Os novos sem-abrigo. (Sobre)Viver na Quinta dos Ingleses

Cláudio, Axl, Willams, João e Ana Maria vivem na Quinta dos Ingleses, em Carcavelos, em tendas e caravanas. Esperam vir a ter uma vida melhor mas, enquanto esta não chega, sobrevivem.

Os sem-abrigo enfrentam desafios significativos: além da falta de um lar, acesso limitado a recursos básicos, problemas de saúde mental e física, entre outros. Em Portugal, existem várias organizações, tanto governamentais como não governamentais, que trabalham para lhes tornar a vida menos difícil. Estas organizações muitas vezes oferecem abrigo temporário, alimentação, assistência médica e outros serviços de apoio. Os municípios, juntamente com organizações não lucrativas, costumam estar envolvidos em programas e iniciativas para lidar com o problema.

No entanto, o país vive, atualmente, um panorama distinto: o dos novos sem-abrigo. Trabalham, muitas das vezes sem qualquer folga e, mesmo assim, não conseguem ter condições financeiras para arrendar um quarto ou um apartamento. Para muitas dessas pessoas, no município de Cascais, a solução passa por viver na Quinta dos Ingleses, em Carcavelos, perto da praia e do colégio privado St. Julian’s (onde a mensalidade ronda os mil euros por aluno), em tendas ou caravanas. Este é o caso de Cláudio Silva Sinfrónio, de 59 anos, brasileiro natural do Rio de Janeiro que se mudou para território português há dois anos. Vive numa tenda e, apesar da sua situação, não hesita em oferecer-nos comida, água e sítio para nos sentarmos.


Fotografias de Odete Ribot

“Ao princípio, foi pelas dificuldades de trabalho. Mesmo sendo um profissional, fica um pouco difícil. E Portugal passou a ser uma opção melhor. Eu sou pai, tenho dois filhos, e tive de tentar. O investimento não foi fácil: entrei aqui legalizado, pago impostos, mas foi a minha decisão. Hoje sou cuidador de um idoso. Trabalho com informática, sou editor de vídeo, mas conseguir trabalho nessa área é extremamente difícil. O mercado está saturado em termos de oportunidades. Isso para mim não estava sendo muito legal”, conta. Com um curso na área de enfermagem e geriatria no currículo, depois de passar por vários quartos, até um onde pagava 400 euros com muita dificuldade, mudou-se para a Quinta dos Ingleses.

“Os arrendamentos são absurdos. 50% do meu ordenado ficava comprometido com o quarto. Vi um trechozinho da reportagem sobre as pessoas que vivem aqui e, na hora, pensei ‘Vou para ali mesmo’. Vim visitar o acampamento e, nesse dia, um casal disse: ‘Nós conseguimos trabalho e casa’. E ofereceram-me a primeira tenda deles. Nesse primeiro dia, senti uma paz… Porque vivia com mais homens e se um já faz uma bagunça, imagina quatro… Agora estou aqui há dois meses e tem corrido tudo bem”, explica, indicando que “as pessoas são amigáveis, uma respeita a outra” e até existe um grupo no WhatsApp para comunicarem e trocarem informações.

“De vez em quando, as autoridades vêm ver como estamos. Sem dúvida que gostaria de ter uma casa. É bem mais seguro, quentinho, confortável. As temperaturas aqui mudam e se não estiver bem agasalhado é complicado. Se tivesse uma oportunidade… Com certeza que a agarraria. Eu não cozinho: compro um lanche, alguma coisa para passar a noite, água. E os outros perceberam. Aí, ofereceram-me comida! Há sempre um tomando conta do outro. Corremos o risco de as leis mudarem e exigirem que a gente saia. Temos medo. Não queremos danificar o local nem fazer nada de mal. Somos quase uma família. Uma caravana já me ajudaria tanto…”, desabafa Cláudio.

“Se pudesse falar com os governantes, diria que a gente está aqui, mas paga impostos. Por exemplo, eu cuido de um pai de família e toda a família me honra. Hoje, ele está enfermo e é o terceiro idoso de que cuido. Dão-me roupas e presentes. Ajudam para caramba. Tem muitos imigrantes trabalhando honestamente. Alguns deixam aquela marca chata, mas isso não pode manchar os outros. Na realidade, não estamos nem disputando vaga com os portugueses. São trabalhos que não são ocupados”, defende.

