Já é de noite. No inverno anoitece mais cedo e as noites são mais frias. Para muitos, é hora de estar no conforto do lar. Outros não o têm. É para que estes consigam sentir algum conforto, há centenas de voluntários que deixam o quente das suas casas para que outros possam sentir também calor. No coração. É o caso de Dulce, voluntária desde 2017 na Comunidade Vida e Paz. É novembro, são quase 20h, está frio e chove mas a vontade de fazer bem pelos outros é maior que a de estar em casa. Quando chegamos, Dulce já lá está e as caixas com centenas de sandes e iogurtes já estão empilhadas. É mais uma noite de distribuição de comidas frias – a ceia, como lhe chamam – como, aliás, acontece todos os dias sem exceção. 365 dias por ano.
Para Dulce não há dúvidas que esta é uma “experiência marcante”, lembrando que passou por ela também no período pandémico, altura em que a Comunidade Vida e Paz nunca deixou de ir ao encontro das pessoas. “O que me levou a ser voluntária foi o facto de achar que devemos retribuir. O voluntariado é darmos o nosso tempo em prol de uma causa maior”, justifica. No seu caso – e tendo em conta que a comunidade tem mais de 600 voluntários – ajuda os outros no turno da noite, duas vezes por mês.
A Comunidade Vida e Paz faz voltas diárias, todas a cargo dos voluntários. O i tentou perceber quantas refeições são distribuídas por dia e é nesta altura que se junta Carlos, um ex-sem-abrigo que agora ajuda a comunidade. Conta-nos que o número das refeições depende dos dias. “São milhares de refeições por semana, centenas por volta. Os números não são sempre iguais”. Mostra-nos então uma folha. Naquela em específico, de segunda a sexta-feira são 530 sacos – que levam duas sandes, e ou iogurtes ou leite, dependendo dos donativos – mas no sábado o número já subia para 570 e no domingo eram 580.
Depois de mostrar os números, Dulce refere que estas rondas são mais uma “forma de estar com eles, um miminho”, até porque não se trata de uma refeição quente. Mas, “para quem tem fome, é uma ajuda. E temos casos de alguns que nos pedem a dobrar porque para muitos é a primeira coisa que estão a comer durante o dia. É um pretexto para estar com eles”.
Opinião com a qual Carlos concorda. “Vamos ter com eles com uma intenção de poder falar, principalmente pela parte psicológica. Os problemas que têm, as adições, seja álcool, droga, o que for. É uma forma de estar ao pé deles, trabalhar-lhes a cabeça, tentar perceber quando saem, porquê que apareceu na rua, o que se passa. Vão falando, vão comendo, e a nossa ideia é tirá-los da rua, não é mantê-los. Se não, todos os dias, em vez de levar duas sandes, levava um bitoque, uma sopa, uma mesinha, uma cadeira… E assim nunca mais saem”, diz-nos. E vai ajudar noutras tarefas.
Dulce continua a corroborar esta opinião. E defende que os voluntários ajudam também a criar confiança “e às vezes nota-se que eles têm necessidade, mesmo que seja uma conversa trivial, sobre o tempo, por exemplo, para se sentirem gente”.
Sobre o que encontram nas ruas, esta voluntária defende que há “de tudo”. Por exemplo, na ronda que fizeram na noite da passada sexta-feira, começaram por Lisboa, depois seguiram para Benfica e Amadora, para zonas como a Cova da Moura. E até estas voltas mudam a mentalidade dos funcionários. “São bairros problemáticos. Se me dissessem há três anos que ia para a Cova da Moura, não conseguia. Agora, até me esqueço do sítio onde estou. Acho que essas pessoas retribuem o nosso tempo acolhendo-nos bem. Não me sinto ameaçada nesses sítios. E nunca senti, em sítio nenhum”.
Quando estão com os sem-abrigo, os voluntários não forçam qualquer conversa. Tem tudo que partir deles. “Há voltas que às vezes não conseguimos ter uma conversa mais profunda. Há outros dias alguém quer conversar e nós ficamos o tempo que for preciso”, defendendo que não tem capacidades técnicas para trabalhar as adições e que, para isso, a Comunidade Vida e Paz tem gabinetes próprios para fazer estes trabalhos, os voluntários sinalizam-nos.
Antes de ser voluntária, Dulce confessa que lhe fazia alguma impressão mas que agora vê os sem-abrigo de forma diferente e que é gratificante falar com eles, “nem que seja aqueles 10 minutos de conversa para que eles se sintam gente, porque são”.
Mas desde 2017 até agora, a voluntária diz notar mudanças no perfil do sem-abrigo. E se antes muitos estavam na rua por problemas como o álcool, agora há outros. E a crise da habitação e os preços altos podem ser grandes responsáveis. “Agora vê-se muitos com problemas de droga, gente mais nova. No início não encontrava mulheres, raparigas, e agora encontro. Em menor número que os homens mas existe. Acho que há muita gente mais nova e estrangeiros”, diz detalhando que muitas das sandes entregues são feitas sem fiambre porque existem muitos estrangeiros na rua – que não falam português – e que em inglês lhes pedem ‘no pork’. E deixa um exemplo de que como um ordenado em Portugal nem sempre é suficiente para garantir um teto. “Há muitos condutores da Uber Eats que trabalham mas não ganham o suficiente para pagar um quarto. Trabalham e dormem na rua”.
Mas apesar de encontrar situações difíceis todos os dias, Dulce confessa que essa é a noite em que dorme melhor. “Não por aquilo que vi mas por pensar que dei um pouco de mim – e recebi –, nem que seja uma boa noite ou um sorriso de um sem abrigo. É muito importante o trabalho do voluntariado. Tentamos ajudar os outros mas este trabalho dá-nos muito. Apesar de estar a lidar com estas realidades, sinto-me grata”.
Depois da nossa conversa os trabalhos continuam. Não tem horas para sair nem para chegar, sendo certo que o regresso é de madrugada. Quando estiver tudo preparado, é hora de saída. Há centenas à espera. Sem teto. Com frio. E fome.