Os ossos de Eça de Queiroz – 2.ª Parte

Enquanto o padre não chegava à casa de Neuilly, arrisco dizer que Eça de Queiroz terá confessado à mulher que gostaria de ser sepultado em Verdemilho, a terra onde estavam as suas raízes afectivas, o quadro onde se desenvolveu a sua meninice.

4. A Infância de Eça de Queiroz

Para manter incógnito o seu nascimento e não comprometer a honra da mãe, o pai de Eça de Queiroz, de seu nome José Maria Teixeira de Queiroz, exercendo então o cargo de delegado do procurador régio em Ponte de Lima e orçando 26 anos de idade, levou o futuro escritor para ser baptizado em Vila do Conde, mantendo oculto, porém, o nome da mãe do bebé.

Fez-se assim, segundo alguns queirosianos, porque Carolina Augusta Pereira de Eça, tendo então pouco mais de 20 anos de idade e pertencendo a uma família de militares distintos — era filha do coronel José António Pereira d’Eça, falecido na sequência dos ferimentos que recebera nas linhas do Porto, em 1833 —, não obtivera de sua mãe a necessária autorização para casar.

Fosse assim ou assado, a verdade é que, seis dias após a morte da avó materna do escritor, em 28 de Agosto de 1849, os seus pais casaram, tinha ele perto de quatro anos. Segundo José Calvet de Magalhães, “o Dr. Queiroz e Carolina casaram, nessa mesma cidade [Viana do Castelo], em 3 de Setembro seguinte, um facto insólito, mesmo escandaloso, numa pequena cidade de província e numa época em que os comportamentos sociais obedeciam a regras muito rígidas” (Eça de Queiroz. A vida privada, p. 23).

Mantendo-se incógnita a mãe, Eça ficou temporariamente em Vila do Conde, na Rua da Costa, confiado aos cuidados de uma costureira mestiça, Ana Joaquina Leal de Barros, que seria também sua madrinha no baptizado (e ama de leite), casada com um modesto alfaiate que respondia pelo nome de António Fernandes do Carmo.

Brasileira, natural de Pernambuco, Ana Leal de Barros era uma antiga criada da casa da família Pizarro, proprietária da quinta da Senhora das Dores em Verdemilho, que quase confinava com o solar da Torre, da família do pai de Eça de Queiroz. Pessoa de confiança, este último contratou-a e Ana Joaquina cumpriu, tratando a criança como um filho, não se sabe ao certo até que idade.

Paulo Cavalcanti sugere que terá sido até aos cinco ou seis anos. Só isso justificaria o seguinte: “Eça aprendeu a falar português com sotaque brasileiro, ouvindo, nos quatro anos de sua convivência com Ana Joaquina, as canções de ninar e as histórias infantis do Nordeste brasileiro. Ninguém pode subestimar a influência exercida pela pernambucana Leal de Barros na formação da linguagem e do estilo de Eça de Queiroz, cujos processos de expressão literária representaram, para Portugal, uma verdadeira revolução nos cânones do idioma. Algumas das características da prosa ‘eciana’ – o apego à sonoridade das palavras, a colocação antilusitana dos pronomes, a tendência à espontaneidade das expressões, indo até a mudanças na estrutura da língua — podem ter decorrido dessas influências” (Eça, Agitador no Brasil).

Porém, Alfredo Campos Matos, baseando-se no biógrafo brasileiro Gondin da Fonseca, defende que Eça teria ido para Verdemilho no final do primeiro ano de vida. Com efeito, diz Gondin da Fonseca que Francisco Borges de Medeiros, contemporâneo de Eça, lhe revelara ter conhecido o avô Joaquim José, nos anos de 1914 a 1917, e que vira o bebé ao colo de certa ama em Verdemilho, em casa dos avós, concluindo-se que o futuro escritor português teria ido para a Quinta da Torre logo a seguir ao desmame (Gondin da Fonseca, E.Q., Sua Vida, Sua Obram Vistas sob Novo Aspecto, 1970). E, sendo assim, defende Campos Matos, “a evidência textual é a favor desta última versão”.

Num ensaio surgido postumamente (“O Francesismo”, publicado em 1912, mas escrito por volta de 1887), Eça abandonava-se, com enternecido entusiasmo, à evocação da infância, rememorando as doces figuras dos criados da casa de Verdemilho: “Apenas nasci, apenas dei os primeiros passos, ainda com sapatinhos de croché, eu comecei a respirar a França. Em torno de mim só havia a França. A minha mais remota recordação é de escutar, nos joelhos de um velho escudeiro preto, grande leitor de literatura de cordel, as histórias que ele me contava de Carlos Magno e dos Doze Pares… Também o meu preto lia contos tristes das águas do mar. Eram as aventuras de João de Calais”.

Eça referia-se, por certo, ao criado Mateus de Brito — tratado por Joaquim José como o “fiel criado Mateus” ou o “velho escudeiro Mateus” —, o qual teria vindo do Brasil com apenas 17 anos de idade.

Com cerca de um ano de existência, portanto, Eça mudou-se para casa dos avós paternos, em Verdemilho, na periferia na cidade de Aveiro. Uma casa brasonada, rica e espaçosa, cercada pela amplidão da herdade da família, por onde se estendiam os milheirais e se ouviam os pássaros cantar (claramente em contraste com a casa de pedra e cal de Vila do Conde, que era pobre, pequena e abafada).

