O seu pai criou o Barca Velha, João Nicolau de Almeida, com os filhos, inventou o Quinta do Monte de Xisto, que espera vir a ser grandioso. Antes disso, fez o Duas Quintas, considerado o melhor vinho ibérico de 1992, e chegou a ser eleito o homem do ano do vinho pela revista americana Wine & Spirits.
Não haverá ninguém que os descreva melhor do que os próprios. Atentemos no que diz o site da Quinta do Monte Xisto, da família Nicolau de Almeida & filhos. «Em 1976 João Rosas Nicolau de Almeida casa-se com Graça Eça de Queiroz Cabral na cidade do Porto. Uma união com altos teores alcoólicos considerando os antepassados de ambos.
O pai de João, Fernando Nicolau de Almeida, foi enólogo da Casa Ferreirinha onde criou o famoso Barca Velha. Já o seu bisavô, fundou em 1870 a António Nicolau de Almeida Júnior & Irmão, uma firma de exportação de vinhos do Porto, mais tarde integrada na Real Companhia Velha (1963). A mãe de João era sobrinha-neta de Adriano Ramos Pinto, fundador desta Casa em 1880. É nesta icónica empresa que, mais tarde, João viria a desenvolver maior parte do seu trabalho.
Enfim, tanta levedura tinha que dar em fermentação! Desta união, entre Graça e João, nascem 3 filhos: Mateus, João e Mafalda. Os dois primeiros seguiram a alquimia dos vinhos e a mais nova optou pela via da criatividade e cultura». Feita a apresentação, comecemos então a entrevista a João Nicolau de Almeida, que estudou enologia em Bordéus e Dijon, tornando-se o primeiro enólogo português – o pai, como se dizia na altura, era provador, pois não existia o curso de enologia. Nicolau de Almeida presidiu à comissão organizadora do 10 de Junho, a convite de Marcelo Rebelo de Sousa.
Qual é a primeira imagem que tem de vinho?
Tenho duas imagens de criança, que é ao jantar, todos os dias, bebíamos um fundo de cálice de vinho do Porto, e também me lembro de o meu pai trazer sempre as amostras de vinho para casa e nós também provávamos.
Isso com que idade?
A partir dos seis, sete, oito anos. Na altura que tivemos autorização para jantar com eles à mesa, e com os meus irmãos mais velhos, íamos de pijama e de blazer com uma gravata que tinha um elástico. Lembro-me também de ir ao Douro às vindimas com o meu pai, visitar os lavradores onde comprava vinho e também a ida ao Meão, onde ele fazia a Barca Velha, que era longíssimo. Eram três dias loucos para nós. Era o fim do mundo.
Três dias para chegar lá?
Não. Três dias para visitar as quintas todas e parar aqui, parar ali. Mas para chegar lá eram quase 8h. Tenho um irmão gémeo e íamos sempre os dois, o meu pai chamava-nos ‘os meus cães’, e obrigava-nos a decorar o que nos ensinava. Estava sempre a picar-nos para sabermos, tínhamos de levar um livrinho e assentar tudo, porque se respondíamos mal a coisa estava…
Levava uma palmada?
Palmada não, mas a coisa não funcionava bem.Ralhava-nos. Tenho uma pena enorme porque perdi esse livrinho, andei anos e anos com ele… tinha coisas engraçadíssimas que escrevi, na altura, e depois ele perguntava: ‘Do lado do Marão como é o clima? E do outro lado qual é o clima? E quantas sub-regiões é que há? E as uvas do vinho do Porto como é que são?’. E depois o grande divertimento para nós era no Douro superior, quando chegavam as camionetas de Matosinhos cheias de gelo e aquilo era uma delícia. Com aquele calor brutal eu e o meu irmão agarrávamo-nos às pedras de gelo e ficávamos ali.
Iam de Matosinhos para as quintas?
Para o Meão, onde fazia a Barca Velha. E foi assim que conseguiu baixar a temperatura da fermentação, portanto, preservou os aromas primários da uva.
Na altura não havia enólogos. Como é que o seu pai conseguiu fazer o vinho mais icónico até aos dias de hoje em Portugal?
