Ora aqui está uma medida que não agradou nem a gregos nem a troianos, que é como quem diz, nem à comunidade LGBTI+, nem aos conservadores católicos. Mas houve quem tivesse logo deitado foguetes antes de ler o texto completo, no caso a comunidade homossexual, enquanto os setores mais conservadores, e não só, da Igreja Católica optaram por ler o documento na íntegra, que é longo, para irem começando aos poucos a dizer de sua justiça. Tudo começou com a declaração Fiducia supplicans, publicada pelo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé do Vaticano, sobre a bênção a casais homossexuais e aos casais divorciados e recasados. Houve quem visse no conteúdo a aprovação da vida conjugal de pessoas do mesmo sexo, chegando mesmo alguns a pensar que o documento igualava a bênção de casais gays ao matrimónio entre um homem e uma mulher.
Dois dias depois de ter publicado o texto, o prefeito Victor Manuel Fernández sentiu-se na obrigação de esclarecer que a “bênção não é dada à união, mas sim ao par”, como explica ao Nascer do SOL um sacerdote português. “Nós, sacerdotes, podemos abençoar sem estar com isso a reconhecer que isto é segundo a vontade de Deus, mas, pelo contrário, a pedir a graça de Deus para que o casal caminhe para conformar-se com a vontade de Deus. É por isso que as associações LGBTI+ vêm dizer que isto é o mesmo que nada”, acrescenta a mesma fonte. Traduzindo por miúdos, os sacerdotes podem dar a bênção a casais homossexuais, mas estes devem mostrar vontade em caminhar no sentido de não viverem em pecado.
De facto, a comunidade LGBTI+ internacional teve reações bem distintas. “A DignityUSA saúda o anúncio do Dicastério para a Doutrina da Fé do Vaticano de que casais do mesmo sexo podem ser abençoados por padres como um importante reconhecimento de que essas relações podem ser sagradas”, escreveu a associação americana. Como já percebemos, não é nada disso que o documento diz. De tal forma é verdade que que o grupo de direitos humanos da Movilh considera que “esta é uma forma nova e intolerável de exclusão, que se pretende passar por anti-discriminatória, quando na realidade é uma medida de apartheid”.
O padre das bênçãos em Portugal
Anselmo Borges, padre e professor de filosofia, há muito que reclama o direito a dar a bênção a casais homossexuais, tendo-o assumido há mais de dois meses ao nosso jornal. “Claro que já dei a bênção a um casal homossexual há uns meses, como lhe disse então. Penso que o que está em causa não é um sacramento segundo o direito canónico ou segundo o direito eclesiástico, mas é um sacramento eclesial, dentro de uma igreja que é um sinal visível do Deus presente e atuante. Fi-lo realmente, num caso concreto, conhecia e conheço as pessoas, um casal de lésbicas, que vive o essencial do Evangelho, trabalham imenso pelos outros, e como lhe digo foi uma celebração do amor, na presença de Deus. Evidentemente que é preciso ser prudente, não é qualquer um que chega, é preciso refletir, é preciso ver caso a caso”.
Mas qual a razão para o documento ter criado tanta polémica? Tem a palavra o padre Tiago Freitas, diretor do Centro Cultural e Pastoral da Arquidiocese de Braga e diretor do Departamento Arquidiocesano para a Pastoral Paroquial, entre outras funções: “No documento há uma preocupação grande, que já não é de caráter doutrinal, mas é de atenção e de cuidado pastoral, porque várias pessoas que estão nesta circunstância reclamam um maior acolhimento por parte da Igreja, porque se sentem afastadas, não acolhidas. E por isso este gesto do Papa, que não põe em causa aquilo que é a doutrina da Igreja. E quais são os cuidados que ele pede para que não se gere confusão nas pessoas? É que estas bênçãos em momento algum devam ser realizadas, por exemplo, no contexto de cerimónias civis, de divorciados recasados ou casais homossexuais, onde, por exemplo, se chama o padre para dar uma bênção no contexto público, isso não deve acontecer, e continua a não estar permitido”.
Quais são as situações que estão previstas para que as bênçãos possam ser dadas a casais recasados e a casais homossexuais? “Primeiro, que deve ser uma oração de bênção espontânea e em contexto de quase caminhada espiritual. Por isso é que ele diz quando alguém se dirige a um santuário, quando está a fazer uma peregrinação, quando está a fazer a direção espiritual com um sacerdote, ou vai ao encontro dele, portanto, num ambiente privado, informal, onde pede a bênção de Deus que desça sobre ele, porque a bênção de Deus é para todos os filhos de Deus, independentemente da circunstância em que se encontram. E por isso há aqui um caráter, digamos, mais informal”.
Enquanto o matrimónio religioso católico é um sacramento, tem um caráter público, até solene, a bênção para os cristãos e é uma coisa que deve ser absolutamente normal. “Se nós nos recordarmos, era aquilo que era a nossa tradição, dos filhos pedirem a bênção ao pai, ao padrinho ou ao padre. Bênção significa um gesto público de manifestação da presença de Deus na vida da pessoa, e o gesto também de acolhimento e de bem querer. Mas qual é a maior preocupação, por exemplo, dos cardeais ou de alguns católicos? A preocupação é que com isto não se gere confusão, dizendo-se que se trata de uma espécie de casamento católico para casais de homossexuais ou para divorciados recasados. E por isso é que a doutrina da fé diz que não se deve confundir e não se deve ter nenhum gesto público que gere confusão ou que possa parecer a isso. E inclusive, uma das coisas que é pedida às Conferências Episcopais e aos sacerdotes é que não se redija nenhum formulário, nenhum documento, nenhum ritual para estas circunstâncias, porque senão, ao estar a redigir esse documento, adquire um caráter formal, e próprio daquilo que é um rito, como é o da Eucaristia, ou de um sacramento. O que se pede é um caráter de espontaneidade, que afaste de qualquer aproximação àquilo que é o sacramento do matrimónio. Uma bênção não deixa de ser uma oração”.
Reforçando que é preciso distinguir a doutrina da fé, que só reconhece o sacramento do matrimónio entre um homem e uma mulher, o padre Tiago Freitas defende a bênção para todos. “A bênção de Deus não é só para os santos, se o próprio sacerdote, qualquer um de nós, tivesse que estar num perfeito estado de santidade, em todos os aspetos da sua vida, para poder receber a bênção de Deus, não sei quantos é que estariam em condições de a receber”.
Outro padre, que prefere o anonimato, concorda com o sacerdote de Braga. “Reparo que os próprios grupos ditos LGBT já vieram manifestar a sua tristeza por considerar que isto é uma tentativa de compromisso que não avança nada. Eu acho que há um profundo sentido do Santo Padre no desejo de alertar aqueles sectores que são mais rigoristas ou mais legalistas, a dizer que nós precisamos de cuidar pastoralmente das pessoas nas situações concretas. E eu acho que esta é a intenção do Santo Padre e do prefeito do Dicastério. Acentuar a dimensão do cuidado pastoral». Acrescenta que «a bênção é incondicional para qualquer pessoa, e, portanto, também para aquelas pessoas que vêm pedir ajuda à Igreja para poder superar as suas dificuldades, as suas debilidades e para poder seguir segundo a vontade de Deus”.