Nunca vi uma entrevista que com o decorrer do tempo fizesse caminhos tão diferentes, ganhasse corpo, fosse inocente e culpada, como a que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henrique Araújo, deu ao Nascer do Sol há cerca de duas semanas. A entrevista deixou de ser de quem a deu, de quem a fez, para passar a ser refém do novo escândalo judicial e político que o burgo, apesar de escaldado, tem dificuldade em digerir.
Quando foi publicada, a 3 de novembro, uma sexta-feira, estava-se longe de imaginar que novo sismo faria estremecer o tripé desta cinquentenária democracia, que parece montado sobre uma calda de lama. As afirmações de Henrique Araújo, juiz de longa carreira e correspondente experiência, viriam a ganhar uma dimensão esotérica: «A corrupção está instalada em Portugal e tem uma expressão muito forte na administração pública. Isto não é uma simples perceção, é uma certeza!»
Jornais e estações de televisão matabicharam-na naquele fim de jornada de trabalho e citaram em uníssono as palavras do presidente. Que a corrupção estava instalada no país ninguém tinha dúvidas, mas que a quarta figura do Estado viesse afirmá-lo com tanta clareza e coragem merecia a degustação.
Mas, na terça-feira seguinte, buscas por todo o país e o comunicado emitido pela PGR (a vítima que se seguiria) deixam claro, a não ser para os falsos cegos, que o primeiro-ministro poderá ser suspeito de crimes de tráfico de influência para beneficiar os negócios de pelo menos um grupo empresarial – que contratara Diogo Lacerda Machado (o seu “melhor amigo”) supostamente para o representar como advogado, mas que verdadeiramente atuava na sombra como consultor e influenciador – voltaram a colocar em foco não a entrevista e sim o corpo e a cabeça de Henrique Araújo. Como há jornalistas muito versáteis, que mesmo quando nada sabem da matéria não têm o talento de fechar a beiçola, logo atoucinharam a febra, sugerindo que o discurso do juiz era de quem já sabia o que estava para acontecer e mesmo que a sua intervenção precipitara a operação.
E há notícias que não são notícias, são apenas manifestações de alegria. A rufar no prato com duas facas e a palitar o cérebro com esmero para não o trilhar, junta-se à refeição o grande príncipe da advocacia com folha de serviço em Macau, Manuel Magalhães e Silva, que, no tom costumeiro de chalaça, classifica a entrevista de conversa de “tasca”.
Enquanto se escutava o rugido da deglutição da defesa dos detidos e dos seus apaniguados, forja-se outra vítima: Lucília Gago. E que tal se o primeiro se virasse contra a segunda?
Na manhã das buscas, a procuradora-geral da República, a pedido do primeiro-ministro, é chamada a Belém pelo presidente. António Costa, com buscas em S. Bento ao seu chefe de gabinete, precisava de saber com que linhas se cosia para retirar as devidas consequências políticas. A investigação tinha decorrido num bunker. Nada transpirara. Enquanto decorre a conversa entre Marcelo e Lucília Gago, sai o comunicado que envolve o primeiro-ministro. Costa demite-se. Mas, como disse alguém, não foi por mor da nação que o fazia, o que é começado por mor do Estado termina frequentemente em prejuízo do mundo.
O primeiro-ministro, como demonstra a história recente, nunca se deixa ir ao fundo, há de sempre trepar por aí acima e desenrascar-se. Numa manobra digna de circo, insinua no passeio público que fora Marcelo Rebelo de Sousa quem chamara a PGR. Afouto, o governante limpava as mãos, nada tivera com o sui generis convite.
Para se discutir a dissolução ou não da Assembleia da República, Marcelo convoca o Conselho de Estado para dali a dois dias, uma quinta-feira. Às vezes, não é difícil imaginar de onde as notícias surgem. Na edição de sexta, o Expresso destaca uma originalidade: o último parágrafo do famigerado ofício, apenas mesmo aquele ‘naquinho’, fora redigido pela PGR. Sem ninguém assumir a autoria, começa a circular a informação de que teria sido mesmo escrito pelo presidente! Ah, valentes! Um conselheiro de Estado, com a papa no estômago a querer saltar num vómito vem repor a ordem das coisas. Afinal Costa, governante refratário à verdade, assumira perante os conselheiros que fora ele quem tomara a iniciativa de chamar a PGR a Belém.
E assim o comunicado da PGR passa a ser o novo repasto dos convivas que, em vez de lhe tecerem elogios pela transparência, por não ter sido encarcerado – como aconteceu no caso Face Oculta, numa originalidade jurídica chamada ‘extensão procedimental’, para mais tarde ser consumida pelas chamas –, é visto como um golpe de Estado. E, na mesma mesa-redonda, os convivas, envergando o olho famélico sobre a iguaria, tentam estraçalhá-la para que venha a público esclarecer o que até António Costa percebera: «Estou a ser investigado num processo-crime”.
E eis que surge uma indiscreta informação com contornos de segredo de Estado: até o presidente do Supremo não fora informado que havia uma investigação ao primeiro-ministro em curso. Nem tinha de saber, senhores! O inquérito corre no MP junto ao Supremo. A Henrique Araújo apenas compete validar escutas, o que foi fazendo ao longo de dois anos. Como não há novas escutas para por ele serem apreciadas, o assunto só está nas mãos de quem de direito. Mas, mais uma vez, uma situação normal ganhou contornos conspirativos.
Uns atiraram-se ao pudim, outros brindaram. Aqui d’ el Rei! A PGR não dera conta da investigação ao presidente! Era mesmo um golpe, não era?
E não há nada no decorrer do pouco que ainda se sabe desta investigação que não tenha seguido igual percurso da entrevista de Henrique Araújo. O que agora mais importância tem é aquilo que agora menos importa – como os famosos erros que o MP terá cometido. Há mesmo quem fale dos crimes em causa de um modo simpático: como é que se pode falar em corrupção ou tráfico de influências por contrapartidas tão modestas? O presidente da Câmara de Sines, suspeito de corrupção pelo MP, mas que, até ver, saiu ileso por decisão do juiz de instrução, até é visto como o Robin dos Bosques do berço de Vasco da Gama, um homem de viagens sem atalhos. Afinal, o autarca apenas pedira aos capitalistas uns “regalos” para a comunidade. E o mercadejar de cargo? Viajou na nau? Nuno Mascarenhas, que por variadíssimas vezes bateu o pé ao que lhe era pedido argumentando que o que queriam era «completamente irracional», só vergou quando foi ameaçado de ficar sem o apoio político do PS nas próximas eleições autárquicas. E a tertúlia dos comensais defende mesmo a continuação da atividade criminosa. E por que não furar procedimentos para pôr a andar projetos que trazem investimento ao país? A questão, senhores comensais, é saber se eles foram feitos de forma equitativa, imparcial e transparente e não em benefício próprio e dos amigos. Nada mudou desde José Sócrates, a não ser que agora é permitido dizê-lo.