Era por seleção. Na altura não havia laboratórios, havia muito pouca ciência. Claro que havia medições básicas, mas não dava para fazer bons vinhos. Era preciso ter uma grande capacidade de escolha. Ele tinha várias pipas e estava sempre a escolher.
A escolher como? Essa linguagem é só para quem percebe de vinhos…
Esta pode ir para Barca Velha, esta não pode, esta pode.
Das uvas?
Em relação às uvas chegou à conclusão que era preciso haver um equilíbrio na vinha, que era uma coisa que era pouco conhecida, sobretudo das gentes de Gaia. As gentes de Gaia sabiam de vinho e os do Douro sabiam de vinha. Estava separado.
Qual é a diferença entre perceber de vinha e de vinho?
Até à geração dos meus pais e dos meus tios havia os provadores, não havia enólogos, eram os provadores que estavam em Gaia a fazer blends [misturas].
Misturas de várias uvas?
Misturas de vários tipos de vinhos do Porto e etc. Não se falava no vinho de mesa, eram coisas secundárias e só iam ao Douro durante a vindima para fazer o vinho nas cubas, fermentar e fazer os blends.
Não se preocupavam nada com a vinha…
Aí eram os lavradores. A minha geração é que começou a fazer a ligação do vinho à vinha. Quando regressei de Bordéus, para onde tinha ido estudar, pensei que estávamos na Idade Média, ou seja, ninguém percebia nada. Uns não percebiam de vinha e diziam isso mesmo – quando perguntavam aos do Douro se determinada variedade era boa, diziam: ‘Os de Gaia é que sabem’ e não punham um copo à boca, nem cheiravam. E na geração do meu pai falavam de vinhas…
Não falavam de vinho, falavam de vinhas?
Diziam aquela vinha ali ao fundo é muito boa, estava tudo misturado e a minha grande vontade, o meu grande trabalho, foi um pouco empurrado e desvendado pelo meu tio José Ramos Pinto Rosas, que me disse que o que é preciso é estudar as variedades. Esta variedade é boa, sabe a quê, onde é que se planta, como é se trata esta planta, etc. etc.? Havia conhecimento no final do século e princípio do século XIX, mas com as guerras perdeu-se e era só na zona da Régua.
Nessa altura já se fazia vinho de mesa com fartura…
Fazia-se, mas era um vinho que, normalmente, quando começava a aquecer lá para maio, junho começava a fermentar, os vinhos já estavam estabilizados e depois azedavam. E a maior parte dos vinhos que havia eram cheios de defeitos. Aliás, quando o meu tio me levou ao Centro de Estudos Vitivinícolas da Régua estavam a fazer ensaios para saber as variedades e eu disse: ‘Oh meus amigos, não dá para provar porque os vinhos estão todos alterados’, uns cheiram a isto, outros cheiram a bolor, outros estão azedos. Não havia tecnologia… Havia aqueles vinhos clássicos que era o Evel e o Serra de Aires. Havia uns que se mantinham porque já tinham alguns filtros e conhecimento, mas mesmo esses não eram o que são hoje. Hoje em dia os vinhos saem limpos, saem frutados e com as características da uva.
Era esse vinho que se consumia no dia-a-dia…
Tanto era assim que o meu pai para ir ao restaurante levava sempre a garrafa com ele. Nunca comprava uma garrafa no restaurante.
Como é que ele, tendo em conta que estavam bastante atrasados e de haver uma diferença entre quem plantava e quem tratava da vinha e quem produzia o vinho, conseguiu fazer o Barca Velha?
Teve essa genialidade.
Não era enólogo porque não havia…
Era provador, na altura, não havia enólogo. Eu fui o primeiro enólogo a entrar na região, havia engenheiros agrónomos, mas não eram enólogos. E ele fazia vinho verde numa quinta que tínhamos e que agora retomámos, mas o vinho tinha gás, as garrafas rebentavam, etc. E aconteceu a mesma coisa em França, em Bordéus, que queria exportar o vinho para a América e aquilo começava a fermentar e rebentavam as garrafas. Então foi na universidade com Jean Ribéreau Gayon, um cientista descendente do Pasteur, e Émile Peynaud que se conseguiu dar a volta a esse problema.
