes percebeu a utilidade.

Este é o António Guterres que tremia quando alguém ameaçava meter-se num autocarro para se manifestar à porta de São Bento e mandava dar-lhes o que pedissem; este é o Guterres que mandou construir, ou melhorar, dez estádio de futebol (quando só eram necessários seis), pois os camaradas socialistas ligavam-lhe indignados porque também queriam um novo, lá na terra. Sim, os estádios que estão às moscas não são filhos de pai incógnito.

Este é o António Guterres que conheci porque o acompanhei durante anos enquanto jornalista da RTP que cobria as atividades diárias do primeiro-ministro. Um homem bom, humanista, doce e cordial, mas com uma personalidade hesitante e permeável ao ambiente que o rodeia. E lá, nas Nações Unidas, são mais as resoluções que condenam Israel do que as que o defendem. E lá, nas Nações Unidas, não lhe faltam apoiantes da causa palestiniana.

Este é o António Guterres que tudo fez pelos timorenses, pelas migrações e refugiados. Estivemos juntos num dos maiores campos de deslocados do mundo, em Kakuma, e reparei como se emocionava. Viu como o mundo pouco se importou com a maior vaga de refugiados depois da segunda guerra mundial provocada pelas crises na Síria, Iraque, Iémen, Sudão e RC Africana – mais de sessenta milhões de almas que ninguém queria.

Por isso, sim, Guterres quis dizer o que disse. Quis agradar a todos, como sempre. Acontece que já não é Alto-Comissário para os Refugiados, mas Secretário-Geral das Nações Unidas.