Gémeas não tiveram tratamento de favor

Médicos envolvidos dizem que no caso de doenças raras todos são atendidos, não precisando de ‘cunhas’. Basta irem à urgência e são observados e internados.

“Não percebo o barulho criado com a história das gémeas, até por uma razão muito simples: bastava os pais terem levado as crianças a uma urgência do Santa Maria para elas ficarem logo internadas, sendo depois tratadas. Não há listas de espera para as doenças raras”. É assim que um médico conhecedor do processo conhecido como das ‘Gémeas Brasileiras’ descreve ao Nascer do SOL a confusão criada pela ‘cunha’ do gabinete do secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, noticiada pela TVI.

“Para nós, é indiferente se há ‘cunha’ ou não. E é uma tontice dizer-se que no caso das gémeas houve vantagens, pois nós recebemos quase todos os dias pedidos semelhantes das mais variadas proveniências, que não cumprem a famosa portaria 147/2017, no artigo 8.º, que determina as regras de admissão. O que nós fazemos é analisar o quadro clínico das crianças que chegam até nós, e depois segue o processo normal, com os dados a serem introduzidos numa plataforma interna, onde os diferentes intervenientes vão dizendo de sua justiça. Isto é: se encontram razões para se adquirir o célebre Zolgensma ou não. Repare que todos os intervenientes no processo concordaram com a compra do medicamento, independentemente do pedido da consulta ter vindo do departamento governamental. No caso das doenças raras é preciso atuar no imediato e estas crianças não passaram à frente de ninguém”, acrescenta.

Outro médico do Hospital de Santa Maria prefere recuar no tempo, para enquadrar o caso das gémeas. “Tudo começou em 2019 quando tínhamos no Santa Maria duas bebés [Matilde e Natália] com atrofia muscular espinhal de tipo 1, a forma mais grave desta doença, que estavam a ser medicadas com o Nusinersen, que consistia numa injeção intratecal na coluna, de quatro doses seguidas e depois de tantos em tantos meses. Além de ser muito mais violento, esse medicamento teria de ser dado a vida inteira”.

É então que entram em cena os pais de Matilde que tiveram conhecimento que nos EUA já existia um medicamento mais eficaz, e lançaram nas redes sociais um pedido de angariação de dois milhões de euros para comprarem o Zolgensma, algo que conseguiram numa semana. Só que havia o problema de os pais não poderem comprar o medicamento a título particular. Ou iam aos EUA fazer o tratamento ou o Estado português comprava o famoso Zolgensma, apesar o mesmo não estar ainda autorizado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA).

“Apesar do medicamento não estar autorizado na Europa, já havia estudos que provavam a sua eficácia. Com o barulho que se instalou na sociedade portuguesa com o crowdfunding [financiamento coletivo]dos pais da Matilde, e depois de analisado o quadro clínico das duas bebés, onde se incluía também a Natália, o processo de ambas foi visto por todos os intervenientes e chegou-se à conclusão que se devia adquirir o Zolgensma”, esclarece o segundo médico.

A história do crowdfunding correu mundo, e, ao que se sabe, familiares das gémeas brasileiras que viviam no Algarve terão informado os pais das gémeas. Continuando no diz-se que disse, os progenitores das gémeas, que no Brasil tomavam o Nusinersen, terão tentado o mesmo expediente, do crowdfunding, mas só terão conseguido angariar pouco mais do que 300 mil euros. E é então que decidem tentar a sorte em Portugal.

Santa Maria na vanguarda

Chegados aqui, convém notar que as doenças raras têm centros de referência na Europa, mas em Portugal o único centro de referenciação está no Hospital de Santa Maria, e mais precisamente nas mãos da médica Teresa Moreno, a «grande especialista em atrofia muscular espinhal de tipo 1», segundo um colega confirma ao Nascer do SOL.

Continuando no filme temporal, os pais das gémeas chegam a marcar uma consulta nos Lusíadas, onde Teresa Moreno também trabalha, mas acabam por não comparecer por as crianças terem tido uma crise que as impossibilitava de viajar.

Os pais decidem então marcar uma consulta no Hospital de Santa Maria, mas as bebés não comparecem pela mesma razão da falta aos Lusíadas, enquanto os familiares marcaram presença. E é aqui que entra a tal história da ‘cunha’ governamental.

A médica responsável pelas doentes, Teresa Moreno, escreve então na plataforma da comissão de Farmácia e Terapêutica – cujo acesso só é possível no interior do hospital – a fundamentação clínica para o pedido da medicação, terminando o relatório com a referência a que a consulta tinha sido marcada pelo secretaria de Estado da Saúde, tutelada por Lacerda Sales. Tudo isto está no relatório da auditoria interna que a presidente do conselho de Administração do Hospital de Santa Maria apresentou, esta semana, na Comissão Parlamentar de Saúde. Ana Paula Martins esclareceu ainda que se apurou que não foi cumprido a tal portaria número 147/2017 artigo 8.º, em que os doentes têm de ser encaminhados por outros hospitais ou outras instituições de Saúde, dando força à ‘cunha’ – que envolve o filho do Presidente da República que terá intercedido junto de Lacerda Sales.