Pasteur que Nicolau diz que foi o primeiro enólogo?
Exatamente. Foi o primeiro a estudar a fermentação alcoólica. Toda a gente via que fermentava, mas sabia-se lá o que se passava lá dentro. Como é que se podia intervir e não intervir, era o que desse. E o Pasteur fez isso. É engraçado que, no primeiro ano, quando fui em 70 para a universidade de Bordéus, o nosso curso ainda era em conjunto com os alunos de Medicina.
Qual era o curso?
De Enologia, e no primeiro ano, as aulas eram em conjunto com a Medicina, por causa de Pasteur.
O seu pai estava a fazer o vinho verde e convidou o tal…
Peynaud, que tinha resolvido esse problema porque as bolhas que se criavam era uma segunda fermentação. Ele é que descobriu que aquilo era feito por bactérias e não por leveduras. E então resolveu isso: fazer a fermentação malolática antes de engarrafar e assim já não fermentava na garrafa e estava salvo o vinho. Quando o meu pai – que estava na Casa Ferreirinha – soube que ele tinha resolvido isso, convidou-o para vir cá ver o vinho. Ele estava na sala de provas, a provar os vinhos verdes e a falarem sobre isso e tinha ao lado um vinho tinto, e o senhor Peynaud pega no copo de vinho tinto, cheira aquilo e pergunta: ‘Porque é estão a perder tempo com isso?”. Vocês têm aqui um dos melhores vinhos que já vi na minha vida e estão a perder tempo com o verde? E convidou o meu pai para ir a Bordéus. Esteve lá e viu como é que eles faziam o controlo das temperaturas, da acidez, etc.
É aí que ele chega e trata de pôr as barras de gelo para não deixar aquecer o vinho?
Para não deixar que a fermentação passasse os 20 graus.
Assimila, mas depois como é que consegue…
Há mais uma outra coisa. Tudo isso era para controlar a temperatura, para guardar os frutos primários e depois ia buscar uvas à Meda, que eram mais ácidas, mais frescas e juntava às uvas maduras do Meão. Portanto, fazia um blend de vinhas, umas ácidas, outras maduras e conseguia assim controlar a fermentação, porque a acidez é muito importante para controlar a fermentação e para o equilíbrio do vinho.
O primeiro Barca Velha é de 1952…
Só há Barca Velha nos anos especiais. E ele depois usava madeira, mas era madeira de carvalho português, é muito rija, é taninosa. E decidiu que esse vinho só se podia vender a partir dos sete ou oito anos. Porquê? Porque essa madeira…
Isso era uma prática que só se fazia com o vinho do Porto. Não se fazia com vinho normal de mesa ou fazia-se?
Fazia com o Barca Velha.
Antes do Barca Velha não havia essa técnica?
Para o vinho de mesa não. Para o vinho de mesa era o que desse. Havia vinhos que passavam e ficavam muito bons…
O vinho que o seu pai levava para os restaurantes era dele?
Era dele. Só bebia o vinho dele.
Passava a vida a beber Barca Velha…
Também fazia vinho no Dão e fazia um palhete, um segundo vinho, e fazia também o Reserva Especial. Tinha vários vinhos.
Como se dá o sucesso nacional e mundial?
Tinha uma luta muito grande com a administração devido à parte económica, porque fazer um vinho para se vender ao fim de sete anos era preciso…
A empresa não era dele?
Não, a seguir à Guerra ele e a família venderam a Nicolau de Almeida à Real Vinícola.
Tinha conflitos com a administração…
Sim, para uma administração ter um vinho durante sete ou oito anos que não se pode vender… era complicado. Quando o vinho saía aos sete, oito anos era uma bomba, como agora vai acontecer nos vinhos do Douro. No outro dia fiz uma vertical no Monte do Xisto… os mais velhos são umas bombas.
O que é vertical?
É ver os anos todos juntos: 2011, 12, 13, 14, 15, etc.
Esses vinhos foram conservados na garrafa?
Exatamente e é por isso que se deve abrir os vinhos antigos seis horas antes de os beber.
