O sucesso terreno baralha os anjos, que se metem nas drogas para compensar a vertigem, enquanto o apelo mundano os faz despenharem-se e darem cabo das asas. Ryan O’Neal podia não ter nada além do rosto que despertasse essa semelhança com esses seres etéreos, mas por um momento cativou audiências em todo o mundo, transformando-se numa estrela de Hollywood da noite para o dia com o filme Love Story, que foi o campeão das bilheteiras em 1970. Contudo, na morte do ator, aos 82 anos, a mão-cheia de filmes que garantem a durabilidade do seu estatuto enquanto ícone não foi suficiente para sobraçar os tantos problemas da sua vida pessoal e que fizeram com que, muito para lá dos anos em que esteve no auge do estrelato, continuasse a alimentar o frenesi da imprensa tabloide. Aos poucos, todo o encanto à sua volta e a sua imagem de galã, acabaram por ceder face aos aspetos caóticos e destrutivos das revelações que vieram a lume sobre a sua vida íntima. Tornou-se um alvo fácil para esse género de publicações ociosas que se ocupam de torcer para que os que estão na mó de cima deem um tombo estarrecedor e que sirva de consolo a quem se limita a rastejar. Entre as tantas relações tumultuosas, incluindo com os filhos, a volátil ligação a Farrah Fawcett ao longo de duas décadas foi sempre espicaçando o interesse do público. Pelo meio, houve as acusações de abuso de substâncias ilegais e de maus tratos aos filhos, o que levaria a que Ryan se visse muitas vezes em pé de guerra com aqueles que lhe eram mais próximos. Mas no dia em que o ator morreu, na passada sexta-feira, tinha conseguido reparar alguns desses laços, e o seu filho mais velho, Patrick, que anunciou a sua morte através de uma série de posts no Instagram, deixou uma expressiva homenagem, sinalizando a reconciliação: «O meu pai, Ryan O’Neal, sempre foi o meu herói. Ele foi sempre uma fonte de inspiração e era alguém maior que a vida». Este reconhecimento do filho marcou uma despedida graciosa tendo em conta essa espécie de cadastro que se foi firmando a partir dos aspetos desastrosos das relações familiares que foram enchendo os cabeçalhos. O próprio ator chegou a assumir que a miríade de pais que interpretou pode ter sido um reflexo de todas as suas falhas. «Sou um pai desgraçado. Não sei porquê. Às vezes penso que não estava talhado para assumir esse papel», admitiu numa entrevista à Vanity Fair, em 2009.
Casou-se pela primeira vez com apenas 21 anos, e logo depois nascia Patrick. A ligação à sua mãe, a atriz Joanna Moore, terminou e logo a seguir casou-se com outra atriz, Leigh Taylor-Young, de quem mais três filhos, antes de se divorciarem. Taylor-Young, que protagonizava com a série televisiva Peyton Place, disse a um entrevistador que o seu casamento nunca recuperou do sucesso de Love Story, que, segundo ela, trouxe «um tipo de vida que não é adequado à personalidade de Ryan».
O’Neal deslumbrou-se com o sucesso, e era um impenitente mulherengo, envolvendo-se com qualquer das atrizes com quem se cruzava, embora tenha sido a tempestuosa relação com Fawcett que atraiu mais atenções. Esta relação começou quando ela era ainda casada com o ator Lee Majors, e embora nunca se tenham dado o nó, permaneceram juntos até 1997, quando ela o apanhou na cama com outra atriz, Leslie Stefanson, 30 anos mais nova que ele. Foi no Dia dos Namorados, e Ryan viria a assumir publicamente a canalhice que fez. «Foi terrível. Não esperava vê-la aparecer por lá [na residência dos dois em Malibu]. Ainda tentei vestir as calças para me explicar, mas acabei por enfiar as duas pernas num dos buracos».