A alguns metros de distância, mas numa caravana, vive Axl (nome fictício), de 57 anos. “As pessoas são muito unidas, ajudamo-nos muito. Antes vivia aqui perto, perto do Hospital de Santana [Parede]. Vivia com a minha mãe e a minha tia. A minha tia era arrendatária da casa e a senhoria não quer que eu fique lá. De qualquer modo, não conseguiria pagar a renda que ela quer impor. Eu recebo o Rendimento Social de Inserção (RSI), não tenho conseguido trabalho e não tinha para onde ir”, confessa, explicando que “uma amiga, que tem sido incansável”, é que o ajuda.

“Foi ela que me comprou esta caravana, traz-me água, carrega-me as powerbanks… É incrível. Sinto a falta da televisão e dessas coisas a que estamos habituados. Mas… Cá estou, a tentar sobreviver. Antes trabalhava na jardinagem, mas a partir dos 40 anos somos considerados demasiado velhos para trabalhar. Uma parte da minha família não sabe que estou aqui e nem pode saber. Vivo com a minha gata e estou muito bem. Quero paz e sossego. Mesmo que uma pessoa esteja a trabalhar não consegue alugar um quarto nem uma casa com o ordenado mínimo: é isto que quero dizer aos nossos governantes. E cada vez vem mais gente para aqui! Se a pessoa pagar a renda não come!”, exclama.

Em janeiro, o número de beneficiários do RSI em Portugal era de 195.545, de acordo com dados oficiais. Este é o número mais baixo em 17 anos, contrastando com o pico registado em março de 2010, que contava com mais de 404 mil beneficiários. O relatório destaca que cerca de um terço dos beneficiários do RSI são crianças. Os distritos dos Açores e do Porto tiveram a maior redução no número de beneficiários. O valor de referência do RSI permaneceu congelado em 189,66 euros nos últimos três anos. No entanto, agora será aumentado para 209,11 euros, implicando que aqueles com rendimentos médios superiores a este valor deixarão de receber o apoio.

O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social sugere que a redução no número de beneficiários pode ser atribuída ao aumento do emprego, à diminuição da taxa de desemprego e ao aumento do salário mínimo desde 2015. Nos últimos anos, o número de beneficiários diminuiu em 12 distritos e aumentou em oito. Nos Açores, o número foi reduzido para cerca da metade em cinco anos, uma região onde o partido Chega, liderado por André Ventura, apoia o governo regional PSD/CDS, com uma das condições sendo a redução do número de beneficiários do RSI. No Porto, o distrito com mais beneficiários, houve uma redução de 24% no número de beneficiários.

Willams da Silva Inocêncio, de 41 anos, “vizinho de barraca de Cláudio”, como gosta de se autodenominar, é natural de Recife e estava há somente cinco dias na Quinta dos Ingleses quando falámos com ele. “Tive conhecimento daqui através da Internet. Estava a pagar renda lá na Amadora, mas era muito difícil. Financeiramente, não conseguia continuar a pagar 250 euros por uma cama. Dividia o apartamento com mais nove pessoas”, narra, sentado no colchão da sua tenda azul, rodeado por garrafões de água.

“Estou em Portugal há dois meses: quem está de fora acha que há uma realidade, mas depois a realidade é completamente diferente. A primeira empresa onde trabalhei não me pagou até agora. Não estou trabalhando atualmente. Sou muito otimista e acho que vai dar certo, está na mão de Deus. As pessoas são muito amigáveis, principalmente o Cláudio. Tenho a expectativa de que as coisas mudem”, realça o pai de dois filhos que se encontram no Brasil. “Os políticos têm de se empenhar mais: a questão dos arrendamentos já não é só um absurdo, é um abuso. Estão abusando muito na minha opinião. Incrivelmente, estou dormindo melhor aqui do que no quarto onde estava. Deus te prepara para morrer e nascer de novo. Acredito muito que vivemos o inexplicável e inesperado. Até agora nada me abalou. Vivemos o dia-a-dia até um milagre nos resgatar para algo melhor. Ninguém tem o projeto de vida de viver aqui: é isso que espero que as pessoas entendam”, conclui.

Importa referir que, em 2022, a população estrangeira residente em Portugal continuou a aumentar pelo sétimo ano consecutivo, alcançando um total de 781.915 cidadãos, de acordo com informações divulgadas pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Este aumento representou um crescimento de 11,9% em comparação com o ano anterior.

A comunidade brasileira permanece como a mais representativa entre os estrangeiros residentes em Portugal, totalizando 30,7% do total em 2022. Além disso, o número dos cidadãos brasileiros foi o que mais aumentou em termos proporcionais, registando um crescimento de 17,1% em relação a 2021, atingindo um total de 239.744 pessoas.