Era uma figura austera, mas um bocado fora da caixa…
Era muito austero, mas tinha os dois extremos, sobretudo connosco. Ele com o vinho não deixava ninguém pisar ramo verde, levava aquilo muito a sério. E ai daquele que não fizesse aquilo que ele dissesse. Toda a gente tinha um grande respeito. Ele ficou sempre, até uns tempos antes de morrer, com os armazéns e vinho do Porto, com um sócio, e nós íamos para lá lavar as pipas. E quando ele entrava, e se as coisas não estavam direitinhas e limpas, era um sarilho e ia tudo pelos ares e nós escondíamo-nos debaixo dos tonéis… quando ele vinha, porque dormíamos debaixo dos tonéis, porque era fresquinho e cheirava bem e com o álcool ficávamos meios grogues [risos]….
E essa história de ele ter inventado um gémeo?
Na parte difícil dele quis arranjar uma figura que nos satisfizesse, que nos compensasse.
Compensasse na rigidez? E então, como é que ele fez isso?
Começou a mandar uns telegramas da Baía dos Tigres, em África.
Mandava para ele próprio?
Mandava para nós, mas nós não sabíamos. Mandava um telegrama para a nossa casa para nos avisar que o tio Eduardo, que vivia na Baía dos Tigres, em África, vinha passar uns dias a Portugal. E nós radiantes porque tínhamos um tio Eduardo, em África, que era gémeo. Isso durante uns dois anos e depois começaram a trocar algumas informações.
Mas nunca vinha?
Não, era tudo na fase do telegrama. Na altura, receber um telegrama era uma coisa muito especial e um dia o telegrama dizia que ia chegar em frente à Santa Casa, na Foz, que tinha uma entrada do mar e que ia chegar lá às tantas horas e para nós o irmos receber. Éramos catraios, tínhamos três, quatro, cinco anos. Ele aparece num barco a remos, de roupão verde – quando normalmente tinha sempre o cabelo muito penteadinho, com gel – todo despenteado. Não tinha nada a ver com o meu pai, com a barba por fazer, cheio de malas – as malas todas vazias – e com as nossas empregadas a ajudarem à festa. Saltámos para o barco, tirámos as coisas e fomos todos para casa. Então o tio Eduardo deixava-nos fazer tudo aquilo que o meu pai não deixava. Saltar dos sofás, estragar as coisas, guerras de sapatos, de almofadas, sei lá tudo. Ele dizia, ‘agora estraguem o jardim todo’. A minha mãe ficava furiosa. Foi uma festa.
E depois ia-se embora e voltava tudo ao normal?
Sim, quando tinha 17 anos perguntei pelo tio Eduardo porque nunca mais tinha aparecido. Os meus irmãos mais velhos começaram-se a rir, o meu pai até pensou que já sabíamos e os meus irmãos também, mas como éramos os mais pequeninos ficou-nos na alma.
Quantos irmãos eram?
Sete, morreram dois. Éramos três raparigas e quatro rapazes, os mais novos era o meu irmão gémeo e eu. O meu irmão gémeo vive em França, num castelo, porque o meu pai tinha a mania dos castelos. O meu pai era medieval e obrigava-nos a levantar cedo para ir à praia buscar algas para esfregar as pedras do castelo para ficarem velhas. Todos os dias de manhã trazíamos cestos de algas.
Mas isso onde?
Na Foz. Era um castelo a sério.
Mas construiu de raiz?
Sim, tínhamos uns terrenos em Gaia com muita pedra. Levou tudo para lá e fez um castelo enorme. E tinha num quarto de banho, uma tábua tosca, com um buraco no meio e quatro cadeados no teto. A gente sentava-se e ficávamos a baloiçar e pintou à frente, porque ele também pintava, um quadro com Shakespeare que dizia por baixo: ‘Fazer ou não fazer, eis a questão’. Também tinha uma casa em Afife e fez um castelo menor, mas com canhões de madeira.
Canhões?
Era um carpinteiro que os fazia, a minha mãe queria que ele fizesse coisas na cozinha, mas o meu pai dizia que ele tinha era que tratar da artilharia. [risos]. E aos domingos vestíamo-nos todos à época medieval, tocávamos os tambores e içávamos a bandeira monárquica [risos]. E ele também alinhava.
