Uma crise do regime

O Governo, que devia estar em plenitude de funções, vive em campanha eleitoral partidária.

No dia 7 de Novembro, depois de buscas na sua residência oficial, e de um comunicado do Ministério Público a referir que iria ser alvo de um inquérito, o primeiro-ministro comunicou ao país o seguinte: «A dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com a suspeita de qualquer acto criminal. Obviamente apresentei a demissão ao senhor Presidente da República (…). A minha demissão foi aceite pelo Presidente da República. Porventura quererá ponderar a partir de que data produz efeitos a minha demissão». Na mesma data, o Presidente da República confirmou no seu sítio oficial que tinha aceite a demissão do primeiro-ministro.

No entanto, no dia 9 de Novembro, o Presidente da República anunciou ao País que só iria formalizar essa demissão depois da aprovação do Orçamento de Estado. Anunciou, no entanto, já a dissolução do Parlamento, embora também só a vá concretizar em Janeiro, em ordem a que as eleições possam ser marcadas apenas para 10 de Março.

Esse adiamento pelo Presidente da República dos efeitos de uma demissão que aceitou, é claramente inconstitucional. Efectivamente, segundo a Constituição, quando a demissão do primeiro-ministro é aceite, o Governo fica logo demitido (art. 195º, nº1, b) da Constituição). Ora, quando o Governo é demitido, caducam todas as propostas de lei que apresentou ao Parlamento (art. 167º, nº6, da Constituição), incluindo naturalmente a do Orçamento. Por isso a aprovação do Orçamento para 2024 é claramente inconstitucional, uma vez que a Constituição determina expressamente neste caso a sua caducidade.

Que a solução constitucional é absolutamente acertada, demonstra-o o que se tem passado com as propostas de alteração ao Orçamento, que recentemente surgiram. Com medo das eleições, o PS propõe a retirada do Orçamento de uma medida emblemática que é o aumento do IUC. E os partidos da oposição apresentaram também propostas de alteração claramente eleitoralistas, tendo até sido proposta a recuperação integral do tempo de serviço dos professores, que tem um enorme impacto nas contas públicas. O Orçamento é assim um nado-morto, não se acreditando que o novo Governo o mantenha.

Ao mesmo tempo o Governo, que devia estar em plenitude de funções, vive em campanha eleitoral partidária, com ministros que se demitem, sem serem substituídos. Temos assim um Governo demitido, mas que está em plenitude de funções, o que constitui seguramente uma originalidade constitucional.

Ao mesmo tempo existe outra originalidade constitucional, que é de termos um Parlamento com dissolução a prazo, que invoca esse motivo para não fiscalizar o Governo, abolindo assim os debates quinzenais, mesmo quando o Governo se desfaz aos olhos dos Portugueses.

Com as suas enormes qualidades de constitucionalista, o Presidente da República construiu assim a quadratura do círculo constitucional: mantém na plenitude de funções um Governo demitido e um Parlamento dissolvido, para aprovar um Orçamento obviamente nado-morto. E coloca desta forma coloca um país no limbo durante quatro meses, que vai chegar a Março com todas as instituições em descrédito total. Estamos numa manifesta crise do regime.