Rebeldes Houthis do Iémen reivindicaram os ataques do último domingo contra navios comerciais no Mar Vermelho. Embora este tipo de ataques não seja novidade, num contexto de tensões geopolíticas na região, podem abrir uma nova frente no conflito entre Israel e o Hamas, e geram dilemas difíceis para os Estados Unidos.
‘Ameaça direta’
O ataque contra três navios comerciais no estreito de Bab al-Mandab foi perpetrado com mísseis balísticos lançados a partir do Iémen. Um porta-voz do movimento Houthi reivindicou os ataques ao que descreveu como “dois navios israelitas”, o Unity Explorer e o Number One. O Pentágono confirmou também um ataque contra o contratorpedeiro americano USS Carney, que abateu vários drones enquanto se dirigia para prestar assistência aos navios atingidos.
Segundo a publicação de domingo feita pelo Comando Central Norte-americano na rede social X, os navios atacados tinham ligações a pelo menos 14 países: “Hoje, houve quatro ataques contra três navios comerciais que operavam em águas internacionais, no Mar Vermelho do sul. Os três navios estão ligados a catorze países”.
Segundo o Centcom, o comando militar dos Estados Unidos para o Médio Oriente, os ataques “colocaram em risco as vidas das tripulações”, constituindo-se como “uma ameaça direta ao comércio internacional e à segurança marítima”.
No passado mês de novembro, o grupo, que também tem disparado mísseis contra território israelita, sequestrou o Galaxy Leader, um navio de carga propriedade de um israelita, operado por uma empresa japonesa e que viajava, da Turquia para a Índia, com uma tripulação maioritariamente filipina.
Os ‘partidários de Deus’
Os Houthis são um grupo militante islâmico que segue uma corrente minoritária do (também minoritário) xiismo. Tendo estado no poder no Iémen, foram derrubados pela revolução republicana de 1962, que visava a construção de um Estado moderno e secular. Depois da derrota, regressaram à sua base nas montanhas da região no norte do país.
Em 2003, num contexto marcado pela invasão norte-americana do Iraque, o grupo passou por um processo de radicalização e adotou a designação de Ansar Allah (partidários de Deus) e o slogan ‘Morte à América, morte a Israel’.
Opondo-se ao governo em Saná, que descreviam como “corrupto”, participaram na rebelião entre 2004 e 2010 e no golpe de Estado que, num contexto ainda marcado pelas Primaveras Árabes e os seus desfechos, levaria ao derrube do regime dando início a uma violenta guerra civil e a uma profunda crise humanitária. Inspirados pelo modelo do Hezbollah, que conseguiu chegar ao poder no Líbano, o objetivo do grupo é formar um governo internacionalmente reconhecido no Iémen.
O Eixo da Resistência
A história recente do Iémen reproduz as tensões e rivalidades na região. Os Houthis, alinhados com o Irão, defrontaram-se com uma coligação que defendia o Governo, liderada pela Arábia Saudita, integrando os Emirados Árabes Unidos, e contando com o apoio militar e logístico dos Estados Unidos durante as Administração Obama e Trump. A administração Biden, no entanto, optou por reverter a política, o que incluiu retirar o movimento Houthi da lista de grupos terroristas, e remover obstáculos ao seu financiamento.
O grupo, que controla agora Saná e tem vindo a aumentar a sua capacidade militar, anunciou que iria perpetrar mais ataques no Mar Vermelho, caso Israel não termine os ataques contra Gaza. Yahya Saree, porta-voz militar, teve o cuidado de excluir qualquer ameaça direta aos Estados Unidos, declarando que “as forças armadas do Iémen reiteram o seu aviso a todos os navios israelitas e a todos que lhes estejam associados de que se tornarão um alvo legítimo”.
O grupo iemenita integra aquilo que o secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, definiu como um “eixo de resistência”, alinhado e patrocinado por Teerão e que inclui também milícias pró-Irão no Iraque, o Hamas e o Hezbollah, responsáveis por ataques perpetrados contra alvos militares americanos no Iraque e na Síria, desde outubro. Este ‘eixo de resistência’ tem sido vital para garantir aos grupos que o integram o acesso a armas e financiamento, e tem ajudado Teerão a expandir, de forma indireta e discreta, a sua rede de influência e poder de desestabilização na região.
Depois do levantamento de sanções e de uma tentativa de apaziguamento que tinha como objetivo convencer o Irão a aceitar um acordo nuclear, a administração Biden está agora a ser pressionada a rever a sua relação com o país, incluindo o descongelamento de 6 mil milhões de dólares em fundos oferecido como contrapartida pela libertação de cinco reféns americanos. Do Congresso vêm também pressões para voltar a incluir os Houthis na lista de grupos terroristas internacionais.
Risco de escalada
O Mar Vermelho, que liga a Península Arábica ao Corno de África, tem uma enorme relevância estratégica para o comércio e segurança internacionais, e por isso mesmo tem atraído a atenção de grandes e médias potências, incluindo através da construção de bases militares na região. Um cenário de alargamento do conflito entre Israel e o Hamas a partir deste epicentro poderia ter grandes implicações geopolíticas.
Cerca de 10 por cento do comércio marítimo anual passa pelo Mar Vermelho e 40 por cento do petróleo transportado via marítima transita pelo Estreito de Ormuz, tal como o gás proveniente do Qatar que se tornou fundamental para o abastecimento da Europa desde o início da guerra na Ucrânia. É também uma rota vital de exportações e importações para Israel, incluindo de bens alimentares.
A necessidade de encontrar rotas alternativas, incluindo uma rota alternativa ao Canal do Suez em caso de aumento acentuado dos seguros ou de um alargar e escalar das tensões, teria um impacto considerável no comércio marítimo global, como se verificou em 2022 quando o canal foi bloqueado, por alguns dias, pelo porta-contentores Ever Green.
O Centcom declarou que apesar de lançados pelos Houthis a partir do Iémen, “tem todas as razões para acreditar” que os ataques “foram inteiramente possibilitados pelo Irão”, acrescentando que os Estados Unidos iriam “considerar todas as medidas apropriadas em total coordenação com os aliados e parceiros internacionais”. Na segunda-feira o conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, anunciou estarem em curso “conversas com outros países sobre uma força marítima conjunta, incluindo navios de países parceiros, para assegurar a passagem segura de embarcações no Mar Vermelho”.
O Irão, que não tem interesse num confronto direto, fez saber pelo seu enviado junto da ONU, Amir Saeid Iravani, que o país não está diretamente envolvido em nenhuma ação contra forças americanas. E os Estados Unidos têm-se abstido de respostas mais incisivas, num momento que é especialmente delicado para Joe Biden, que terá um combate eleitoral difícil em menos de um ano.
A probabilidade de um alargamento do conflito a outros países, tendo aumentado, mantém-se baixa; mas os riscos que daí adviriam impactariam fortemente a segurança e a economia global.