E o seu irmão foi para França…
Foi e vive num castelo. Estava em ruínas, abandonado, com uma torre de 12 metros, o que é uma coisa bestial, e fez a casa lá dentro. Herdou do meu pai essa coisa da Idade Média.
A sua vida mudou quando num belo dia ao jantar o seu pai perguntou quem queria ir para França estudar para enólogo.
Ele tratava-nos por senhor e nós tratávamo-lo por tu. Não percebo qual era a lógica disso, mas ele disse: ‘Se o senhor quiser ir para França estudar enologia eu pago os estudos’. É para já, pensei. Perguntei o que era enologia e ele disse que era o estudo do vinho. Pensei: vou beber vinho todos os dias? Vamos embora. E fui.
Vai para França e regressa em 76. Há aqui um grande confronto com a realidade que vem encontrar?
Exatamente. Há uma música do Génesis que retrata bem isso. Ah! Toquei num conjunto, fizemos um sucesso considerável, era os Nómadas. Tivemos um sucesso bestial, fartámo-nos de ganhar dinheiro, porque fomos o primeiro conjunto em Portugal a tocar os Beatles, os Rolling Stones. Toda essa música anglo-saxónica.
Isso antes de ir para França?
Sim, antes de ir para França. Agora toco com os meus três filhos e os amigos.
Em 76 vem de França e debate-se com uma realidade que para si era completamente arcaica, que não tinha noção antes de ir para França…
Não. Quando cheguei, fui ao Douro e nunca pensei que estivéssemos tão atrasados. As casas ainda eram todas de pedra sobre pedra. Muitas casas nem chaminé tinham, o fumo saía pelos telhados. Vi muita gente descalça e em termos de viticultura era o que o vizinho fizesse. Havia um colégio de gurus que me convidou para ir lá ver o que estavam a fazer, que era o meu tio José Ramos Pinto Rosas, era o engenheiro Taborda, era o John Smith, era o John Grey que estavam a tentar descobrir as castas.
E aí sugere que apostem apenas em cinco castas?
Eles perguntaram-me o que achava do que estavam a fazer. Havia 80 e tal castas. Isto é o que há, não há tecnologia e não se podia selecionar. Tinha estado a fazer microvinificações, em Bordéus, na quinta daqueles dois génios, portanto tinha uma prática boa disso. E o meu tio vira-se para mim e pergunta: ‘E agora?’. Eu disse que fazia o estudo, mas que não podia fazer o estudo de 83 castas, era uma loucura. Pedi para me darem 12 castas para fazer microvinificações.
Faz experiências com essas castas?
Exatamente. Mas só de 12 castas. E então arranjei quatro campos experimentais, um no Douro Superior, outro no Cima Corgo e outro no Baixo Corgo e numa região do Cima Corgo com diferentes altitudes. Portanto, estudar a sub-região e a altitude, porque a altitude no Douro conta muito e o meu tio, que era o CEO da Ramos Pinto, permitiu que fizesse isto tudo. Fiz lá um minilaboratório, fiz uma série de coisas e cheguei a certa altura e disse: ‘As castas são estas cinco’. Ele concordou com isso e fomos à Universidade de Vila Real dizer que estivemos a estudar estas castas e as selecionadas foram estas. E, nessa altura, tinha dito ao meu tio: ‘Vou fazer isto, mas também quero fazer para vinho de mesa’, porque vinha com o bichinho do vinho de mesa por causa do meu pai e por causa de Bordéus.
O que disse o seu tio?
Disse que não e o que queria era que tratasse do vinho do Porto. Eu respondi que queria fazer vinho de mesa e ele concordou.
As uvas que fazem o vinho do Porto são diferentes das uvas que fazem o vinho de mesa?
Pode não ser. E era exatamente isso que estava a estudar. As cinco que apresentámos em 81, no Instituto Politécnico de Vila Real, num simpósio que lá houve, era para ser para vinho do Porto e para vinho de mesa. Foi do caraças: ‘Vem de Bordéus e agora é tudo misturado, vai mas é para Bordéus’, disseram. Expliquei que era uma sugestão e que fizessem o que quisessem. E depois, quando veio o FMI para financiar 2500 hectares de vinha perguntou-lhes o que iam plantar. Por milagre aparecerem as cinco castas que tinha escolhido.
