Foi devagar devagarinho. O Natal deixou de ser Natal para passar a ser uma festa de família, a data em que se oferecem presentes ou o dia em que se comem pratos específicos como bacalhau, peru, rabanadas ou filhoses. Assim como no verão se comem gelados. E é feriado.
O Natal deixou de ser Natal para passar a ser uma tradição, tal como o Carnaval. No 10 de Junho celebra-se o dia de Portugal, a 1 de dezembro a sua independência, no 25 de abril o nascimento da democracia, mas no Natal não se sabe bem o que faz parar o país. Os cristãos celebram o nascimento de Jesus, mas são residuais os que vão à missa do Galo ou sequer à missa.
Também compram as velas e a coroa do advento, mas não sabem bem o que representam nem quando devem acender cada uma delas. Admiram os presépios nos shoppings, mas em casa domina o pinheiro iluminado. O Natal já não tem nada a ver com o filme retratado no tradicional anúncio do azeite Galo. Há uns anos era uma festa religiosa e tradicional, hoje é um frenesim de comidas e embrulhos. Mas faz sentido que assim seja. E o sentido que faz tem a ver com coerência da sociedade em que vivemos.
Uma sociedade que vive todo o ano sem religião não tem o que festejar quando se trata de celebrar o nascimento de Jesus, a data mais significativa, a par com Páscoa, do calendário cristão. Mas é um facto que gostamos de festas e é pouco importante o pretexto para as fazer. Ninguém nos tira as luzes, os enfeites, as músicas típicas ou os filmes que nos acompanham a digestão depois de uma almoçarada no dia de Natal, seja a Música no Coração ou o Sozinho em Casa. Tudo isto faz parte da quadra e as crianças exigem a fotografia com o pai natal. De Belém viajámos para a Lapónia numa peregrinação silenciosa e em muitos casos envergonhada.
A parte espiritual da data está em crise e em perigo de atingir os valores mínimos. E o problema é que custa, dá trabalho ser católico nesta época ou só nesta data. É como estudar na véspera de um exame sem nunca ter posto os pés nas aulas: não se percebe nada e o resultado é uma folha em branco. Este ano comprei saquinhos de chocolates a uma associação que ajuda jovens institucionalizados porque nesta altura do ano estamos dispostos a ser um bocadinho melhores do que nos outros 11 meses. Ajudar os mais pobres, oferecer presentes a crianças sem recursos, é o mínimo, desde que esse mínimo não implique mais do que uma transferência bancária. E serve como um pequeno alívio de consciência para quem se prepara para oferecer telemóveis ou roupas de marca aos filhos que não precisam de mais nada para além de mais coisas inúteis.
Mas os saquinhos de chocolates deste ano traíram-me. Cada chocolate traz uma mensagem que é uma tarefa, sendo que cada chocolate é ir abrindo durante o advento. Não são mensagens bonitas para meditar, são trabalhos natalícios. E quanto mais chocolates se comem, mais trabalho se tem. Visitar alguém que esteja sozinho, combinar um café com um amigo com quem não estamos há tempo demais, rezar uma dezena pela paz no mundo, rezar o terço com alguém da família, escrever a um conhecido que viva longe, etc. Pendurei os saquinhos na árvore de Natal e desisti de os abrir. Os chocolates são deliciosos, mas a verdade é que ainda não comprei os presentes e o tempo não chega para tudo. A crise do Natal não está na laicidade do Estado, está na preguiça dos católicos em o serem.