Toni Negri. O filósofo que teve a audácia de refundar o comunismo

A morte de Toni Negri deixa um vazio num momento em que, nem perante uma crise existencial, o mundo se resolve a admitir que só a revolução pode trazer um novo rumo.

Depois das atrocidades cometidas no século XX em nome dos ideais comunistas, os movimentos de esquerda tornaram-se anémicos, incapazes de prosseguir a crítica do capitalismo e de perceber como este, hoje, fez o próprio Estado refém, um organismo moribundo, incapaz de se livrar desses membros gangrenados pelos ciclos de produção e consumo. A morte de Toni Negri deixa um vazio num momento em que, nem perante uma crise existencial, o mundo se resolve a admitir que só a revolução pode trazer um novo rumo.

Toni Negri morreu na madrugada do dia 16, em Paris, aos 90 anos. Uma figura comprometida com a desarticulação do sistema e uma visão optimista e revolucionária, este pensador italiano foi um dos ideólogos do operaísmo e do movimento autónomo, e um protagonista central nos chamados “anos de chumbo”, um período entre os anos 60 e o início dos 70 marcado pela violência política, em que a militância de milícias nos extremos do espectro político, levou a uma série de atentados e ao assassinato de juízes, operários, sindicalistas, jornalistas, professores. No entender de um outro pensador decisivo da mesma geração, Claudio Magris apontou a contradição a esse extremismo, “obtusamente avulso de todo o contacto real com a sociedade italiana e os seus processos, e privado de qualquer inteligência e cultura política”, falando numa subversão terrorista que julgava ser de esquerda quando actuava de modo útil à direita. Assim, recorda como “os terroristas, de facto, coerentemente, não atacavam corruptos ou mafiosos, mas antes assassinavam as personalidades mais abertas e iluminadas, do professor Vittorio Bachelet ao operário Guido Rossa, ao juiz Emilio Alessandrini – para dar só alguns exemplos – porque eram esses homens que defendiam o Estado”. Naqueles anos de fortes convulsões, a distância entre as ideias e a acção muitas vezes deram margem a tremendas contradições, e Toni Negri emergiu como um desses intelectuais cujo pensamento veio a obter eco entre o ruído e a conturbação que tomava conta das ruas após o Maio de 68. Este jovem que, aos 25 anos, tinha começado a dar aulas na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Pádua, depressa ganhou uma reputação enquanto um dos mais ousados e brilhantes elementos de uma geração que emergia então e que veio a redefinir o horizonte cultural e político em Itália. Ao mesmo tempo que assumiu uma militância política, e foi um dos fundadores do operaísmo italiano, Negri passou a ser olhado com desconfiança nos meios académicos, e foi um desses “cattivi maestri”, ou seja, os professores que havia declinado a sua responsabilidade enquanto formadores regendo-se por uma certa isenção a favor do compromisso e da luta política. Numa reacção à sua morte, Giorgio Agamben, assumindo que nos últimos anos a divergência das suas visões acabou por determinar um afastamento, não deixa de reconhecer a vitalidade generosa e irrequieta do velho amigo, e nota que, com o desaparecimento do Toni se abre uma ausência difícil de explicar, tanto a um nível mais geral, que diz respeito à vida pública e ao debate de ideias em Itália, como a um nível mais íntimo: “sinto que falta qualquer coisa – dentro de mim, debaixo dos meus pés, talvez sobretudo atrás de mim, como se uma parte do meu passado se tornasse abruptamente presente e me faltasse”. Agamben regista, no entanto, que esta falta não diz respeito apenas ao percurso da geração de que fizeram parte, “mas a todo o nosso país e à sua história, cada vez mais falsa, cada vez mais esquecida, como mostram os odiosos obituários, que apenas recordam o mau professor e não o mau e atroz país em que lhe foi dado viver e que ele tentou, talvez erradamente, melhorar. Porque Toni, partindo da tradição marxista a que pertencia e que talvez o tenha condicionado e traído, procurou certamente medir-se com o destino da Itália e do mundo na fase extrema do capitalismo que estamos a atravessar em direcção a sabe-se lá que destino miserável. E isto é o que aqueles que continuam a ultrajar a sua memória não ousam nem seriam capazes de fazer.”

Negri não soube recusar o apelo da aventura política, não quis manter aquela postura de cautela que roça por vezes a cobardia, e aceitou pagar o preço de tentar firmar uma estrutura no sentido da transformação da sociedade, de forma a empurrar o futuro na direcção das melhores expectativas dos homens, de forma a que pudessem ver menos do seu tempo ocupado pelo trabalho, alterando a própria noção da ideia de produtividade, para contrarias a emboscada que significa aguçar os apetites e gerir um regime de competição desenfreada, para continuar a produzir mais bens em menos tempo, fazendo do planeta apenas o tabuleiro de um jogo devastador, onde os homens caem como peças. Tido como uma das principais referências no quadro da renovação do marxismo europeu no final do século passado e início deste, Negri procurou actualizar o sentido do comunismo, libertando da pulsão autoritária e dos espectros do terror que foi orquestrado em seu nome, para relançar um discurso sobre a esperança e os ideais de uma esquerda que não abre mão dos seus valores: a cooperação e solidariedade, a democracia radical e o amor. Numa entrevista que deu pouco depois de fazer 90 anos, insistia que “o comunismo é uma paixão colectiva alegre, ética e política que luta contra a trindade da propriedade, das fronteiras e do capital”.

