É indesmentível que o SNS, hoje, não consegue responder às necessidades de uma grande parte da população.
A prova mais evidente deste facto encontra-se na situação atual de cerca de 4,7 milhões de pessoas recorrerem ao setor privado da saúde, pagando – cerca de 3,5 m através de seguros de saúde e cerca de 1,2 M de funcionários públicos, elementos das forças de segurança e suas famílias – (quase metade da população) através de subsistemas, como a ADSE – quando a Constituição lhes confere o direito de terem cuidados de saúde (tendencialmente) gratuitos (apenas com taxas moderadoras) e de forma geral e universal.
Obviamente que esta elevada parte da população não recorreria, pagando, ao setor privado de saúde, se o SNS lhes assegurasse o mesmo tipo de resposta às suas necessidades.
O SNS vive, hoje, uma situação, que se agravou nos últimos 8 anos da governação socialista, e que se traduz pela existência de sérios problemas de acesso pela população aos cuidados de saúde, e que se sintetizam por:
– Elevadas e persistentes listas de espera para cirurgias e consultas;
– tempos de realização de consultas que excedem significativamente aqueles impostos por lei, chegando a atingir meses e mesmo anos de espera (em especial nas consultas hospitalares);
– número muito elevado de pessoas sem médico de família (cerca de 1,7 milhões, atualmente);
– fecho de urgências hospitalares que se generalizaram ultimamente devido ao conflito com os Sindicatos Médicos mas que se verificavam já, anteriormente, devido à falta de médicos no SNS (situação previsível e que não foi prevenida pela governação socialista).
A recente Direção Executiva, para enfrentar os problemas referidos, anunciou uma (a?) grande reforma do SNS que consiste na generalização das Unidades Locais de Saúde (ULS’s) a todas as entidades prestadoras de cuidados de saúde: centros de saúde e hospitais do SNS.
Uma ULS é uma resposta de organização e gestão e, em termos simples, é constituída por um hospital e pelos centros de saúde de uma dada área geográfica, sob a gestão de um mesmo Conselho de Administração (CA), com o propósito de assegurar, de forma integrada, a prestação dos cuidados primários e hospitalares dessa área.
É sedutor o conceito de integrar verticalmente sob uma mesma autoridade de gestão – o CA da ULS – a gestão do hospital e dos cuidados primários de uma dada área geográfica. Contudo, a generalização das ULS’s, das 8 hoje existentes, para um total de 39, como pretende a Direção Executiva, cobrindo a totalidade do território, vai, a meu ver, na direção errada, em termos estratégicos, e não resolverá os graves problemas do SNS.
Com efeito, a gestão pública do SNS, ao longo da sua existência, revelou-se sempre incapaz de resolver, de forma generalizada, os problemas de acesso da população aos cuidados de saúde, devido, em meu entender, à falta de estímulos, permanentes, constantes, para a sua eficiência, quer vindos do ‘exterior’ quer oriundos do ‘interior’ do SNS e esta anunciada reforma não resolve, e até contraria, esta questão essencial.
A evolução, que há muito defendo, do Serviço Nacional de Saúde para um Sistema de Saúde em que o Estado coexistiria com as iniciativas privada e social, através da contratualização destas, na prestação de cuidados de saúde à população, criaria mecanismos de comparação/competição/concorrência, entre as três iniciativas – pública, privada e social – a favor dos utentes e estabeleceria um estímulo permanente, constante, de melhoria de eficiência da gestão pública.
A contratualização é um aspeto decisivo para melhorar a resposta do sistema de saúde em termos de melhor qualidade, melhor acesso da população e menores custos para o Estado, como está amplamente comprovado pelo Tribunal de Contas e pela ERS-Entidade Reguladora da Saúde, no caso da contratualização da gestão privada nos hospitais públicos em PPP’s. Ora, a generalização das ULS’s vai na direção errada, também porque a cobertura de todo o território nacional por este tipo de organização vertical impede e retira a possibilidade do Estado recorrer à contratualização.
De referir, ainda, que a contratualização permite separar o pagador (o Estado) do prestador dos cuidados (a iniciativa privada ou social) o qual só será remunerado se cumprir os objetivos contratualizados o que aumenta significativamente a eficiência do sistema de saúde.
A introdução da liberdade de escolha dos utentes, efetiva e generalizada, seria também um outro estimulo ‘exterior’ importante para a eficiência do SNS.
Quanto à inexistência de estímulos internos para a eficiência do SNS, este facto tem a ver com a ausência, no setor público, de um sistema de meritocracia nos recursos humanos e com a existência de uma gestão burocrática, sem incentivos e reconhecimento do desempenho individual.
A generalização das ULS’s visa integrar os cuidados primários e hospitalares, mas sem a resolução dos problemas internos da gestão pública, sem a criação de estímulos vindos do ‘exterior’ através da contratualização e da efetiva liberdade de escolha dos utentes e sem a evolução do SNS para um Sistema de Saúde que integre todas as iniciativas – pública, privada e social – não é possível, a meu ver, ter uma resposta estrutural, eficaz, permanente, às necessidades de saúde dos portugueses.
A generalização das ULS’s, com a integração dos cuidados primários (centros de saúde) sob uma mesma autoridade de gestão, de grande influência hospitalar, vai, ainda, na direção errada dado que os centros de saúde deverão ser a ‘porta de entrada’ no sistema de saúde e o seu foco deve estar na promoção da saúde, na prevenção da doença, no acompanhamento próximo, pelos médicos de família, dos doentes, e em especial, dos crónicos, e no seu tratamento. Ora as ULS’s apontam para uma ótica de funcionamento de comando e controle, numa lógica de influência hospitalar, comprometendo a autonomia dos centros de saúde e afastando-os do seu foco fundamental.
A integração de cuidados, que é fundamental, não tem que ser feita por via da integração numa estrutura superior : as ULS’s. Os centros de saúde, em termos conceptuais, deverão ser ‘os clientes’ dos hospitais numa relação ‘cliente-prestador de serviços’ e não sujeitos a uma relação subordinada de gestão.
Aliás, a integração dos cuidados primários e hospitalares, pode e deve ser feita através do Processo Clínico Eletrónico que dê acesso aos médicos, quer dos centros de saúde quer dos hospitais – de toda a informação necessária sobre o doente.
Por último, há que referir, que dois estudos – um de fevereiro de 2015 da ERS e outro de 2018 (respeitante a 5 ULS’s no período de 2015 a 2018) – não comprovam as vantagens da integração dos cuidados de saúde primários e hospitalares, nas ULS’s já existentes, retirando portanto uma base de sustentação a esta opção.