Eusébio, um deus e o seu crepúsculo

Dia 1 de novembro de 1977 – Eusébio jogou pelo Chaves por 15 contos e um presunto. Tinha batido no fundo.

Eusébio com a camisola 10 do Desportivo de Chaves, na festa do Dia de Todos os Santos: 57 minutos em campo contra o Sporting de Braga; 15 contos de ‘cachet’; um presunto e uma salva de prata. 7000 espetadores no Estádio Municipal de Chaves para ver Eusébio: 240 contos de receita. Eusébio barato: chega no seu carro, parte no seu carro, tem direito a despesas de alimentação e de alojamento. Eusébio já não tem mais oitenta, cem mil espetadores à sua volta… Para onde corre Eusébio? Ninguém sabe. Se calhar, nem ele. Está como Che Guevara: em parte nenhuma? Os jornalistas lamentam a que do astro, este deus, agora menor, nas vascas do seu crepúsculo. «De mala na mão, generoso como sempre foi, pobre rapaz que poderia ter sido milionário anda aí em carruagem de terceira classe enquanto Pelé se passeia em aviões supersónicos», escrevia Neves de Sousa. «Que querias que eu fizesse?», ia-me contando Eusébio numa das muitas entrevistas que lhe fiz ao longo da vida. «Estava a jogar nos Estados Unidos, os campeonatos paravam nessa fase de Inverno, vinha a Portugal tentar arranjar clubes que me dessem possibilidade de manter a forma, de continuar ativo. O Benfica recusou-me. Exigiu-me que fizesse testes físicos para me deixar ficar. Fiquei triste. Muito triste. Depois de tudo o que dei ao clube queriam que eu fizesse testes? Como se fosse algum garoto? Mas eu precisava mesmo de jogar para poder regressar à América com o mínimo de condições. Andei aí, a bater de porta em porta». É fácil imaginar Eusébio tristonho, frustrado, arrumando na mala do carro o presunto e a salva de prata que marcou o seu único jogo com a camisola do Desportivo de Chaves. Apela a filme italiano dos anos 50. O adversário foi o Braga que ganhou por 2-0. Eusébio coxeava. Sombra de Pantera Negra. Esteve 57 minutos em campo. Não dava para mais. No fim, o presidente do Chaves desculpou-se: «No meio de tudo o que se passou fica a satisfação de ter visto o grande Eusébio vestir a camisola do nosso clube. Claro que gostávamos que ele cá ficasse, jogando por nós, mas há que confessar a verdade – não temos dinheiro para ele, ou para aquilo que ele pede. Talvez com ele na equipa pudéssemos sonhar com a I Divisão, mas não dá mesmo. Resta agradecer-lhe». E lá se foi Eusébio e o seu presunto a caminho do Sul, do União de Tomar, onde acabaria por jogar uns meses na companhia do seu grande amigo António Simões. A mágoa… Este sábado o Benfica vai a Chaves. Talvez ninguém se recorde mais deste episódio no clube da Luz. É bem mais provável que os flavienses tenham o dia 1 de novembro de 1977 colado às paredes da memória. Um pouco por todas as páginas dos jornais de Portugal escreviam-se páginas de saudade e de mágoa. As mais brilhantes de todas em A Bola, assinadas por esse príncipe da prosa que tive orgulho em ter como diretor, Carlos Miranda. «Os verdadeiros apaixonados do futebol teriam gostado que Eusébio se tivesse retirado dos campos de jogo na plenitude das suas faculdades, como toureiro que corta a coleta, matando o pior touro. Como cantora que deixa a ópera, cantando corretamente a área mais difícil. Certo que na arte de representar, por exemplo, é possível o envelhecimento com dignidade, mediante a passagem a outro género de papéis. Mas em tudo o que exige frescura e poder físico já o mesmo não se pode admitir. Foi penoso ver Lalande, no fim da sua carreira, a desempenhar papéis de jovem amorosa. Foi penoso, por vezes, ver Eusébio atuando com a camisola do Beira-Mar. Será penoso, por certo, ver Eusébio terminar a sua carreira em jeito de saltimbanco. Para quantos foram seus sinceros admiradores, para quantos não duvidam que, com todas as ajudas que teve, Eusébio foi o terceiro lugar de Inglaterra, Eusébio foi o fulgor europeu do Benfica, Eusébio foi o momento maior do futebol português, é penoso, repete-se, vê-lo andar de malinha na mão, percorrendo a América do Norte, debatendo-se com problemas, fazer um joguinho em Paris, de despedida, rotulando com o seu nome, a sua fama, e onde se juntam pouco mais de cinco mil pessoas. É descer, Eusébio…». Eusébio saltimbanco. Eusébio no União de Tomar. Eusébio no Beira-Mar. Eusébio a fazer um jogo por uma equipa das Honduras por um punhado de dólares. Todos falaram das fortunas que o Direito de Opção que o amarrou ao Benfica para sempre o fez perder. Não houve Eusébio no Inter, nem no Real Madrid. Apenas Benfica. E, depois do 25 de Abril, finalmente a liberdade. «Quando fui para os Estados Unidos assinei um contrato que me permitiu ganhar cinco ou seis vezes mais do que ganhava no Benfica», contou-me noutra altura qualquer. «A verdade é que não fiquei rico com o futebol. Precisei de jogar para continuar a alimentar a minha família». «Eusébio vive, pois, este parêntesis na sua carreira de génio do futebol, sujeitando-se a todas as palhaçadas, a todas as vigarices, a todos os equívocos. Como se fosse concertista que fosse tocar ao ‘Play Boy Club’ do senhor Hefner e das meninas dos super-seios tratados a hormonas», concluía Carlos Miranda. Eusébio – um deus e o seu crepúsculo. Que doía.