Tendo nascido em Pádua, em 1933, a forma como primeiro nele se manifestou um impulso para uma adesão a uma acção colectiva foi seguindo uma certa orientação católica, tendo integrado, nos anos 50, a Gioventù di Azione Cattolica. Mas logo sentiu que as convicções que formava com os livros lhe exigiam um compromisso mais forte com o seu tempo, e veio a inscrever-se na secção de Pádua do Partido Socialista, e foi a partir dali que sentiu que faltava por ali um verdadeiro fervor e algo que respondesse ao impulso de revolta que então aflorava nele. Foi assim que veio a liderar o movimento Potere operaio, adequando a crítica marxista a princípios de acção solidária, tornando-se um desses movimentos que vieram dar força aos sindicatos, que por sua vez alcançaram significativas conquistas, permitindo que as massas se integrassem na vida política do país, começando por fim a sanar-se a cisão entre aquilo que diziam as leis e depois a realidade que afectava a vida dos trabalhadores, sobretudo nas fábricas. Foi um capítulo decisivo no que toca a encorajar o robustecimento de uma acção cívica por parte de uma esquerda sem expressão parlamentar. Mas, uma vez mais, foi por sentir que o Partido Comunista guiado por Berlinguer e os próprios sindicatos, em vez de uma acção revolucionária, no início dos anos 70, estavam a assumir uma postura meramente reformistas, lutando por melhorias incrementais em vez de estarem comprometidos com uma transformação profunda do horizonte social, distanciou-se do Potere operaio e fundou a Autonomia Operaia, actualizando o compromisso revolucionário, e admitindo o recurso à violência e ao uso de armas como “vigorosa afirmação da necessidade do comunismo”, contra o Estado e os seus organismos representativos. Negri, que nunca empunhou uma pistola, viria a converter-se nesses anos num dos legitimadores das acções de terror como forma de acção política, mesmo se o fez sempre apegado a certas noções mais românticas do que propriamente orquestrando ou dirigindo este ou aquele atentado. A fundação daquele segundo movimento radical deu-se um ano depois do assassinato de Aldo Moro, sendo que, em abril de 1977, Negri veio a ser detido, juntamente com outros dirigentes e militantes da Autonomia Operaia, sendo indiciado como o responsável moral no assassínio daquele político pelas Brigadas Vermelhas. Acabou absolvido desta acusação, mas não se livrou de uma pena de 12 anos de prisão por associação subversiva, tendo-se dado como provada a sua cumplicidade num assalto em 1974. Contudo, depois de ter sido enfiado no cárcere, o líder do Partido Radical, Marco Pannella decidiu inclui-lo, em 1983, nas listas daquela formação e convertê-lo em deputado, uma condição que lhe permitiu deixar a prisão. Gerou-se então um enorme escândalo na vida política, com as formações de direita a exprimirem o seu horror por verem um homem condenado por terrorismo a entrar no Palácio Montecitório. Mas Negri preferiu antes aproveitar o ter-se visto ao fresco para fugir de Itália, acolhendo-se em França, beneficiando da doutrina Mitterrand, com a recusa do executivo galês em extraditar membros da extrema-esquerda italiana refugiados no país. Em Paris veio a encontrar as condições ideais para retomar a sua actividade enquanto pensador, autor e professor universitário, tendo dado aulas na Sorbonne e no Colégio Internacional de Filosofia, entre outras instituições. Apesar desses anos na Cidade da Luz terem sido decisivos para alcandorá-lo enquanto um dos mais influentes pensadores no que toca à refundação do comunismo, ou seja, de uma esquerda não conformista e heterodoxa, aquele período esteve longe de ser um idílio, e devido às contas pendentes em Itália, chegou a ser alvo de um atentado de sequestro parte dos serviços secretos transalpinos. A completa liberdade só lhe foi concedida em 2003, seis anos depois de ter regressado a Itália para cumprir a pena.

Em 1984, Negri escreveu a meias com Félix Guattari um livro que tem uma edição portuguesa publicada no Brasil com o título “As Verdades Nômades – Por Novos Espaço de Liberdade”, em que às tantas os autores lembra, que “(…) o Estado é o que permanece como uma das formas mais abjectas do poder quando a sociedade se desvia de suas responsabilidades colectivas. E não é só o tempo que levará a termo essa secreção monstruosa, mas antes de tudo as práticas organizadas que permitem à sociedade livrar-se do infantilismo colectivo ao qual a destinam os media e os equipamentos capitalistas. O Estado não é um monstro exterior que precisamos de afugentar ou domar. Ele está em toda parte, a começar em nós mesmos, na raiz do nosso inconsciente.”

Já no que toca à denúncia da condição esclerótica e senil da esquerda, à sua incapacidade de responder às transformações impostas pelo capitalismo nesta sua fase extrema, Negri foi um dos autores que melhor soube fazer o diagnóstico dessa crise, e numa entrevista vincou como a esquerda tem ainda o esqueleto do capitalismo no seu armário, pois nasceu de uma interpretação objetivista e determinista do Capital de Marx. “Os líderes da esquerda gostariam de ser patrões, e como não o podem fazer a título privado, fazem-no a título público, no Estado. Indo mais longe, esses dirigentes nunca entenderam que o capital é o conceito de uma relação, de uma luta. Ou pior ainda, se o entenderam, decidiram fazer parte dele, procurando estar entre os que mandam. O socialismo não é outra coisa senão a transformação do Estado.”