A saúde mental dos médicos portugueses já teve melhores dias, mas engane-se quem julga que o problema é recente e surgiu na pandemia. Esta questão levanta-se ainda nos anos de faculdade, quando os jovens aspirantes a médicos frequentam o Ensino Superior. Prova disso são os resultados do inquérito Conhecimento dos Estudantes de Medicina acerca do Síndrome de Burnout e das ferramentas de apoio psicológico disponível nas diferentes Escolas Médicas, sendo que “a percentagem de alunos [de Medicina] que sentiam a sua saúde mental fragilizada é superior à média internacional”, como disse o então presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (AEFMUL).
“Enquanto nos outros países a média era 40 a 50 por cento, em Portugal era de 60 por cento”, explicou Duarte Graça, sobre o inquérito conduzido em 2020 e através do qual foi possível concluir que 73 por cento dos inquiridos sentiam que necessitavam de ajuda e não a procuravam. “Quer um número quer outro são bastante elevados. Este número mais elevado em Portugal deixa-nos preocupados. Há um gabinete de apoio ao estudante na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, por exemplo, que é feito para ajudar os alunos. Há esta questão que é muito interessante: parece que os estudantes de Medicina têm maior dificuldade em pedir ajuda. Tal como nos médicos, existe maior dificuldade e até algum estigma, também há estes problemas na fase do Ensino Superior. “Tem a ver com o currículo, a exigência e com o facto de se esperar que os médicos sejam imunes às questões de saúde”, começa por explicar João Canha, médico psiquiatra na Unidade Local de Saúde de Matosinhos e no Hospital CUF do Porto.
“O burnout tem sido estudado em muitas profissões, mas os grupos da área da saúde têm sido especialmente aprofundados. Isto tem a ver com o grau de exigência. Essa exigência não só se foca naquilo que é exigido por quem está de fora, mas também pelo próprio. E, em termos de condições de trabalho, a questão do burnout, muitas das vezes, incide numa espécie de um braço de ferro que se relaciona com os níveis de autoexigência e as condições que existem no terreno. E, pegando nas questões que estão em cima da mesa, como a maneira como o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está organizado, tem havido mais barreiras na forma como os médicos podem atuar. “Ao longo do tempo, tem havido uma desarticulação entre aquilo que os médicos procuram em termos de excelência clínica e aquilo que podem fazer”, avança o profissional de saúde que conta com uma pós-graduação em Psicoterapia Psicodinâmica e outra em Psiquiatria Forense.
De acordo com um estudo realizado em 2016 e atualizado em 2017, dois terços dos médicos portugueses (66%) sofrem de exaustão emocional. Para combater estes números, a Ordem dos Médicos decidiu avançar com a criação do Gabinete Nacional de Apoio ao Médico, que tem como objetivo ajudar os clínicos que estejam a passar por situações de burnout.
O estudo, que inquiriu mais de 9 mil médicos, revela que as principais causas da exaustão são “a perceção de baixos recursos e de elevadas exigências associadas, designadamente, aos horários de trabalho e à relação com os doentes”. O bem-estar dos clínicos é fundamental “para o funcionamento do sistema de saúde em geral”, completa o documento.
“Estes estudos sobre o burnout baseiam-se na escala de Maslach e, realmente, divide-se em três dimensões. Uma que tem a ver com a exaustão emocional: a dificuldade que a pessoa tem em sentir-se una e com a sua identidade preservada; depois, a despersonalização, que está muito associada à maneira como a pessoa lida consigo própria e com os outros – é como se fosse uma cadeia que vai indo para baixo e tem como último recetor o utente e é nisto que o sistema acaba por se tornar muito perverso porque se vira ao contrário: todos os cuidados de saúde estão montados para se centrarem no doente mas, muitas das vezes, é ele que ‘leva por tabela’, como se costuma dizer, devido ao desgaste que vem de cima e desagua nele –; e, por fim, o sentimento de realização profissional: a felicidade, o bem-estar em relação ao próprio trabalho – muitas vezes, há mudanças de área, algo de que não se ouvia falar antigamente”, explica João Canha. “O trabalho é das coisas que mais definem a identidade de uma pessoa. Passamos muitas horas a trabalhar e, sem essa conexão e coerência interna, podemos acabar por mudar de profissão”.
“A pandemia agravou os problemas de saúde mental dos médicos, mas também os despertou para os níveis de exaustão. Parece-me que depois da pandemia, e nesta altura em que estamos em negociações, há muitos mais médicos com consciência de que, por muito esforço que façam, há um limite a partir do qual as coisas começam a não correr bem a nível pessoal e profissional. E acho que as novas gerações de médicos têm, curiosamente, uma grande diferença para os médicos mais velhos. Preservam o seu espaço pessoal. Sem um equilíbrio não é possível haver bons profissionais e os mais novos não se permitem entrar em exigências laborais que, mais cedo ou mais tarde, acabam por ser contraproducentes”, frisa, adiantando que “a recusa das horas extraordinárias vai muito nesta linha”.
“Há duas dimensões importantes na questão do burnout: a prevenção no local de trabalho e o apoio direto aos médicos. Tem de se quebrar o estigma e o preconceito”, realça, avançando que foram registados cerca de 2.400 contactos por parte de profissionais de saúde para a Linha de Aconselhamento Psicológico do SNS24, criada em abril de 2020, para dar uma resposta de proximidade em saúde mental aos cidadãos durante a pandemia, mas não se sabe quantas chamadas correspondem a médicos.
A linha foi criada no âmbito de uma parceria entre os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), a Fundação Calouste Gulbenkian e a Ordem dos Psicólogos Portugueses e, de acordo com um comunicado partilhado no início do mês pelo SPMS, a linha atendeu, em dois anos e meio, mais de 173 mil chamadas, sendo que, dessas, mais de 10.800 eram de profissionais de saúde.
Segundo dados da plataforma Notifica, da Direção-Geral da Saúde, que incluem apenas instituições do Serviço Nacional de Saúde, foram reportados, nos primeiros seis meses do ano, 702 episódios de violência contra profissionais de saúde, dos quais 17% violência física, 61% violência psicológica, 8% violência patrimonial. Dos casos registados, 13% referiam-se a assédio moral e 1% a outra violência não identificada.
Destas situações, a estrutura nacional/regional ou local denunciou criminalmente 52 casos, houve 28 profissionais que tiveram apoio jurídico e 198 foram encaminhados para apoio psicológico.