Foi recebido de braços abertos pelo avô, Joaquim José de Queiroz e Almeida, nascido em 1774, em Quintãs (Aveiro), e pela avó, Teodora Joaquina de Almeida (de onde terão derivado os nomes de algumas personagens dos romances de Eça, como Teodoro, Teodorico, etc.).

Formado em Direito, pela Universidade de Coimbra, Joaquim José estava no Brasil — nas terras pernambucanas do Recife — a desempenhar as funções de desembargador. Consigo levara Teodora, rapariga de origens modestas, nascida em Fornos de Algodres, que conhecera no desempenho das suas funções como juiz de fora em Azurara da Beira (actual vila de Mangualde) e por quem se tomara de amores.

Desta relação nasceu no Brasil (Rio de Janeiro), em 17 de Julho de 1819, José Maria de Almeida Teixeira de Queirós (baptizado na igreja da Candelária), futuro pai de Eça de Queiroz, o qual viria para Portugal ainda criança de bacio.

Elemento preponderante da Maçonaria (da loja maçónica instalada na casa da Quinta dos Santos Mártires, em Aveiro, onde era conhecido como o “Irmão Rosa Cruz”, onde mostrou camaradagem com desembargadores, bacharéis, provedores e juízes de fora), o avô paterno de Eça de Queiroz regressou a Portugal em 1821, com a enorme comitiva de D. João VI e da sua “augusta família” (a comitiva integrava cerca de três mil pessoas, incluindo ministros, oficiais, diplomatas, dignitários da corte, funcionário, etc.), na sequência da Revolução do Porto de 1820 e da convocação das Cortes.

Em Novembro de 1822, vendo-se em situação de desafogo monetário — por então já ele pertencia à Câmara dos Deputados —, o conselheiro Joaquim José comprou “uma propriedade de casas com terra lavradia, árvores e parreiras, dois poços e mais pertences, chamada a Torre, sita defronte do celeiro do dito lugar [Verdemilho]”. Aí se instalou com Teodora Joaquina, os seus seis filhos e os criados negros que com eles vieram do Brasil.

Após a dissolução do Parlamento português, por D. Miguel, em 13 de Março de 1828 — regressado de Viena nesse ano, Miguel proclamara-se monarca absoluto e revogara a carta Constitucional de 1826 —, Joaquim José esboçou um protesto enérgico contra a política anticonstitucional, mas de nada lhe valeu. Obrigado a recolher à casa de Verdemilho, juntou-se a outros maçons aveirenses com o intuito de planear a revolta liberal de 16 e 17 de Maio de 1828, tentada em Aveiro e no Porto, e se tornar assim numa figura de relevo entre os conspiradores e dirigentes das lutas contra a política anticonstitucional de D. Miguel.

Gorada a insurreição, e após ter proclamado, em Aveiro, a regência de D. Maria e da Carta outorgada por D. Pedro, foi Joaquim José julgado por se ter oposto à realeza de D. Miguel e, no ano seguinte, sentenciado à morte pela Alçada do Porto, mais exactamente a 25 de Novembro de 1829 (o mesmo dia em que, 16 anos depois, nasceria o neto Eça de Queiroz), para que “com baraço e pregão, fosse conduzido pelas ruas públicas da cidade do Porto, e que num alto cadafalso, que ali seria levantado, de sorte que o seu castigo fosse visto de todo o povo, a quem tanto tinha escandalizado o seu horrorosíssimo delito, morresse de morte natural de garrote e depois de ser decepada a cabeça, desse infame, perverso e façanhoso Joaquim José de Queiroz, fosse o mesmo cadafalso com o seu corpo reduzido pelo fogo a cinzas, que seriam lançadas ao mar, para que dele e da sua memória não houvesse mais notícia”.

A sentença, de onde foi retirado este texto, referia igualmente que o avô paterno de Eça de Queiroz fora “não só o mais atrevido e ousado conspirador, cabeça e principal autor dos tramas e maquinações que urdiram e prepararam o horroroso atentado”.

Nessa altura, porém, já Joaquim José se escondera entre as casas e valados de Verdemilho e do Bonsucesso, na mina da fonte da Arregaça e nos subterrâneos do Crasto, “onde os serviçais lhe levavam mantimentos escondidos em um cântaro de água. Pôde ir pela ria para Ovar numa bateira carregada de bajunça, escapando então a uma busca que os esbirros lhe fizeram, sem saberem que o estavam calcando, nas alturas de Cacia” (Acácio Rosa, “Em Ronda pelo Passado”, Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. VIII, n.º 30, Junho de 1942, pp. 81-92).

Pondo-se depois a caminho da Galiza, com destino a Inglaterra (Plymouth, onde também estiveram Almeida Garrett, José Estevão, Mendes Leite, etc.), Joaquim José escapou finalmente ao veredicto que o condenara ao garrote.

