Durante a campanha, fez ecoar o seu slogan «Viva la libertad, carajo!» por toda a Argentina. Na noite de domingo, no discurso de vitória, Javier Milei anunciou «o início do fim da decadência argentina».
Sempre extravagante e heterodoxo, Milei derrotou na segunda volta das eleições presidenciais argentinas o atual ministro da economia, Sergio Massa. Com 55,7% – equivalentes a 14 milhões de votos -, tornou-se o Presidente mais votado do período democrático daquele país.
As congratulações têm chegado dos mais diversos cantos do mundo, mas foram as dos partidos e figuras mais à direita que receberam maior destaque: de Donald Trump a Jair Bolsonaro, passando por Nayib Bukele, Presidente de El Salvador, o candidato pelo La Libertad Avanza tem sido um alvo fácil para quem queira colar-lhe rótulos como ‘extrema direita’ ou ‘paleolibertário’. O facto é que, concorrendo com base num programa eleitoral que diverge em temas fraturantes com as fações mais conservadoras, mobilizou o povo argentino e obteve uma vitória sem contestação.
A ‘motosserra’
O momento em que Javier Milei se apresenta com uma motosserra – servindo de metáfora para as reformas que tenciona levar a cabo – tornou-se a sua imagem de marca. Um dos seus grandes objetivos é eliminar gastos desnecessários do Estado, e para isso propõe um corte de grande dimensão nos ministérios. Num vídeo mediático mostra-se a arrancar diversos ministérios de um quadro: o do Turismo e Desporto, da Cultura, do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, das Mulheres, Género e Diversidade, das Obras Públicas, do Trabalho, Emprego e Segurança Social, dos Transportes e do Desenvolvimento Social. Mas os que mais controvérsia causam são os da Ciência, Tecnologia e Inovação – algo que Milei entende que deve ser gerido pelo setor privado, acrescentando que «nada de bom saiu do setor público» – o da Educação, onde considera que se realiza a «doutrinação» dos estudantes, advogando o ‘cheque-ensino’, e ainda o da Saúde, defendendo que o encurtamento do Estado não deve diminuir a qualidade – nem a quantidade – dos serviços. Isto seria possível, segundo um documento oficial do partido, através da otimização dos recursos públicos, da melhoria de condições para os profissionais de saúde e da estrutura hospitalar, alavancados pelas parcerias público-privadas.
Num programa que reflete o seu liberalismo fervoroso, o foco principal é a economia, prometendo reformas de fundo e que contrariam o status quo económico imposto pelos governos peronistas. Das dezasseis propostas, destacam-se a privatização das empresas públicas que apresentem prejuízo, a criação de condições para atrair investimento privado e estrangeiro, a eliminação do Banco Central numa terceira fase e o fomento da competitividade de moedas para que os cidadãos tenham liberdade de escolha, levando, numa última fase, à dolarização da economia.
Ainda que se possa questionar a capacidade do novo Presidente pôr em prática todas as reformas pretendidas, a economia se começou a movimentar logo na manhã de segunda-feira: as obrigações estrangeiras registaram uma subida, tal como as ações das empresas argentinas em Wall Street.
O papel de Bullrich e Macri
A coligação Juntos por el Cambio (JxC), através da sua candidata Patricia Bullrich e do ex-presidente Mauricio Macri, desempenhou um papel fundamental na vitória de Milei. Bullrich, a candidata anti-peronista da JxC foi a terceira mais votada na primeira volta, atingindo 18% dos votos. Ainda que tenha sido insuficiente para continuar na corrida à Casa Rosada, o seu posicionamento no pós-primeira volta seria decisivo. A urgência de pôr fim ao kirchnerismo, uma variante peronista, foi a justificação que levou a ex-candidata a esquecer as divergências e até as trocas de acusações pré-eleitorais com Milei. «Deixemos o kirchnerismo para trás, de uma vez e para sempre», afirmou Bullrich num vídeo de apelo ao voto em Milei, vendo-o como única alternativa para a mudança. A ex-ministra da Segurança chegou a aparecer junto do agora Presidente eleito, num evento convocado pouco antes do ato eleitoral, protagonizando um abraço histórico que representa a mudança argentina.
A morte do peronismo?
A figura e o legado de Juan Perón são incontornáveis no cenário e no debate político argentino. O peronismo, e as suas ramificações, dominaram a vida política do país por mais de sete décadas e as campanhas baseiam-se na sua glorificação por parte dos candidatos que assumem a ideologia, e diabolização por parte daqueles que se lhe opõem. A origem, desenvolvimento e legado deste movimento político-ideológico são alvo de análise profunda e complexa, mas cada argentino – e são raros os que não o conhecem – atribui-lhe as suas próprias características, tornando-o também um fenómeno social de interesse. A justiça social, os direitos dos trabalhadores e a oposição às políticas imperialistas são os três pilares do peronismo, que, com o evoluir da política e dos agentes que a fazem, tem hoje uma forma diferente da inicial. Mesmo com os avanços alcançados sob governos peronistas, foi também com Perón e com os seus ‘herdeiros’ que a Argentina, outrora uma das maiores potências económicas e com maiores taxas de desenvolvimento, passou a ser um fracasso económico e social, atingindo o limite neste último mandato de Alberto Fernández. Com a inflação a rondar os 150%, podendo chegar aos 180% até ao fim do ano, e a pobreza em máximos históricos, afetando cerca de metade dos argentinos, o peronismo – ou kirchenrismo, a mais recente vertente de Néstor e Cristina Kirchner – foi vencido pelo desgaste. A escolha do atual ministro da Economia para as eleições presidenciais, onde enfrentou um fervoroso Milei, pode ter sido um tiro no pé por parte dos kirchneristas, e ainda que tenha saído vitorioso da primeira volta, Sergio Massa estava ciente das dificuldades, já que a maioria dos argentinos votou em Milei ou em Bullrich.
Quando se coloca em questão o estado de saúde das políticas peronistas, é útil relembrar os três governos que se demarcaram da ideologia: tanto o de Raúl Alfonsín, como o de Fernando de la Rúa e por fim o de Macri ficaram marcados por crises e mandatos atribulados, que voltaram a direcionar a população para o peronismo. A duração destes três governos, quando somada, foi de 11 anos, menos do que o próprio Juan Péron esteve no poder. Porém, a análise deste insucesso é também importante, já que as reformas que tentaram levar a cabo eram, na maioria, impossibilitadas pela oposição e pelo seu ‘braço armado’, os sindicatos. A expectativa recai num governo mais à direita pela quarta vez, e o seu sucesso apenas poderá ser auferido consoante a eficácia das suas reformas, que no caso de se realizarem – e terem sucesso – podem sentenciar de vez o peronismo e mudar o paradigma ideológico na América Latina.