E nos sítios certos?
Fora isso, tive que estudar as maturações todas. Foram uns tempos gloriosos para mim, levantava-me às 6h da manhã e deitava-me às 3h da noite. Tinha de apanhar as uvas, porque queria saber como é que funcionavam as coisas. Perguntava aqui e perguntava ali e ninguém sabia. E era preciso saber a maturação, todas as semanas tinha que colher 250 uvas de cada variedade, de cada campo experimental. E tinha todos os aparelhos montados no meu quarto na quinta. Não tinha laboratório, tinha os instrumentos todos do laboratório montados em cima da minha cama, nas cómodas e como era muito incerto, havia trovoada, ia tudo para o caraças e tinha de ir ao Porto trocar os aparelhos. Foram uns tempos fantásticos, completamente loucos. Um trabalho enorme, mas um gajo descobrir o que é que se passava… esta casta é assim, esta evolui desta maneira, esta pode-se colher aqui, esta serve para isto, esta serve para aquilo.
E, nessa altura, já começava a ter os filhos ou não?
Já e eles andavam lá a fazer asneiras na vinha e a sujarem-se todos.
Não sofriam as represálias que o pai tinha sofrido com o avô?
Eu nem os via, via-os ao fim da noite, carregados de pó e de uvas, com os filhos dos caseiros. Para eles era uma maravilha.
É nessa altura que faz o Duas Quintas?
Trabalhava para o meu tio, na Ramos Pinto, e desde que entrei queria fazer o tal vinho de mesa, mas nunca deu por isto e por aquilo.
A Ramos Pinto vendia vinho de mesa?
Só vendia vinho do Porto. Aqui não se vendia vinho de mesa, era muito pouco e era o que restava. Havia vinho, mas era o que chamávamos de vinho de consumo, que era o vinho que restava, que não podia ir para vinho do Porto, que se deixava fermentar, no verão esse vinho começava todo a estragar-se.
Esse era o vinho que se comprava no supermercado?
Não havia vinho do Douro no supermercado.
Consegue então fazer o Duas Quintas e isso é uma grande vitória?
Queria fazer, mas nunca conseguia fazer. Quando o Champagne Roederer comprou a Ramos Pinto, pensei, agora é que vou atacar. Acabámos a reunião da venda e à saída eu levava duas garrafas pequeninas de amostras de vinho de mesa, do Douro, abriram-me a porta…
Quem abriu a porta?
O dono da Roederer, que era francês, o que faz o Cristal, comprou aquilo e eu disse-lhe à saída: ‘Tenho aqui duas amostras e gostava que provasse porque queria ver se era um bom vinho de mesa’. Eu já levava os copos, provou mesmo à saída da porta, e virou-se para mim e disse: ‘O que estás à espera?’ Fiquei borrado, não estava à espera daquela resposta tão radical. Vamos a isso e havia 80.000 litros para engarrafar. Na altura, já havia um vinho ou outro, o Champalimaud já fazia a Quinta do Couto, mas eram tudo coisas pequeninas. Não era assim um vinho de consumo, um vinho de supermercado, um vinho para exportação. Fiz essas 80.000 garrafas de Duas Quintas que foi um sucesso brutal. Depois, em 92, foi uma das minhas grandes glórias, havia o concurso mais importante, que era o Internacional Wine Challenge, em Londres, e mandei para lá o Duas Quintas de 92. Estava na plateia e aparece o vinho eleito da Península Ibérica, e surge a fotografia da garrafa do Duas Quintas. Quase que caí ao chão, fui a tremer por ali acima. Ser considerado o melhor vinho da Península Ibérica não estava nada à espera. Tive outro momento também muito importante que foi a revista americana Wines & Spirits eleger-me o homem do vinho do Ano.
Reforma-se com que idade?
67.
Já estava a comprar os terrenos em Foz Coa?