Em 8 de Julho de 1832, acompanhou as tropas liberais no desembarque do Mindelo, a norte do Porto. Com a derrota de D. Miguel, em 1834, Joaquim José recebeu a distinção de Fidalgo da Cota d’Armas (ou seja, com direito a brasão) e foi nomeado Presidente do Tribunal da Relação do Porto, mas seria depois demitido por declarar o seu apoio ao cabralismo. Reintegrado em 1847, ano em que se tornou ministro da Justiça, cargo que ocuparia por pouco tempo, retirou-se definitivamente na casa de Verdemilho, na companhia da mulher, dos filhos e dos dois empregados brasileiros.

No solar da Torre, adquirido pelo conselheiro Queiroz em Novembro de 1822, depois do regresso do Brasil (casa que, durante o seu exílio em Inglaterra, fora “alvo de devassas e confisco de bens”), passou Eça a sua infância, “ora nos joelhos do avô, de quem ouvia as narrativas das guerras civis, ora nos do criado preto, que lhe contava histórias fantásticas” (Vianna Moog, Eça de Queirós e o Século XIX).

Graças ao casal de criados, Mateus e Rosa Laureana, negros e brasileiros, a presença da Terra de Vera Cruz na infância de Eça de Queiroz teve continuidade nos anos seguintes. Segundo Joaquim Neves, “Entretinham o menino com brincadeiras e contavam-lhe histórias. O criado, a quem a boa e educada gente de Verdemilho tratava por senhor Mateus, tinha bom coração, comprazendo-se em oferecer frutas às crianças, e até às pessoas já crescidas. A criada era também tratada por senhora Laureana, deferência que deve ser tomada, em parte, à conta do respeito que Verdemilho tinha e ainda tem pelo conselheiro Queiroz e família. (…) Depois da morte de seu companheiro de trabalho, ambos oriundos do Brasil, a Laureana continuou a viver na pequena casa da quinta, e assim perto da residência dos seus antigos senhores” (Eça em Verdemilho).

António Cabral, biógrafo e contemporâneo de Eça (chegou a conhecer o escritor, a família e alguns dos seus amigos íntimos), político eminente do final da Monarquia Constitucional (foi ministro da Marinha e Ultramar entre 1908 e 1909), dizia que o criado Mateus reencarnaria no escudeiro negro do romance A Cidade e as Serras. E, na opinião de António Ramos de Almeida, o período vivido em Verdemilho “transportou-o Eça para as páginas de Os Maias. A casa de Verdemilho da vida é a Santa Olávia do romance e Afonso da Maia, o velho liberal que se exilou em Inglaterra, que educou à inglesa e anti-jesuiticamente o neto, não é outro, senão o revolucionário de 28, que se exilou também em Inglaterra para fugir à morte” (Eça, p. 62).

Os meses de Verão passava-os Afonso da Maia [personagem de Os Maias] em Santa Olávia, nas arribas do Douro, e ali se refugiou com o neto depois da morte do filho e do desaparecimento da nora e da neta. Em apoio desta hipótese, Gondin da Fonseca pergunta: “onde teria ele [Eça de Queiroz] ido buscar Afonso da Maia, imagem de um avô tão amado, se não tivesse vivido ele um dos períodos mais sensíveis da sua infância, entre um e cinco anos?”.

Por outro lado, Jorge Campos Henrique, no estudo que fez sobre as raízes de Eça em Aveiro, defendeu que o solar é a “Ilustre Casa de Ramires”: “curiosamente, [Eça de Queiroz] deu ao solar de Gonçalo Ramires o nome de A Torre, precisamente o da quinta do solar de seus avós, em Verdemilho” (Eça em Aveiro: Raízes e Outras Histórias, 2001).

A 3 de Novembro de 1900, escrevia melancolicamente a viúva de Eça, em carta dirigida a Ramalho Ortigão: “Tenho estado lendo a Casa de Ramires, que já conhecia, e que tanto me impressiona; com efeito quanto de si próprio o José pôs naquele livro! eu estou lá sempre reconhecendo ditos, graças, gostos, versos, tanta coisa que me põe o José vivo diante de mim, e me faz parecer que o vou ouvir!”.

Pelos caminhos de Verdemilho, entre as suas casas e à sombra das árvores, como todas as crianças, Eça de Queiroz correu e brincou. Muito mais tarde, o filho, António Eça de Queiroz, disse em voz alta aquilo que o pai lhe contou:

“Da meninice de meu Pai pouco sei, mas foi justamente da época risonhamente vivida em Verdemilho e dos seus ainda que pequenos passeios pela região de Aveiro, que mais lhe ouvi falar. É claro que nos contou mil coisas, graças e travessuras, episódios da sua infância e mocidade, de aqui, onde foi muito feliz e começou a abrir alegremente os olhos para a vida (…). Mas foram histórias contadas a crianças — eu tinha 10 anos à data da sua morte — por isso recordo poucas e as lembro mal; mas sei das suas modestas aventuras de garoto — tão parecidas às que nós todos realizamos. Correrias e fugas delitosas que traziam sustos, ralhos e perdões, como ir à caça dos pássaros! (…) compreendo hoje, que se limitavam, certo, a deliciosas apanhas de pardais com visco ou armadilha, como tantas vezes fizemos, meus irmãos e eu, nos campos de Penamacor. E como desfecho, voltava a casa num grupo amigo e chalreio de rapazitos da aldeia, com molhos de passarinhos à cinta. Não faltavam as histórias fabulosas do Brasil, embelezadas talvez, para nós, com franjas de fantasia, que ele ouvia a seu avô e aos criados pretos, e nos contava junto à lareira acesa, no seu belo escritório, nas tardes de Inverno de Paris. (…) No aido da casa de Vila de Milho, entretinha-se com um regador próprio para crianças, a borrifar os alfobres de pranta, sob as vistas da avó Teodora, que lhe permitia o corte de botões de rosa e a apanha de cravos, pelo geral, brancos (…). Uma vez ou outra aliciava rapazes da vizinhança para exterminar a praga dos caracóis” (citado em António Lebre, Eça em Verdemilho e a sua Vida, 1962, p. 85).

