Morreu o psiquiatra António Bento aos 69 anos, vítima de uma doença de «evolução breve», anunciou o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), onde desempenhou funções como chefe de serviço entre 2001 e 2021, quando se aposentou, acrescentando que a «sua vida está intimamente ligada à população em situação sem-abrigo, com quem começou a trabalhar em 1988».
Há pouco mais de um mês entrei em contacto com António Bento para um trabalho para o jornal i dedicado aos sem-abrigo. Sugeri fazer uma entrevista, recusou delicadamente o pedido, justificando com a última entrevista que tinha dado ao jornal por e por querer manter essas declarações. Pedi-lhe sugestões sobre especialistas com quem poderia falar sobre o tema e prontamente deu-me alternativas de outros responsáveis com quem trabalhou na rua e aceitou fazer um artigo de opinião, desejando sempre «Bom trabalho e muito sucesso!». No dia em que saiu o especial foi dos primeiros a elogiar o trabalho, enviando-me um email que partilhei com a redação a dizer: «Parabéns pelos artigos de hoje! Muito bons!».
No artigo de opinião publicado no dia 14 de novembro disse que vivia nos Anjos, perto Avenida Almirante Reis desde 1954 e a partir de 1989 começou a publicar os primeiros artigos sobre os sem-abrigo, depois de ter investigado os doentes psiquiátricos que viviam na rua. «Alguns eram do meu hospital psiquiátrico, o Júlio de Matos, outros tinham psicoses que nunca tinham sido diagnosticadas. Pensava eu, jovem psiquiatra, que estas publicações científicas ajudariam a melhorar as soluções para a problemática dos sem-abrigo. Enganei-me. Mais de 30 anos depois, a doença mental já não é referida quando se fala de sem-abrigo. Ou então usa-se a expressão oposta, a famigerada ‘saúde mental’».
No mesmo artigo revelou que, desde 1988 que tratou milhares de doentes psiquiátricos na rua e em instituições. «A soma de 3 doenças psiquiátricas, associadas às psicoses, álcool e drogas correspondeu sempre a cerca de 2/3 dos doentes, desde o Albergue de Poiais, em 1989, até aos pavilhões covid, em 2021 (num total de 2239 doentes em situação de sem-abrigo)». E lamentou que a doença mental (e, sobretudo, as psicoses) ainda não ter sido reconhecida, nem de estar na agenda dos decisores políticas. «Múltiplas razões podem ajudar a compreender que a psiquiatria dos sem-abrigo seja ignorada, desde logo a visão dos sem-abrigo como fenómeno social ligado à pobreza, ao desemprego e à exclusão social. E há uma espécie de ‘aliança negativa’: do lado da saúde geralmente não se fala nem se gosta dos sem-abrigo; e, do lado social, não se sabe, ou finge-se que não se sabe, que as pessoas em situação de sem-abrigo têm doenças psiquiátricas graves, mantendo assim as suas agendas um cariz social dominante», afirmou.
António Bento reconheceu ainda ser curioso que o número de pessoas em situação de sem-abrigo tenha aumentado proporcionalmente ao dinheiro investido, admitindo que se trata de um «grande paradoxo: quanto mais milhões de euros investidos mais milhares de sem-abrigo!» E como solução apontou a psiquiatria como parte da solução da problemática dos sem-abrigo, «sob pena de a vida destas pessoas continuar a degradar-se e o seu número continuar imparavelmente a crescer».
Já na entrevista dada ao i, em dezembro de 2018, a contestava a ideia dos ‘pobrezinhos’, porque não acreditava que as pessoas iam viver para a rua só por serem pobres, rejeitando os mitos que muitos atribuem aos sem-abrigo. «Os sem-abrigo são como uma folha em branco, cada um vê o que quer, por isso é que é tão bom para os políticos e para toda a gente: se eu for uma pessoa com compaixão, eles servem para servir a minha compaixão, se eu for político, servem todos os políticos: os governos em funções, a oposição, e ainda os jornalistas e o povo. E quem quiser culpar os sem-abrigo também tem bons exemplos. Não digo que sejam mitos, mas cada um vai buscar a verdade que quer, como se fosse o todo», disse.
E criticou ainda o estigma que, em geral, a sociedade associa à psiquiatria. Nessa entrevista disse ter se candidatado para o maior prémio em Portugal de saúde [Prémio Nacional de Saúde, da DGS] mas que perdeu contra um professor de neurologia, mas chamou a atenção para o facto de não estar a pensar em vencer. «Nunca acreditei que dessem a nenhum psiquiatra, muito menos a mim. Quando me preencheram o formulário de candidatura ao prémio, disseram que não tinham posto que a saúde mental é o parente pobre porque isso cria reação nas pessoas para estigmatizarem ainda mais a saúde mental, ou seja: somos os do fim da linha, os mais miseráveis dos miseráveis, mas dizermos que o somos ainda é pior. Eu diria que a saúde mental é o barómetro do estado de um país».
Elias Barreto, com quem trabalhou na rua – psicólogo que nos foi aconselhado por António Bento para o trabalho do i – lembra que em 1994 foi pioneiro na criação da equipa de rua da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Em 2002, no CHPL, criou o Grupo Psicoterapêutico Aberto, dispositivo terapêutico que tem acolhido centenas de pessoas com doença psiquiátrica grave e socialmente excluídas. Foi também autor de diversos trabalhos publicados, com destaque para Sem-Amor, Sem-Abrigo (2002) em co-autoria.
E garante que se tornou «uma figura incontornável no trabalho com pessoas em situação sem-abrigo em termos nacionais, através da colaboração permanente com o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) e múltiplas entidades, tendo-lhe sido atribuída uma medalha de mérito social pela autarquia de Lisboa em 2018», acrescentando que internacionalmente, integrou desde 1992 a organização SMES (Saúde Mental e Exclusão Social) que reúne profissionais e organizações com um foco na interação entre a saúde mental e os processos de exclusão social. «Tocou a vida de muitas de pessoas, para melhor. Continuou a dinamizar o grupo Aberto e fazer saídas de rua até à sua aposentação. Deixa um legado de entusiasmo e dedicação às pessoas em situação sem-abrigo que quem o conheceu não esquecerá», reconheceu ao nosso jornal.