No último artigo escrevi sobre como o medo marca a vida dos portugueses, concluindo que o estado do país legitima esse medo. Hoje, quero escrever como o medo é uma resposta racional perante as circunstâncias, mas é muito pouco digno para quem se considera gente.
Depois do que escreveu a procuradora-geral adjunta Maria José Fernandes no Público, sobre o estado de coisas no Ministério Público, assistimos às críticas à mesma por parte da corporação e a um surpreendente assomo de alma por parte de alguns políticos e comentadores que têm sido capazes de dizer que o rei vai nu.
É curioso como a coragem de criticar veio do centro moderado e a oposição a quem falou contra a situação veio dos extremos, exatamente dos mesmos personagens que, tendo um dia oportunidade, farão a reforma da Justiça que se vem adiando. Essa virá, então, não no caminho preconizado pelos representantes sindicais da corporação, mas no sentido inverso, na rota do controle político. Isto é, se hoje recusando a hierarquia se pretende ter tantos ministérios públicos quantos procuradores, no futuro ter-se-á apenas um Ministério Público, mas politicamente dirigido.
A procura de autonomia hierárquica total, aliada a uma lamentável condução mediática dos processos judiciais (por si só destruidora das instituições), surge como um catalisador da degradação e destruição do próprio regime, transformando-se, voluntaria ou involuntariamente, num aliado dos populismos que ameaçam o nosso modo de vida.
Desta forma, o medo não diz apenas respeito à justiça, ou a uma qualidade de vida mínima, como referido no último artigo. Remete para uma dificuldade geral de sermos cidadãos de pleno direito. De sermos livres. A liberdade tem limites, mas não é um bem divisível. Não somos relativamente livres ou em parte livres. Ou somos, ou não somos.
O que é verdadeiramente dramático nesta questão é o que esta condição nos diz sobre a qualidade da democracia portuguesa e do valor que os portugueses atribuem à sua liberdade e, por maioria
de razão, à sua cidadania: «Poucochinho».
Não consigo, verdadeiramente, ter uma opinião sobre se haverá coragem política e alma para alinhar a ponderação dos poderes na República. Sabemos que precisamos de o fazer, mas há demasiada gente sem coragem para o assumir, até porque falar sobre a hierarquia é confundido com querer manietar a Justiça, com os propagandistas do costume a alinhar no espetáculo.
Amarrados aos seus próprios medos (regressamos ao tema da cobardia), os nossos decisores políticos parecem estar próximos de querer sobreviver nada fazendo, cada um ‘alimentando o crocodilo, na esperança de ser o último a ser comido’ – ou, com sorte, que nunca chegue o dia no qual sejam parte de uma dessas histórias.
Já ouvimos um dos candidatos à liderança do Partido Socialista dizer que «não passará a campanha eleitoral a discutir um processo judicial», o que se entende, mas tal não pode impedir uma discussão séria a respeito da Política de Justiça, que é competência do Governo. Não se compreende que num país no qual a imagem da Justiça junto dos cidadãos seja tão frágil, haja tanta relutância em discutir o tema.
Se terminei o último artigo dizendo que é racional e que vale a pena ter medo, a verdade é que cedendo perante o mesmo, não seremos cidadãos, apenas meros habitantes.