Frederico Morais. “O surf é um desporto especial”

Os pais e a irmã adaptaram a sua vida ao talento de Frederico, também conhecido por Kikas, e viajaram por todo o mundo, proporcionando-lhe uma formação e aprendizagem bem-sucedidas.

Frederico Morais nasceu numa família ligada ao desporto. O pai Nuno Morais jogou râguebi, tal como o tio, Tomaz Morais, que foi jogador e selecionador nacional. Aos cinco anos já deslizava pela crista das ondas numa prancha de bodyboard; aos seis teve a sua primeira prancha de surf e aos sete enviou uma carta para a revista Surf Portugal, onde dizia: “Olá. O meu nome é Frederico Morais e ainda vão ouvir falar muito de mim”. Aos 14 anos, disputou a primeira final. Esteve muito tempo no terceiro lugar, depois apanhou duas boas ondas, passou para a frente e conquistou o título nacional de Sub-21, ou seja, era um miúdo a competir com adultos. Os pais e a irmã adaptaram a sua vida ao talento de Frederico, também conhecido por Kikas, e viajaram por todo o mundo, proporcionando-lhe uma formação e aprendizagem bem-sucedidas. Depois, foi sempre a rasgar ondas e surfar sobre vitórias. 

Começou a competir em provas internacionais e a disputar finais com nomes sonantes. É um regalo ver Frederico Morais dentro de água. Pratica um surf veloz e exuberante. O currículo fala por si. Foi o segundo português a entrar no World Championship Tour (WCT), depois de Tiago Pires, e é aquele que conseguiu os melhores resultados. Em 2013, ganhou a Kelly Slater, um dos melhores de sempre e 11 vezes campeão do mundo. Chegou ao top 10 mundial em 2021 – só dois surfistas europeus o tinham conseguido –, e disputou uma final. Depois de ter saído do CT no cut da época passada, Frederico Morais voltou ao Challenger Series com o objetivo de reentrar no circuito mundial em 2024, que terá 9 eventos e passagem por Peniche, entre 6 e 16 de março. Com exibições de grande nível garantiu a qualificação na última etapa, no Brasil. No final do heat decisivo foi evidente a sua satisfação e a do treinador, Richard Marshal, com quem trabalha há 15 anos. “Esta é por Portugal! Estou de volta ao Championship Tour e é para ficar”, disse, agarrado a bandeira nacional. 

Foi a terceira vez que se qualificou para o Championship Tour, qual a sensação?

Estou super contente. O Challenger Series é um circuito com excelentes surfistas. Tem seis etapas, mas só contam quatro resultados, pelo que a margem de erro é mínima, tem de haver grande consistência para ficar no top 10 e garantir um lugar no World Tour. É complicado dizer se foi o mais difícil de sempre, porque nos outros anos qualifiquei-me sempre no mesmo registo, e cada um teve um sabor especial. Mas fácil não foi. As etapas foram muito renhidas, foi dos anos com pontuações mais altas.

O objetivo para 2024 é entrar no top 10 ou pretende ir mais além e vencer provas?

Honestamente ainda não pensei nisso. Vou com calma, passo a passo. O principal objetivo é manter-me no World Tour. Com o desenrolar do ano podem surgem outros objetivos, entrar no top 10 é um deles e já o alcancei antes. Quando estamos no World Tour queremos sempre fazer mais e melhor e procuramos novos desafios. 

O que significa estar na elite mundial?

É o sonho de qualquer surfista, quando decidi ser profissional foi com esse objetivo. A qualificação em 2017 foi o culminar de muitos anos de trabalho, sempre com a minha família a ajudar. Não foi apenas uma vitória minha, foi também das pessoas que sempre me ajudaram. Foi uma vitória conjunta que gosto de partilhar com os portugueses, que me apoiaram imenso.

Querer ser profissional e chegar ao World Championship Tour foi um risco? 

Assumir isso foi um risco, pois podia nunca lá chegar e, depois, tinha as pessoas a apontar o dedo. Decidi dizê-lo abertamente também para me por à prova. No ano em que me qualifiquei perdi todos os medos e inseguranças que tinha sobre o meu valor. 

Disse que quando está no mar, bem longe da costa, está bem. O que significa isso?

Estar no mar é estar em paz. O mar é um estádio natural, sem público, onde sou feliz e estou completamente sossegado, principalmente num heat em que os atletas não comunicam uns com os outros, cada um está focado naquilo que tem de fazer naqueles 30 minutos. Em Ribeira d´Ilhas, como estamos longe da praia ainda ouvimos menos as pessoas.

Isso é bom ou mau?

Adoro que seja assim, eu e o mar. É bom poder tomar decisões de forma tranquila. Mesmo quando estou a treinar é ótimo sentir essa tranquilidade. Vou muitas vezes para o Guincho, é das praias mais bonitas do mundo, e quando estou a surfar e a olhar para a serra de Sintra isso faz-me muito bem. O meu trabalho é surfar, mas quando preciso de relaxar também vou surfar.

Que ensinamentos tira da prática do surf?

O maior ensinamento é o respeito que deve existir dentro de água, o surf ensina-nos a estar na vida. Para haver um bom funcionamento tem de existir um enorme respeito pelos mais velhos e pela ordem de prioridades para apanhar uma onda. São ensinamentos que levamos para toda a vida. Uma das coisas mais preciosas que temos é o respeito por nós próprios e pelos outros. No surf ganha-se essa consciência desde muito cedo. Outro ensinamento importante é o respeito pela natureza. Como surfista acho que posso e devo desempenhar esse papel para a preservação dos oceanos. O surf tem outro aspeto positivo que são os destinos muito bonitos onde competimos. Viajamos sempre em família para destinos lindíssimos. Aproveitávamos as férias para viajar pela Austrália, Havai, Maldivas, França e Canárias e divertíamo-nos imenso.