Exatamente. Em 93/94 queria tirar uma fotografia para uma apresentação, eu dava aulas nos Estados Unidos e em Bordéus, e tinha de fazer várias conferências e precisava de fotografias. Disse que queria tirar uma fotografia ao pé do rio com um trator a trabalhar e mandaram-me ao que é hoje em dia é o Monte de Xisto. Cheguei lá e fiquei logo maravilhado com a vista. E depois tinha o norte e o sul só naquele sítio. O rio vai de este para oeste, sempre na mesma linha, e chega aquele sítio do Monte de Xisto vira 90 graus e vai de sul para norte e depois volta outra vez e apanha o este e o oeste.
Em 94 só comprou uma parcela?
Comprei o que estava à venda que eram três hectares.
Mas aí não começou a plantar?
Não.
Para os comuns dos mortais podemos dizer que é uma espécie de Cristo, transforma pedra em terra? Olhou para o Monte do Xisto e era só pedra?
Era só calhau.
Como se transforma calhaus em terra para plantar vinha?
Antigamente era com o ferro do monte, tirava-se uma pedra grande e depois vinham dois gajos com uma maçaneta e partiam aquilo para fazer terra.
Demoravam meses a fazer isso?
Anos. Agora não. Tenho um bulldozer que vem com as pás, levanta as pedras maiores e depois vêm as pás mais pequenas e vão triturando a pedra até fazer terra. É uma loucura, mas é isso que dá os melhores vinhos, porque a metro e meio já tem rocha outra vez, mas tem as fissuras da rocha, onde as raízes até seis, sete, dez metros de profundidade vão buscar água. A alimentação da videira é mais ou menos até 20/25 centímetros. Mas para ter água tem de ir lá ao fundo.
Percebeu logo isso assim que olhou para o terreno?
Vi o ‘picture’ todo. Já tinha alguma experiência e, depois, era sobretudo ter o norte e o sul na mesma quinta e ter altitudes diferentes.
Disse na entrevista à RTP, ao Vítor Gonçalves, que a sua mãe era a provadora do seu pai. No vosso caso, é a sua mulher e a filha.
As duas provam muito bem, são muito pragmáticas. Estamos sempre a descobrir isto, a descobrir aquilo e para terminarmos o lote elas dizem isto está bem. É, não quer dizer que nós não provamos.
Uma coisa que achei muito engraçada é que disse que tem uma apreciação técnica. Falta a apreciação do consumidor…. É uma mais-valia que tem…
Exatamente.
E nunca discordam delas?
Normalmente não. Também já vamos numa fase final. E elas são pragmáticas. E depois às cegas chegamos a um acordo.
Fazem provas cegas?
Fazemos.
Ninguém sabe o que está a provar…
Às vezes, estamos dois dias ou três e não saímos dali.
Não sabem de que lote é que estão a falar?
Na parte final já sabemos…
Para todos?
Para todos. Primeiro é o Monte do Xisto, é onde fazemos o vinho da vinha e, na minha época, fazia-se o vinho na adega. Vamos pelas videiras e provamos as uvas e marcamos os pés ‘esta é para Monte do Xisto’, esta é Órbita, esta é não sei para quê.
Quantos vinhos são no total?
São cinco, três tintos e dois portos.
E para fazer o vinho do Porto há distinção da uva ou é a mesma?
Já sabemos porque isso vai-se aprendendo a provar. No vinho do Porto fazemos o vintage que é exatamente o mesmo blend que fazemos para o Monte de Xisto: touriga nacional, touriga franca e Sousão. E para o vintage exatamente a mesma coisa, só que é meia fermentação. Um é vinho do Porto, adiciona-se a aguardente na fermentação, pára a fermentação e fica a 19 graus com açúcar. E depois temos um vinho branco do Porto, que é Porto Branco Leve Seco, que é muito raro ver isso no mercado, que tem 16 graus e muito pouco açúcar. Isso era mais ou menos como se fazia antigamente.
Quantos hectares é que têm agora?
70. Mas só 12 plantados.
Vão plantar mais e começaram a tratar das oliveiras…
Já estamos a tratar, esperamos ter azeite para o ano.
