Cerca de um ano depois da entrada em funções da Direção Executiva do SNS (DE-SNS), presidida por Fernando Araújo, foram publicados os estatutos deste novo organismo. A expectativa era grande. A ex-ministra Marta Temido criou este organismo que vem centralizar a organização do sistema com o objetivo de o tornar mais ágil e eficaz. E nomeou Fernando Araújo, conseguindo quase a unanimidade no setor. Mas deixou para o atual ministro a definição do organigrama, da estrutura e da definição de competências. Enquanto isso ficou em suspenso qual seria o destino e a relevância dos organismos que até agora administravam a Saúde e que tinham essas mesmas competências em exclusivo.
Depois da longa espera, no início de outubro, foi finalmente promulgada, apesar de já ter sido anunciada no verão, a estrutura do novo DE-SNS. Este documento espelha e define também as competências e a articulação entre a DE-SNS e os outros organismos que constituem o complexo edifício da Saúde. Estabelece-se, assim, uma estrutura alargada de trabalhadores, distribuídos por 11 departamentos (a grande maioria vindos de outras entidades que serão extintas), quatro serviços e três cargos de direção intermédias. Sendo ainda dotado de um orçamento de 30 milhões de euros. Muitas das competências que o organismo liderado por Fernando Araújo passa a assumir são retiradas às cinco Administrações Regionais de Saúde (ARS), entidades que desaparecerão até final do ano. Fica-se a saber nos estatutos que grande parte das competências não assumidas em exclusivo serão partilhadas com entidades como a Direção-Geral de Saúde (DGS), o Infarmed, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), entre outras. No entanto, a forma como essa partilha será feita, qual a divisão de tarefas, continua a ser uma incógnita.
Designação dos responsáveis de direção dos hospitais EPE e dos agrupamentos de centros de saúde (ACS), planeamento dos recursos humanos, afetação de recursos financeiros às instituições, serviços integrados ou financiados pelo SNS, definição dos planos de atividades anuais dos hospitais, celebração de parcerias público-privadas, gestão das redes nacionais de cuidados paliativos e de cuidados continuados e celebrar contratos-programa, execução de projetos de instalação e equipamento nas unidades do SNS, promover o desenho e a implementação das redes de referenciação hospitalar assim como as urgências metropolitanas e regionais, são tudo competências exclusivas da direção executiva do Serviço Nacional de Saúde. Entre outras.
Uma das críticas a este modelo é a centralização no DE e a falta de autonomia dos hospitais. Em declarações feitas ao Observador, Eduardo Costa, presidente da Associação Portuguesa de Economia da Saúde e investigador na Nova Medical School, diz que “uma das atribuições mais significativas, e que mais impacta os hospitais, é a definição das prioridades e das diretrizes a que devem obedecer os planos de atividades anuais dos hospitais. Continua a não ser possível aos hospitais delinearem e implementarem, sem intervenção externa, os planos de atividades. A autonomia, que os administradores hospitalares reclamam e que tem sido condicionada pelo Ministério das Finanças, continuará, assim, limitada”.
Personalização perigosa Por sua vez, Miguel Soares de Oliveira, médico e ex-presidente do INEM, afirmou ao Jornal I que o “enorme defeito” do novo estatuto é “a centralização total” e que o sucesso da direção executiva fica dependente do perfil do seu presidente. “Quem vier a seguir pode não ter as mesma características do atual. Os estatutos estão muito centrados nas características de quem lidera e isso é perigoso”, apesar de considerar que o atual tem de facto as características necessárias. “Mas uma reforma não se pode fazer com critérios subjetivos”, adverte.
Outra questão considerada relevante é a possível perda de relevância política e efetiva da DGS, uma organismo essencialmente político que vê as suas competências exclusivas diminuírem e as partilhadas com a DE-SNS multiplicarem-se. A partir de agora a direção executiva vai passar a gerir a área da saúde pública, indo buscar algumas competências exclusivas à DGS, como ao Departamento de Gestão da Doença Crónica e o de Gestão de Qualidade em Saúde e Segurança do Utente. “Pode haver um impulso para capturar áreas de intervenção da DGS que devem ser tecnicamente independentes e devem ser poderosas”, pois “há uma zona de nevoeiro entre onde acaba a ação política e onde começa a ação da Direção Executiva”, segundo confessou, ao Eco, o ex-ministro Adalberto Marques Fernandes, a propósito dos novos estatutos.
Outras áreas são de competência partilhada, como sejam, monitorizar a implementação de projetos de boas práticas de promoção de estilos de vida saudáveis; elaborar e promover programas de promoção da literacia em saúde; promover e coordenar o desenvolvimento e avaliação de instrumentos, atividades e programas de melhoria da qualidade das unidades de saúde e certificar essas mesmas unidades.
A portaria tem “demasiadas vezes a palavra ‘articulação’ em matérias onde se esperava que a Direção Executiva tivesse capacidade de decisão, em lugar de consenso articulado”, disse o economista e professor da Nova SBE, Pedro Pita Barros ao mesmo jornal digital. E o perigo é existirem situações em que pode haver um passar de culpas perante as indecisões e “só o que for consensual para as partes que têm de articular será decidido”, uma vez que quando “houver divergências de opinião, não é claro como a ‘articulação’ vai resolver”, explicou o especialista.
Mais. Também não é evidente a divisão de competências entre a Direção Executiva e a Administração Central do Sistema de Saúde, como será gerido o financiamento, quanto aos recursos humanos, as dúvidas prendem-se com questões como quem negoceia com os sindicatos – se o Governo se a direção executiva, quais as funções concretas da ACSS e como funcionará a sua relação com os hospitais. São questões que não têm resposta nos estatutos.
Como tudo isto vai ser implementado no terreno, a par com as inúmeras articulações e partilhas e sem que esteja definida as formas de financiamento, são as nuvens que pairam sobre a nova reforma. O estatuto que, apesar de tudo, foi bem acolhido por todo o setor. Que espera, com ceticismo, para ver como será aplicado, desenvolvido e esclarecidas as dúvidas.