Depois de ter competido com os melhores surfistas do mundo, o que faz a diferença entre os muito bons e os fora de série?

Quando chegamos a este nível há aspetos que fazem toda a diferença como a vontade, o espírito de sacrifico e a disponibilidade para abdicar da nossa vida em prol de trabalhar mais para ter um resultado melhor. Tenho a sorte do meu pai e do meu tio me terem transmitido essa visão. No ano passado falhei o casamento da minha irmã porque estava a competir na África do Sul. Felizmente, ganhei o meu heat. Temos de estar preparados para abdicar de certas coisas da nossa vida. No dia em que começarmos a vacilar somos completamente engolidos pelos outros.

Alguma vez sentiu que o mar não foi justo consigo?

Tantas vezes, é o que mais sinto. Quando vêm as ondas nunca sabemos qual é a onda boa e a onda má. Tento perceber a forma e o ângulo da onda para ver se dá para fazer várias manobras e ter uma boa nota. Tem muito de intuição, no oceano há sempre variáveis. Mas é igual para todos os que estão dentro de água. Tento fazer o melhor, mas às vezes a decisão não é a correta. O pior que pode acontecer é quando há poucas ondas, aí não se pode errar, tenho de estar em total sintonia com o mar e escolher a onda certa.

Onde estão as melhores ondas para surfar?

Adoro a costa portuguesa, temos ótimas ondas, a Ericeira e Peniche são dois sítios de eleição. A minha onda preferida é em Jeffreys Bay, na África do Sul. É um local incrível. 

A arte e a técnica de surfar exige um corpo forte e flexível. O atleta tem de estar a 100% no plano físico e mental. Até que ponto essas componentes são fundamentais?

A preparação física é muito importante para qualquer atleta de alta competição. A parte mental é igualmente determinante. Há 16 anos que trabalho com o psicólogo Pedro de Almeida. É um apoio muito importante quando estou mais ansioso, pois ajuda-me a limpar os pensamentos maus e a ultrapassar as pequenas inseguranças que tenho. Falamos a seguir a cada heat, e isso tem-me ajudado imenso.

Como se enfrenta ondas gigantes, com mais de 25 metros de altura, onde os surfistas atingem velocidades acima dos 80 km/h, acontece como na Nazaré?

É um surf diferente daquele que eu faço. Faz parte enfrentar os medos, há dias em que tenho receio que alguma coisa corra mal.

Há cada vez mais pessoas a praticar surf em Portugal. Pode-se falar numa cultura de surf?

Sem dúvida. Essa cultura é relativamente recente no nosso país. Na Austrália, por exemplo, é habitual ver o avô a surfar com o neto e a prática do surf passa de geração em geração. Em Portugal, já começamos a ver o pai a ir para a água com o filho, esse legado já existe no surf de lazer. É um desporto que cria uma ótima relação de bonding entre pai e filho. O meu pai foi jogador de râguebi, mas sempre me ajudou, foi o meu primeiro treinador e é o meu ídolo. É uma pessoa que não desiste, quer sempre aprender e fazer melhor. Isso teve um papel importantíssimo naquilo que sou como desportista e como pessoa. Não podia estar mais agradecido.

Qual a sua opinião sobre o nível dos surfistas e das organizações em Portugal?

A evolução tem sido enorme a todos os níveis. Em termos de eventos, estamos bastante bem tendo em conta a dimensão do país. Temos um Challenger Series masculino e feminino em Ribeira D´Ilhas, uma etapa do World Championship Tour masculino e feminino em Peniche, um WQS 3000 na Costa da Caparica e outro em Santa Cruz, temos o evento das ondas grandes na Nazaré, para além da Liga Meo, com cinco etapas. Isso leva a que haja cada vez mais talentos a surgir e os resultados estão a aparecer. Temos cada vez mais raparigas a surfar e a dar cartas a nível internacional. 

Falta alguma coisa para que haja um crescimento sustentado do surf português?

Falta-nos um pouco mais de cultura do surf, mas é uma questão de tempo para estarmos ao nível das grandes potências mundiais. 

A base de recrutamento é suficiente?

É importante que as pessoas percebam que o surf pode ser uma profissão, tal como acontece em outros desportos onde temos jogadores inacreditáveis. Os jovens devem ter o sonho de fazer aquilo de que gostam e de serem os melhores, há muitos que pensam assim e querem ser surfistas profissionais. Além disso, temos a vantagem de ter excelentes ondas em toda a costa, o campo de treino é quase infinito e não é necessário fazer longas viagens. 

Quais são os seus objetivos enquanto atleta?

Quero manter-me no circuito mundial e ganhar provas, mas também quero deixar um legado para os mais jovens. Quero que os miúdos digam eu quero ser surfista profissional e fazer um percurso como o dele. Se ele conseguiu eu também vou conseguir. Esse é um dos meus grandes objetivos. Se, por acaso, não conseguirem, ficam com os valores que o surf lhes transmitiu.

É nesse sentido que lançou o projeto Legasea Tour para jovens até aos 14 anos?

Sim, mais do que um campeonato pretendo transmitir a minha experiência. Sempre tentei passar a minha história para além do meu valor como atleta. Passar o meu testemunho é também responsabilizá-los acerca do oceano, da importância de não largar os estudos e da necessidade de compromisso. Este ano houve dois eventos com 50 participantes e vamos continuar em 2024.