“É um disparate alegar-se que tudo obedece a essa portaria. Nós no Santa Maria temos a cultura de tudo fazer para encontrar a melhor terapia para o doente, independentemente da forma como ele nos apareceu no hospital”, reforça a primeira fonte médica citada no artigo.

Ainda segundo o que apurou a auditoria, o passo seguinte ao pedido da médica responsável pelas doentes, foi dado pelo diretor de serviço que concordou com o diagnóstico clínico, mas chamou à atenção para a falta da declaração de residência de curto e médio prazo dos pais das gémeas. Duas semanas depois apareceu o documento, e passou-se ao passo seguinte que teve a aprovação da Comissão de Farmácia e Terapêutica, do diretor clínico e do conselho de administração, acabando no Infarmed, que devolve o processo com a sua ‘sentença’, que também foi positiva.
Ao mesmo tempo, também um bebé português, dos Açores, recebeu um parecer positivo para lhe ser administrado o famoso medicamento.

Carta de alerta

Para baralhar a polémica, nessa altura, em meados de 2020, cinco médicos da equipa de pediatria, escrevem uma carta que entregam à Comissão de Ética do hospital, ao diretor clínico, à ministra da Saúde e ao Presidente da República, onde alertavam para o aumento de gastos com doentes, falando indiretamente no caso das gémeas brasileiras. Só que o teor desta carta não corresponde ao que foi veiculado por diversos órgãos de comunicação social que diziam que na mesma os médicos tinham-se mostrado indisponíveis para tratar as gémeas, e que teriam sido obrigados por ordens superiores. Como a auditoria comprovou, em momento algum os médicos mostraram indisponibilidade. O que alertaram foi para o ‘turismo’, e a expressão é nossa, de Saúde.

“É verdade que a situação se está a agravar. Há muitos cidadãos dos PALOP, e não só, que saem do avião e vão diretamente para as urgências hospitalares, onde são sempre atendidos. Depois, quando recebem alta hospitalar, precisam de ir a centros de saúde e para isso necessitam de um número de utente, que só pode ser passado quando existe um atestado de residência. Supostamente são as embaixadas desses cidadãos que devem providenciar alojamento, mas em alguns casos isso não acontece, mas eles conseguem arranjar o atestado de residência. A partir do momento em que têm um cartão de utente, usufruem de todas as vantagens do Serviço Nacional de Saúde”, explica outro médico que também prefere o anonimato.

95% morriam antes dos 2 anos

Voltando aos problemas dos doentes com atrofia muscular espinhal tipo 1. Até à descoberta dos novos medicamentos, 95% morria antes de completar dois anos. Neste momento, em Portugal, a doença já é diagnosticada no teste do pezinho, algo que aconteceu em outubro com uma criança de ascendência são-tomense, mas que aguarda autorização do Tribunal de Contas, pois agora é obrigatório o visto desta entidade para medicamentos superiores a 750 mil euros. “Se lhe tivesse sido administrado o Zolgensma logo nos primeiros dias, a doença não se teria desenvolvido”, explica uma médica ouvida pelo nosso jornal.

Há várias leituras para a história das bebés brasileiras, nem todas coincidentes. Tem a palavra a mãe de Natália, nascida no Brasil e casada com um português: “A Natália foi diagnosticada com atrofia muscular espinhal aos 20 dias de vida e teve os primeiros sintomas de AME aos 15. Ela foi tratada com o Spinraza, Nusinersen,e só quando tomou o Zolgensma – aos 11 meses – é que começou mesmo a viver e a ter qualidade de vida. Antes disso, a Natália ficava com a ventilação quase 24 horas. Com o Zolgensma ela só usa ventilação para a noite ou quando está doente. Já se senta, anda de cadeira de rodas sozinha, vai para a escola… É tudo muito diferente. Ela já não precisa de oxigénio, só quando está doente, e come pela PEG. Não tem de tomar medicação constantemente como crianças que têm epilepsia, paralisia cerebral e outras doenças. Faço parte da Associação Nacional da Atrofia Muscular Espinhal e estamos a apresentar vários projetos ao Ministério da Saúde. É uma associação formada por mães e bem novinha, tem um ano. Em relação às gémeas luso-brasileiras, no geral, eu vejo que as pessoas têm dificuldade em conseguir as coisas: não é fácil, não é daquele jeito. A minha filha tem a mesma doença e sei o tanto que não é fácil conseguir cadeira de rodas, médico de família, atestado multiusos… Realmente, a gente vê que foi facilitado porque o tratamento foi diferente”.
Recorde-se que Natália e Matilde foram as primeiras bebés na Europa a serem tratadas com o Zolgensma.

com Maria Moreira Rato