A prima direita do escritor, Conceição d’Eça de Melo, lembraria também, a propósito da casa em Verdemilho, que “Eça de Queiroz recordava-a sempre com saudade, e, quando vinha a Portugal, mais de uma vez foi visitar aquela povoação onde passara os seus primeiros anos. (…) Nessa animada primeira infância, de que o romancista guardava no fundo do coração uma enternecida memória, a sua inteligência era já de notar. Aprendeu aí as primeiras letras e fez esses primeiros estudos (…) com incrível facilidade” (Eça de Queiroz revelado por uma ilustre senhora de… sua família…, 1924, p. 11).

Em criança, Eça percorreu também os areais da aveirense Costa Nova, juntamente com os avós paternos, que ali possuíam um palheiro, as famosas casas de riscas coloridas, em fundo branco, típicas daquela praia, utilizadas como habitações na estação balnear.

Mais tarde, Eça passaria férias, inúmeras vezes, na Costa Nova, com amigos, como Oliveira Martins e Antero de Quental, ou, depois de casar, com a esposa, Emília de Castro. Numa carta a Oliveira Martins, de 1884, Eça explicava ao autor de Portugal Contemporâneo que “filho de Aveiro, educado na Costa Nova, quase peixe na ria, eu não preciso que mandem ao meu encontro caleches e barcaças. Eu sei ir por meu próprio pé ao velho e conhecido palheiro de José Estevão” (sublinhe-se que Eça, não por nascimento, mas por ter brincado, corrido, crescido em Verdemilho, dizia-se “filho de Aveiro”).

Noutra carta, de Julho de 1893, dizia que “considero a Costa Nova um dos mais deliciosos pontos do globo. É verdade que estávamos lá em grande alegria e no excelente palheiro de José Estevão”.

José Estevão, além de notável parlamentar e tribuno português, além de figura de proa da oposição de esquerda na Câmara dos Deputados e de participante nas guerras liberais, no Desembarque do Mindelo e na Patuleia, além de tudo isso, era pai de um grande amigo de Eça de Queiroz, o deputado e ministro Luís de Magalhães (o romance O Brasileiro Soares, de sua autoria, foi publicado com um prefácio de Eça).

Naquele palheiro, vermelho ocre, ainda hoje propriedade dos descendentes da mesma família, ter-se-ão acertado, segundo Luís Magalhães, os pormenores do casamento de Eça com Emília de Castro Pamplona, na presença da condessa de Resende, a futura sogra (o matrimónio, ocorrido em 1886, foi celebrado no oratório particular da Quinta de Santo Ovídio, no Porto).

Sete dias após o falecimento de Eça, do seu palheiro da Costa Nova, Luís de Magalhães escreveu ao conde de Arnoso, a 23 de Agosto de 1900: “Nesta mesa em que estou escrevendo (antiga secretária de meu Pai) aqui no seu escritório — reviu ele, há 16 anos, diante da sua chávena de café, do seu pacote de rapé e do seu maço de cigarros (o segredo do génio), como ele dizia, as provas da tradução francesa do Mandarim. Estou ainda a vê-lo, a correr pela areia, a cavalo num pau, ‘para sentir renascer o gosto que se lhe criara por estes sítios, com brincadeiras’. Estou a vê-lo… Foi nesta visita que me fez com a Emília, a Benedita e a Senhora Condessa mãe, que se resolveu o seu casamento”.

Quando estava de férias na praia da Costa Nova, Eça aproveitava para visitar a casa encantada da infância e foi testemunhando a progressiva degradação do solar da Torre. António Cabral refere que, em 1880, indo de Lisboa para Resende, o autor de O Mandarim e o poeta Coelho de Carvalho resolveram ir a Aveiro e passar em Verdemilho, “para visitar a casa dos ascendentes do romancista, em torno de cujas raízes frondejavam verdes acácias” (Eça de Queiroz. A sua vida e a sua obra. Cartas e documentos inéditos, 1916, p. 241). E, três anos depois, Eça voltou a Verdemilho com o poeta Guerra Junqueiro.

Entretanto, em 16 de Abril de 1850, com a idade de 76 anos, morreu-lhe o histórico avô (a cujo funeral José Maria, então com quatro anos de idade, terá comparecido), mas continuando a ser lembrado em Verdemilho, figurando ainda hoje na toponímia da freguesia (Rua Conselheiro Queiroz) e contendo a sua campa no cemitério um obelisco evocativo da pertença à maçonaria.

