Há quem diga que a fantasia é a parte mais fascinante da realidade. Felizes, portanto, aqueles que podem viver no reino da fantasia, como os loucos e os poetas. A realidade manda-nos dizer esta verdade insofismável: neste momento há mais de 8 mil milhões de pessoas sobre a Terra; daqui a 150 anos todas estarão mortas. Cerca de 160 mil dessas pessoas estão em San Juan de Ambato, uma cidade no centro do Equador, situada nas margens do rio Ambato. Foi aí que nasceu, no dia 29 de junho de 1926, um indivíduo que ganhou o nome de Jorge Enrique Adoum. Viria a ser escritor, político, ensaísta, diplomata. Sobretudo poeta porque até na prosa era poeta: “Salud, ángel de paso, irremediablemente intacto./Entonces ¿no hay olvido?/y no podré jamás confundirme de puerta/y a nunca equivocarme de rostro de tranvía/comenzar el destino en la otra mano/con una llave o un sombrero diferentes/sin recorrer la misma duda y a la misma hora/la misma calle con el mismo pie”. Se havia algo que Jorge nunca esquecia, a não ser que fosse obrigado a isso, era de ir ver um jogo de futebol ao estádio mais perto do lugar onde estivesse. Para ele o futebol também era poesia. E a bola um papel redondo onde era possível escrever versos que nunca ninguém poderia jamais aprender a decorar.
O pai de Jorge, também ele Jorge, era um ocultista. Chamavam-lhe Mago Jefa. Ensinou ao filho a não se deixar intimidar pela realidade porque podia sempre que quisesse fugir para esse mundo encantado no qual as palavras se deixam enfeitiçar uma pelas outras e enfeitiçam os humanos e os fantasmas. Jorge Enrique escreveu um livro que marcou a sua vida e a vida de muita gente: Entre Marx y una Mujer Desnuda! Depois foi secretário de Pablo Neruda e aproveitou para aprender mais duas ou três coisas sobre todas as esquinas por onde para a poesia.
A América Latina é uma espécie de mãe de todas as revoluções. Algumas delas foram tão fantasistas que nem deviam ter tido lugar na realidade. Em 1961, um golpe militar tomou conta do Equador e Jorge Enrique não era bem visto pelos militares. Os militares gostam de disciplina, mesmo os militares abandalhados dos países das bananas, e Jorge não se submetia aos ditames da disciplina. Partiu para Paris e deixou para trás aquele Ecuador Amargo que também foi título de um dos seus livros. Ficou mais longe do futebol de canela até ao pescoço que era o seu favorito, às vezes ia ver o Racing de Paris, o clube francês que preferia, talvez por ter aquelas camisolas azuis e brancas horizontais como se fossem de rugby e isso o aproximasse da vontade de lutar pelo mais pequeno pedaço de terra que estivesse ao seu alcance. Falava bem português e foi leitor de literatura para as edições Gallimard. Sempre inquieto. Sempre desencantado. Sempre sofredor.
Hoje, enquanto escrevo estas linhas, Jorge Enrique Adoum está, pelo que sei, morto e enterrado. Em Quito, na Arvore da Vida da Capela do Homem. Mas quem está morto e enterrado num sítio com um nome assim, é bem possível que esteja apenas alheado da realidade e imerso na fantasia. Não sei, nem adivinho. Talvez Mago Jefa tivesse algo a dizer sobre o assunto. Antes de morrer, Jorge traduziu muita da obra de Fernando Pessoa para castelhano. Teve tempo para voltar para o seu país pacificado e receber o Premio Nacional de Cultura Eugenio Espejo, a mais alta recompensa cultural do governo equatoriano, pelo conjunto de sua obra. Feliz, sentava-se nas bancadas do Estadio Liga Deportiva Universitaria, no Barrio de Ponciano Bajo, Av. Diego de Vásquez, mais conhecido por La Casa Blanca, e torcia livre e ruidosamente pelo Liga Deportiva Universitaria, nome certo para um clube amado por um poeta. Escreveu sempre, sempre, até deixar definitivamente de respirar, ele que respirava escrita: “Por lo menos con esto me distraigo/me corrijo la vida como debió haber sido/hago cuentas de cuánto debo irme/para no estar conmigo en otra parte/escondiendo analgésicas teorías/olvidando soluciones criminalmente justas/manuscritos de la tempestad al fin y al cabo/con lo demás no hay cómo son las piedras honestas/del que no fui y seguí siendo otras veces/del que quise nacerme sin mancha de pasado…”.
Jorge era um adepto sem vergonha e não se continha nos gritos. Fosse para assanhar os jogadores da sua equipa fosse para apequenar os adversários. Poeta que é poeta não aceita limites à liberdade do dizer. Uma vez, furioso com um árbitro berrou: “Hijo de puta!”. A seu lado, um amigo bem intencionado segredou-lhe que, pelo que lera no jornal, a mãe do árbitro morrera dois dias antes. Então Jorge, piedoso, redimiu-se e voltou a berrar: “Huérfano de puta!”