Os dois viriam a reconciliar-se em 2001, quando lhe foi diagnosticada a leucemia. «Leslie deu de frosques e a Farrah veio em meu socorro», recordou num livro de memórias sobre a relação, Both of Us: My Life With Farrah… «Começámos de novo, e desta vez fizemos questão de partir de uma fundação baseada na confiança e na sinceridade». Foi Farrah quem acabou por morrer primeiro, em 2009, depois de lhe ser diagnosticado um cancro.
Quanto a Ryan, ao dar a notícia da morte, Patrick não adiantou uma causa da morte, mas, em 2012, Ryan revelou que estava a receber tratamento para um cancro da próstata.
Patrick Ryan O’Neal nasceu em Los Angeles a 20 de abril de 1941, filho mais velho de Charles O’Neal, argumentista, e de Patricia Callaghan O’Neal, atriz. Aos 17 anos, seguiu os pais que viviam uma existência nómada na Alemanha e teve a sua primeira experiência no mundo do espetáculo como duplo na série televisiva Tales of the Vikings. Por uns tempos ainda revelou promessa como pugilista, e num dos posts que o filho partilhou no Instagram no dia em que o pai morreu, publicitou um vídeo no YouTube dele a lutar com Joe Frazier na televisão nacional, com Muhammad Ali a fazer comentários. Sem chegar a desfazer o palmo de rosto que o ajudou a ganhar papéis na televisão sem nunca ter tido uma aula de representação, não demorou a tornar-se uma estrela com a telenovela que passava no horário nobre na ABC, tendo gravado uns 500 episódios. Estava confortável na pele do rapaz rico da cidade, Rodney Harrington, durante cinco anos em Peyton Place. Mas, em 1970, Hollywood não estava interessada em promover atores do pequeno para o grande ecrã e ele estava longe de ser a primeira escolha dos produtores de Love Story.
Foi a sua coprotagonista, Ali McGraw, que era casada com um dos executivos, e que depois de Ryan ter feito uma primeira audição conseguiu convencê-los de que era a pessoa indicada. Tinha 29 anos na altura em que chegou o papel que mudou a sua vida, sendo que, depois de uma década na televisão, só tinha feito outros dois filmes quando foi escolhido para protagonizar o romance sentimental de Arthur Hiller, escrito por Erich Segal, que viria a adaptar o argumento a um romance best-seller. O desempenho de O’Neal em Love Story como Oliver Barrett IV, um jogador de hóquei de Harvard, casado com uma mulher a quem é diagnosticada uma doença terminal, valeu-lhe a única nomeação para o Óscar da sua carreira.
Depois do triunfo que foi esse filme, mesmo se Ryan manteve um perfil elevado ao longo dessa década, nunca comandou o mesmo nível de promessa. Mas conseguiu chegar ao radar de grandes cineastas, desde logo Peter Bogdanovich, com quem fez três filmes (What’s up Doc, em 1972, Lua de Papel no ano seguinte, e Nickelodeon, em 1976), e Stanley Kubrick, que o quis na sua adaptação do romance de William Makepeace Thackeray, Barry Lyndon. Foram muitos os que adotaram uma atitude cínica face à decisão de Kubrick de oferecer o papel de um homem do século XVIII a um ator que era decididamente um símbolo do século XX. Mas Kubrick, como era seu apanágio, viu em O’Neal algo que ninguém e nem ele próprio talvez soubesse. Viu a sua capacidade de transmitir um verdadeiro conflito debaixo da pele do vigarista que interpretou em Lua de Papel, viu o lado impiedoso mas consciente que o tornava a pessoa indicada para encarnar Lyndon, um arrivista que se serve da boa aparência para ascender socialmente ao casar e receber um dote fabuloso. O’Neal provou o seu instinto e timing cómico, sendo que a ambivalência do seu caráter raramente foi utilizado de forma tão elegante. E se Kubrick lhe arrancou uma interpretação notável, ele apreciou claramente a oportunidade de virar do avesso a sua imagem de ídolo das matinés, ele desempenhou habilmente essa traição íntima que leva uma personagem angulosa e cativante a seduzir e enganar todos para alcançar o que pretende, mas que não consegue impedir-se de sucumbir ele mesmo face à sua própria podridão moral.