E qual é o papel dos filhos nesta nova fase?
São eles que conduzem aquilo. O meu investimento foi neles, podia ter pegado nas minhas poupanças e dar uma volta ao mundo ou fazer um castelo, ou fazer qualquer coisa. Decidi investir neles, mas à la longue, na terra e no futuro da vinha. As funções não são separadas, tanto limpamos o chão, como fazemos o blend, como fazemos as contas. Intervimos todos no que for preciso. Mas como o Mateus está no Douro, e está ao lado da vinha, trata mais da vinha. O João está mais aqui trata mais do vinho. A Mafalda trata da comunicação. Está mais ou menos distribuído, eu ando por aqui, dou umas bocas, a não ser que me peçam para desempatar qualquer coisa, e não gosto, prefiro que sejam eles a decidir. Aliás, toda esta forma biológica e forma de cultura foram eles que desenvolveram e eu aprendi com eles. Hoje em dia estou amarrado a isso e, portanto, vou a reboque deles. É claro que tenho alguma experiência, vou dizendo isto ou aquilo, mas ao princípio impunha um bocado. Agora não. Não quer dizer que não diga qualquer coisa.
Como reagiu quando lhe propuseram adotar a cultura biológica?
Fiquei furioso. Fui para França, fui reconhecido pelos trabalhos todos que tinha feito, chego lá tinham umas merdas, umas coisas, umas infusões, um cheiro horroroso. Levantava-se a tampa e dizia que eram loucos por deitar isto na vinha e os gajos deixaram pousar, fomos falando e bebendo uns copos e a coisa foi-se amainando. Fiquei de pé atrás, mas há anos que estou mais do que rendido a esta forma. Agora, os vinhos, as provas, funciono com eles, agora a parte técnica são eles.
Ainda apanha algumas bebedeiras de vez em quando?
Então não? [risos] Mas agora fico mais sossegado do que antes. Antes apanhava e fazia piruetas, agora fico sentado.
Não tem o sonho de comprar o terreno do Meão?
Não, tenho sonhos para o Monte do Xisto.
Está convencido que o Monte de Xisto vai ser melhor que o Barca Velha?
São os dois vinhos muito bons, mas queremos chegar ao topo.
Mas está convencido que vai chegar a esse topo?
Só o tempo dirá.
Apanhou algumas loucuras do seu pai?
Não com a mesma intensidade, ma sim. Eu tenho dois amores. Tive uma paixão muito grande por África, durante 30 anos segui os descobridores portugueses, fui até ao Japão, e a todos os sítios por onde passaram. Durante esse período, 15 dias eram destinados a essa paixão, com a minha mulher. Comecei por descobri os safaris, primeiro em Portugal porque não havia guito, Açores, Madeira, Guiné, Angola, África do Sul, que atravessei toda, e na altura metia um bocado medo, o Quénia, a Índia, Goa, Damão, Sri Lanka, até chegámos a Bornéu, ilha na Ásia, e ficámos numa tribo, onde apanhámos uma borracheira enorme, porque queríamos ver o que eles bebiam, e eles também apanharam uma borracheira e foi um sarilho.
Então?
Aquilo era isolado, fomos de canoa, de vez em quando não havia água, pegávamos na piroga e seguíamos, e quando chegámos lá, no meio da floresta, e queríamos conhecer os Head Hunters, os gajos ainda têm os crânios com fumo, para os espíritos continuarem lá. E eles estavam a dançar, mas quando nós chegámos desapareceu tudo, até porque o nosso guia tinha ‘fugido’ da tribo. Foram vestir-se com as vestes de festa e a dança implicava um gesto de como quem corta a cabeça. Nós ficámos instalados na casa do chefe da tribo, mas a mulher apaixonou-se pela minha mulher. Agarrava-a por todos os lados, e o que ela dizia nós não percebíamos nada. A certa altura, a minha mulher estava à rasca, e estava um facalhão na parede, e às tantas a mulher do chefe pega no facalhão, e os gajos todos de gatas, porque o facalhão tinha veneno. A nossa sorte foi que ela caiu para o lado, de bêbeda. Foram muitas as histórias que vivemos ao longo desses 30 anos.