Como vimos, além de Juiz de Fora, Desembargador, Deputado às Cortes da Nação, responsável em Aveiro pela revolta liberal de 16 de Maio de 1828, membro da Junta Provisória e Revolucionária do Porto e do Tribunal de Guerra e de Justiça, Fidalgo do Conselho de Sua Majestade, presidente da Relação de Lisboa e do Porto, ministro e secretário de Estado da Justiça e dos Assuntos Eclesiásticos, Joaquim José tinha sido Irmão Rosa-Cruz na loja maçónica na Quinta dos Santos Mártires e Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo (repito-o para que mais adiante, quando for necessário, não o esqueçamos).

Com a morte do avô paterno, Eça ficou ao cuidado exclusivo de Teodora Joaquina de Almeida, a avó paterna, que continuaria a educá-lo (juntamente com os criados) e que o pôs a estudar as primeiras letras com o padre António Gonçalves Bartolomeu, o qual, anos depois, assistiria à formatura do seu antigo aluno na Universidade de Coimbra, para depois o levar ao Poço do Conde, “onde comeram ambos um prato de arroz-doce” (José Calvet de Magalhães, Eça de Queiroz. A vida privada, p. 26).

Em 1855, no dia 3 de Novembro, pouco antes do neto festejar os 10 anos de idade, a avó faleceu e o jovem Eça foi transferido para o Porto, para ser internado no Colégio de Nossa Senhora Lapa, onde faria os estudos secundários (1855-1861). Este colégio, também conhecido pelo nome “Liceu da Lapa” (porque ali eram ensinadas todas as disciplinas do curso dos liceus), tinha então como director Joaquim da Costa Ramalho, o pai de Ramalho Ortigão, ali professor de Francês.

Em testamento, Teodora deixou a Eça de Queiroz um legado que deveria ser aplicado “para a completa educação do dito meu neto e administrado por seu pai com aquela aplicação. O que existir deste legado ao tempo em que o dito meu neto se emancipar, lhe será entregue para ele governar e administrar como seu” (José Campos Henriques, Eça em Aveiro. Raízes e outras histórias, pp. 53-53).

Nessas partilhas, a propriedade do solar e da quinta passou para as mãos dos netos de Teodora, embora o pai de Eça tenha ficado com o respectivo usufruto. Em 1904, depois da morte do escritor, a casa foi vendida e os novos donos deram-lhe outros usos: casa de espectáculos de um grupo teatral da terra, sede de uma pequena empresa industrial, etc.

É quase certo que Eça de Queiroz, quando adquiriu a certeza de que ia morrer, virou o olhar sobre o âmago profundo da terra onde passou a infância, quando deambulava pelos bosques de Verdemilho.

Horas antes de expirar, Eça terá feito a arqueologia da infância, reviveu o ambiente familiar com os avós paternos e os criados brasileiros, lembrou-se dos tempos da sua verdadeira alegria de viver, do sítio onde fora feliz, talvez onde fora mais feliz, e onde passou alguns dos dias mais genuínos da sua existência.

Enquanto o padre não chegava à casa de Neuilly, arrisco dizer que Eça de Queiroz terá confessado à mulher que gostaria de ser sepultado em Verdemilho, a terra onde estavam as suas raízes afectivas, o quadro onde se desenvolveu a sua meninice.

De outro modo, como explicar a referência a Aveiro, na certidão de óbito, como local de nascimento de Eça de Queiroz?

O texto do “Extrait du Registre des Actes de Décès pour l’année 1900”, com o n.º 501 de registo, passado pela Mairie de Neuilly-Sur-Seine em 17 de Agosto de 1900, às 9h10, é o que se segue: “ACTE de DÉCÈS de José Maria d’EÇA DE QUEIROZ, âgé de cinquante quatre ans, consul de Portugal à Paris, chevalier de la Légion d’honneur, né à Aveiro, Portugal, décédé hier, à quatre heures trente cinq minutes du soir à Neuilly-sur-Seine (Seine), avenue du Roule, n.º 38. (…) Dressé, verification faite du décès, par Nous Philippe Henri Grouesy, Adjoint au Maire de la Ville de Neuilly-sur-Seine, remplissant par délégation spéciale les functions d’Officier de l’État Civil” (tradução: “CERTIDÃO de ÓBITO de José Maria d’EÇA DE QUEIROZ, cinquenta e quatro anos de idade, cônsul de Portugal em Paris, cavaleiro da Legião de Honra, natural de Aveiro, Portugal, faleceu ontem, às quatro e trinta e cinco minutos da tarde, em Neuilly-sur-Seine (Sena), avenue du Roule, n.º 38. (…) Lavrado, verificação do óbito, por Nous Philippe Henri Grouesy, auxiliar do Presidente da Câmara Municipal de Neuilly-sur-Seine, cumprindo por delegação especial as funções de Oficial do Estado Civil”).