Tal como Cláudio e Willams, também João (nome fictício), de 44 anos, de nacionalidade brasileira, veio para Portugal à procura de uma vida melhor. “O país em si não é ruim, é excelente em termos de segurança, padrão de vida e possibilidades futuras, só que houve uma crise devido a conflitos no estrangeiros que acaba surtindo efeito nos países menores. A alimentação, o combustível, o arrendamento passam a ter preços mais altos. E tivemos de procurar uma solução. É melhor estar num lugar onde onde se perde alguma qualidade de vida do que estar dentro de uma casa não pagando ao senhorio. O imigrante não quer ficar devendo e acumular dívidas. Ele quer estar legal no país”, afirma.

“Há trabalho, mas não conseguimos pagar uma renda com o ordenado que ganhamos. Isso quer dizer que o ordenado é ruim? Não! Não acompanha é a subida do custo de vida”, sublinha. “Eu não gosto de estar acampando, mas preciso de me estruturar para depois comprar uma caravana ou alugar um quarto ou uma casa”, diz. “A mentalidade da maior parte das pessoas que está aqui é esta: viver na Quinta para ter dinheiro ao fim do mês. Ou seja, para ficar com alguma coisa e não pagar apenas a renda. Só que eu entendo quem não consegue viver neste ambiente de floresta. Principalmente, as pessoas que têm crianças. Aliás, eu acho que nem sequer há crianças aqui. Nesse sentido, as pessoas acabam aceitando aquilo que é imposto pelos senhorios”, reflete.

Quem aceitou aquilo que era imposto pelos senhorios, até há cinco meses, foi Ana Maria (nome fictício), de 47 anos, mas cansou-se e acabou por mudar-se para a Quinta dos Ingleses. “Sempre vivi em apartamentos. Portanto, viver neste ambiente é tudo menos fácil. Fazer as necessidades fisiológicas em baldes e tomar banho na praia são as coisas mais complicadas, na minha opinião. De resto, lá vamos resolvendo tudo à base da entreajuda. Felizmente, somos muito unidos. De outra forma, não sei como é que conseguiríamos viver no meio da floresta”, analisa. “Independentemente disso, quero sair daqui o mais depressa possível. Espero que alguém nos ajude, nem que seja porque os meios de comunicação nos estão a dar a voz que não temos”.

“Em outubro de 2023, temos 246 pessoas em situação de sem-abrigo, identificadas na base de dados do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) Cascais. Tem havido um aumento significativo do número de pessoas em situação de sem-abrigo (sem teto e sem casa). De 2019 (120 PSSA ativas) a 2023 (246 PSSA ativas)”, explica a Câmara Municipal de Cascais contactada pelo i. “Trata-se de uma evolução preocupante, quer ao nível da incidência do fenómeno e do que este aumento representa em termos do agravamento das condições de vida das pessoas em situação de grande vulnerabilidade, mas também do seu impacto na capacidade de resposta institucional. Importa recordar que esta evolução crescente não está descontextualizada da realidade nacional: se atendermos aos dados divulgados pela Estratégia Nacional para a Integração Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), entre dezembro de 2020 e dezembro de 2022 registou-se um aumento de 8 209 para 10 773 PSSA, ou seja, um acréscimo de 31%”, observa.

“O Concelho tem feito um grande investimento financeiro nesta área de intervenção, e podemos constatar pelas respostas diversificadas que temos à data de hoje, que esta diversificação é uma característica fundamental na intervenção com PSSA. As respostas/projetos à data de hoje são: acolhimento diurno (serviços de necessidades básicas: higiene pessoal, alimentação e lavandaria); acolhimento temporário (alojamento temporário); acolhimento permanente (alojamento permanente); equipas de rua – de intervenção direta”.

Existe ainda o Centro de Recursos da Adroana, uma “resposta social que visa o alojamento e acolhimento de pessoas em situação sem-abrigo (homens e mulheres), por um período temporário, promovendo a inserção social e/ou encaminhamento dos utentes para uma resposta social mais adequada”, sendo que “presta serviços à pessoas em situação de sem-abrigo externos à resposta de alojamento” e “tem a particularidade de também poder acolher animais (cães)”.

“Os objetivos passam por garantir acesso a condições básicas de sobrevivência;​ promover o acompanhamento e apoio contínuo do indivíduo, desde o seu acolhimento, à intervenção e reintegração adaptativa na sociedade; disponibilizar apoio psicológico e social ao indivíduo contribuindo para o seu bem-estar biopsicossocial e promover o desenvolvimento pessoal através da aquisição de competências pessoais, emocionais relacionais e profissionais”.

“Em números, até outubro de 2023, foram 129 PSSA apoiados: 79 PSSA internos (alojamento temporário) e 50 PSSA externos (acesso aos serviços básicos: banhos, alimentação e lavandaria)”, finaliza a CMC.