O documento em francês foi reproduzido no livro Eça de Queiroz. ‘In Memoriam’ (1922, pp. LXVI-LXVII) e pode ser consultado no Arquivo-Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (cota 515/900). Diz-se aí que o registo foi feito “sur la déclaration, à défaut de parents et de voisins du défunt, de Camille Cherrier, âgé de trente quatre ans, Entrepeneur de Pompes funèbres, demeurant à Paris rue de Maubeuge 92, et de Frédéric Guédon, âge de cinquante deux ans employé, demeurant à Neuilly-sur-Seine rue de Villiers, n.º 3, bis” (tradução: “com base na declaração, na ausência dos pais e vizinhos do falecido, de Camille Cherrier, de trinta e quatro anos, agente funerária, residente em Paris, rue de Maubeuge 92, e de Frédéric Guédon, de cinquenta e dois anos de idade, empregado, residente em Neuilly-sur-Seine rue de Villiers, n.º 3, bis”).

Porquê Aveiro na certidão de óbito de Eça de Queiroz? Alguém deve ter falado naquela cidade a Camille Cherrier e a Frédéric Guédon, os quais, presume-se, nunca teriam ouvido falar de Aveiro. Como afirma Pedro Calheiros, “se deram essa indicação foi certamente por terem sido mandatados para o fazer” (“Verdemilho, Berço de Eça?”, Folhas-Letras & Outros Ofícios, ano 5, número 7, Novembro de 2001, p. 38). Não será porque o nome de Aveiro foi referido aos agentes funerários por Emília de Castro, talvez porque o escritor declarara, antes de expirar, a vontade de ser inumado em Verdemilho?

Por outro lado, e segundo O Século, a viúva de Eça, logo após a morte do marido, enviara um telegrama ao pai do escritor questionando-o acerca do local em que o filho deveria ser sepultado. O que contraria a versão do jornal Novidades, que noticiara, em 20 de Agosto, que a última morada de Eça de Queiroz não seria Lisboa, mas Verdemilho: “Por vontade expressa do ilustre finado, deve ser sepultado em Verdemilho, lugarejo próximo de Aveiro, de onde eram naturais seus avós”.

Baseando-se, porém, n’O Século, Rocha Martins afirma que a ideia do jazigo de família em Verdemilho tinha sido alvitrada pelo conselheiro José Maria Teixeira de Queiroz (meses antes nomeado juiz do Supremo Tribunal de Justiça), mas a decisão final caberia à viúva (Rocha Martins, Os Românticos Antepassados de Eça de Queiroz, p. 278).

Uma coisa é certa, tivesse sido a ideia de Eça ou do pai: nos dias imediatos ao falecimento do escritor, o pequeno cemitério do Outeirinho, junto à Igreja Matriz, na freguesia de Arada, em Verdemilho — em cujo jazigo estavam os avós paternos, os tios paternos (Ana Libânia e Bernardo de Almeida Teixeira Queiroz), “mais o cadáver de uma criança, que talvez fosse o de algum dos seus irmãos falecidos na infância, e outros cadáveres pertencentes à sua grei” (Rocha Martins, p. 283) —, esteve para ser a última morada do corpo de Eça de Queiroz.

Em 1942, Acácio Vieira da Rosa, escritor e jornalista monárquico, nascido em Verdemilho, que fora vizinho da casa do avô paterno de Eça, lembrava que “Joaquim José de Queirós, apesar de se dizer o contrário, não foi um descrente. Trazendo do Brasil o seu cozinheiro Mateus e um outro serviçal de nome Pedro, ambos de cor preta, e a velha Laureana, de cor mulata, que eu conheci e que muitas vezes preparou jantares em minha casa, fê-los baptizar nesta freguesia, pondo-os em conta corrente com os preceitos da Igreja Católica” (“Em Ronda pelo Passado — I”, Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 30, Junho de 1942, p. 84).

Acácio Rosa revelava aí, também, que Joaquim de Melo Freitas, jornalista e escritor aveirense, o indicara a ele, em 1900, como representante da terra para a preparação do enterro de Eça em Verdemilho: “Falou-se então em Aveiro sobre a melhor forma de se receberem os preciosos restos mortais de José Maria de Eça de Queiroz e lá estive eu em foco, como representante da terra, por indicação e carinho do velho amigo Joaquim de Melo Freitas. Esboçaram-se diversos alvitres e lembro-me, até, que um deles seria receber o cadáver em todo o percurso da rua de Verdemilho sob muitos arcos de loureiros e carvalhos”.

Para esse efeito, procedeu-se à abertura da campa, “e lá vimos, numa catacumba, diversos caixões, uns em cima dos outros” (“Em Ronda pelo Passado — I”, Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 30, Junho de 1942, p. 91).

Assim se explica que O Popular de 27 de Agosto de 1900 tenha publicado, na primeira página, a seguinte notícia: “Aveiro, dia 26 agosto de 1900, às 20h00: A cidade de Aveiro prepara-se para prestar a última homenagem ao chorado escritor Eça de Queirós. Parece que o seu cadáver será conduzido na carreta dos bombeiros”.

À última da hora, por razões que se desconhecem, deu-se a reviravolta. A 29 de Agosto, aquele mesmo jornal informava que a comissão encarregada de organizar o funeral de Eça de Queiroz recebera um telegrama do pai do escritor, enviado no dia anterior, que alteraria tudo: “Cascais, 28, a 1h e 7m da tarde — Corpo de meu filho fica em Lisboa no jazigo do cunhado, Alexandre Resende. Também lhe digo o mesmo em carta”. Ficava, assim, posta de parte a ideia do funeral em Aveiro, tendo sido necessário alterar o programa da comissão: o corpo de Eça de Queiroz ficaria num jazigo de Lisboa, no cemitério do Alto de S. João, onde estava o irmão da viúva do escritor, Alexandre de Castro Resende.

Como disse Rocha Martins, “dissolveu-se a comissão que devia receber, em Aveiro, os despojos de Eça de Queiroz. Julgara-se que ele devia repousar junto das cinzas do avô que escapou à força e da avó, D. Teodora Joaquina, que o criara e edificara aquele mausoléu” (Os Românticos Antepassados de Eça de Queiroz, p. 278). Por essa razão, segundo Acácio Rosa, Verdemilho foi a “última terra em que o romancista desejaria ficar em paz, a terra que foi a alma mater do seu espírito e das primeiras auroras da sua infância”.

Por algum motivo, a viúva de Eça terá mudado de ideias, decidiu não respeitar a mais que provável vontade do sogro ou mesmo do marido, antes de morrer: monárquica e muito ligada à fé católica — “Minha avó era profundamente crente”, diria mais tarde Maria das Dores Eça de Queiroz de Melo, casada com o marquês de Ficalho e neta do escritor —, Emília de Castro terá recusado Verdemilho porque o avô paterno de Eça era maçon.

É muito provável, pois, que Emília tenha telegrafado ao sogro pedindo-lhe que o marido fosse sepultado no jazigo dos Resendes, no cemitério do Alto de S. João, onde o corpo acabaria por dar entrada, no dia 17 de Setembro de 1900, depois de acompanhado por um préstito de ilustres e de algum povo lisboeta.

5. Um obelisco demasiado liberal

Depois disto, passaram anos sobre anos. Até que, no final de 1932, pouco antes de falecer, Emília, a viúva de Eça, mudou de ideias. Talvez de consciência pesada, consultou o aveirense e amigo de família Luís de Magalhães, no sentido de promover a trasladação dos restos mortais de Eça para o cemitério da primitiva Igreja da Freguesia de São Pedro de Aradas, junto a Verdemilho. É isso que se percebe pela carta que Luís de Magalhães, residente na Quinta do Mosteiro, em Moreira da Maia, escreveu a Acácio Rosa no dia 1 de Novembro daquele ano:

“Escrevo-lhe à pressa, na véspera de deixar a Costa Nova. Amanhã sigo para Coimbra, donde, no sábado próximo, regressarei directamente a Moreira. Lá ficarei ao seu dispor.

O fim desta carta é pedir-lhe uma informação sobre o jazigo da família Queirós no cemitério de Verdemilho. Vi-o há 4 anos, por ocasião do centenário do 16 de Maio. Tenho ideia de que é uma campa muito simples, resguardada por uma grade de ferro.

Precisava de saber como ela é interiormente e a sua capacidade. É que a Sr.ª D. Emília Eça de Queirós, viúva do grande romancista, pensou em depositar ali os restos do seu ilustre marido, se ela estivesse em condições de receber esse precioso despojo e, de futuro, outras pessoas de família. Por isso lhe rogo a grande fineza de me dar informes precisos e minuciosos sobre esse mausoléu para os transmitir àquela senhora. Eu creio, pelas minhas recordações, que ela não satisfaz os requisitos desejados” (reproduzida em Acácio Rosa, “Em Ronda pelo Passado — I”, Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 30, Junho de 1942, p. 91).

Dando cumprimento ao pedido de Luís de Magalhães, foi de novo aberta a campa da família paterna de Eça de Queiroz, em Verdemilho. Estavam presentes Acácio Rosa, Alberto Souto e outras individualidades aveirenses, mas “as impressões recebidas não me habilitaram a dar uma resposta satisfatória”.

Criou-se então uma comissão de notáveis de Aveiro, os quais se declararam dispostos a oferecer um novo jazigo para albergar os restos mortais de Eça de Queiroz junto ao mausoléu do desembargador Joaquim José.

No dia 17 de Dezembro, Emília escreveu a Magalhães, explicando-lhe a demora na resposta à “oferta de jazigo para meu marido”:

“Já lhe devia ter escrito, mas mil pequenas coisas me têm impedido e se hoje ainda lhe não mando a carta aceitando e agradecendo a oferta de jazigo para meu marido é porque o quero consultar sobre o que posso pedir a esse respeito. Eu desejava muito reunir o meu marido e o meu filho, foi o que me fez pensar no jazigo já existente ao pé de Verdemilho, tendo só repugnância em que fossem para debaixo da terra, por isso fiquei muito grata quando soube que algumas pessoas de Aveiro desejavam fazer um novo jazigo para meu marido (…). Mas o meu desejo é que essa família fosse só a dele pessoalmente, mulher e filhos, que são os únicos Eça de Queiroz. O meu sogro era Teixeira de Queiroz e esse avô que decerto foi aquele que mandou fazer o jazigo existente em Verdemilho, era, creio eu, Almeida Queiroz. Parece-me que esse está muito tranquilo no seu jazigo ao pé de sua mulher e que não há razão nenhuma para de lá o tirar. Parece-me que mudá-lo para o novo jazigo já era fazer política, o que não quero de maneira nenhuma. Acha possível que eu peça, ou claramente, ou por intermédio do Luís Magalhães para que o jazigo fosse numa capela, pois mesmo com capela — simples que seja, pode ser artística, e que seja reservada só para a sua família, mulher-filhos? Logo que eu tenha a sua resposta mando-lhe a carta com o meu consentimento, diga-me a quem devo dirigir, a si, ao principal senhor de Aveiro que quis fazer esta homenagem a Eça de Queiroz, ou todos juntos?” (Eça de Queiroz-Emília de Castro. Correspondência Epistolar, Cartas Inéditas de Emília de Castro, org. Campos Matos, pp. 714-715).

Respeitando as instruções de Emília, Luís de Magalhães voltaria a escrever a Acácio Rosa, a 22 de Dezembro de 1932, convidando os promotores da homenagem para uma visita a sua casa na Moreira da Maia, onde todos poderiam falar com a viúva de Eça de Queiroz:

“O caso da construção do mausoléu precisa de ser muito pensado e conversado. Por isso convidei os nossos amigos Querubim e Alberto Souto a darem-me o gosto duma visita a Moreira, indo todos, depois, falar com a Sr.ª D. Emília Eça de Queirós, sobre o assunto.

Ela aceita, com o maior reconhecimento, a homenagem que, com isso, se quer prestar ao seu ilustre marido. Só põe uma condição: é que nesse túmulo se lhe reserve lugar para ela e para os seus filhos, um dos quais já falecido. Compreendo que esta condição tem de influir no plano da construção projectada.

Maior seria o meu prazer, se, por ocasião da vinda aqui daqueles nossos dois amigos, o meu caro Acácio Rosa os quisesse acompanhar” (reproduzida em Acácio Rosa, “Em Ronda pelo Passado — I”, Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 30, Junho de 1942, p. 91).

Por diversos motivos, não esclarecidos por Acácio Rosa, o referido encontro nunca se realizou. Mas, no ano seguinte, a 15 de Agosto de 1933, Luís de Magalhães voltaria a escrever a Emília, convidando-a a passar uns dias, com a filha Maria, em sua casa, na Costa Nova: “Seria ocasião para irmos a Verdemilho e resolver-se, no próprio local, aquele assunto que tanto a preocupa”.

Depois, sabe-se apenas que Emília morreu no dia 5 de Julho de 1934 e que esta sua última vontade — reunir os restos mortais de Eça de Queiroz e do seu filho José Maria (falecido em 1928), não os juntando, porém, aos dos avós do escritor — nunca foi respeitada.

Há várias questões que ficam no ar. Porque é que Emília, aos 74 anos, mudou de ideias e manifestou a vontade de levar os restos mortais do marido, do filho (e dela própria, depois de morta) para o cemitério de Verdemilho? Porquê Verdemilho e não no Porto (onde ficava a Quinta de Santo Ovídio, onde os dois tinham casado, em 10 de Fevereiro de 1886), em Canelas (onde ficava o solar dos condes de Resende, onde Eça chegou a viver e onde se terá apaixonado pela mulher), em Santa Cruz do Douro (onde fica a Quinta de Tormes, que inspirou o romance A Cidade e as Serras, onde o corpo do escritor repousa desde 1989), em Resende (onde fica a Casa da Torre da Lagariça, que terá servido de inspiração ao romance A Ilustre Casa de Ramires), Vila do Conde (onde foi baptizado) ou Póvoa do Varzim (onde nasceu)?

Porquê? E porquê Verdemilho? “Não haverá mesmo uma forte ligação desta vontade com a declaração feita, em seu nome, no registo do óbito parisiense?” (“Verdemilho, Berço de Eça?”, Folhas-Letras & Outros Ofícios, ano 5, número 7, Novembro de 2001, p. 51), pergunta Pedro Calheiros.

Por que razão se opuseram, em Aveiro, à transferência dos falecidos para um jazigo à parte? Terá sido porque a Junta de Freguesia de Aradas, em 1932, não aceitou que Eça ficasse afastado do jazigo dos avós, onde fora colocado o obelisco da Maçonaria? Quem se deslocar até ao pequeno cemitério do Outeirinho encontrará facilmente o obelisco maçon de Joaquim José, com a seguinte inscrição, numa das suas faces (a que está voltada para o portão da entrada): “Desembargador Joaquim José de Queirós, Chefe do Movimento Liberal de Aveiro, em 16-5-1828 — 16-4-1850. Homenagem da Junta 1932”.

Portanto, ou foi a comissão de notáveis que se mostrou irredutível, insistindo para que o novo jazigo ficasse no “Mausoléu-Obelisco” do Desembargador Joaquim José, ou foi a viúva que não quis, de maneira nenhuma, que o marido ficasse associado à Maçonaria.

Esta mesma razão ajuda a compreender que, mais de 50 anos depois, em 1988, as netas do escritor se tenham oposto à primeira tentativa de trasladação dos restos mortais de Eça para o Panteão Nacional. Antes disso, é preciso explicar, brevemente, as biografias dos descendentes de Eça de Queiroz.