Como é o seu quotidiano?
O meu dia é passado no Hospital Pedro Hispano. É, no fundo, um trabalho de presença, de proximidade para com as pessoas mais frágeis. E a dinâmica é muito à volta da conversa, da ajuda, do cuidado. Para além disso, faço um conjunto de atividades para jovens: sobretudo, para aquela faixa etária dos 18 aos 45 anos. Pessoas que andam à procura desta questão de Deus, de “Quem é Deus e de qual é a sua importância para a minha vida?”. Vêm participar nas atividades e nas celebrações em busca de um caminho e orientações e este é um trabalho de aproximação de outros à Igreja. Celebro casamentos, batizados, funerais… Faz parte da dinâmica do dia a dia. Embora eu estando no hospital não seja uma dinâmica diária.
Como é que surgiu este desejo de estar tão próximo de Deus?
Isto não é mágico e não há um momento determinado: é uma conjugação de momentos, atividades, dinâmicas em que fui participando. Esta questão de ser padre nasce precisamente a partir do momento em que entendo que a nossa vida sendo doada, partilhada para o bem de muitos pode fazer mais sentido. E pode fazer muito sentido! E é nesse foco que eu oriento a minha vida enquanto padre. Não escolhi a Igreja: segui o exemplo de Jesus, que é de onde tudo nasce e brota, porque a vida e a mensagem de Jesus é o fundamento de tudo.
Quando as pessoas olham para si e para o seu irmão [Pedro de Sousa], ficam surpreendidas por serem tão jovens. Mas existem outros padres da vossa idade.
Sim. Mas, de facto, existem cada vez menos padres jovens. No entanto, ainda existem pessoas a pensar no sacerdócio e a pensar em doar a sua vida a um projeto maior do que a mesma. No meio disto tudo, é bonito pensar que todos somos diferentes e caminhamos nesta perspetiva de amar o próximo, ir ao encontro dele, estarmos presentes na vida do outro… Todos diferentes, mas com objetivos comuns!
Estudou Cuidados Paliativos e está a fazer o doutoramento em Bioética. Como tem sido?
Desafiador. Os Cuidados Paliativos, no fundo, vêm nesta perspetiva do meu trabalho em contexto hospitalar, de trazer uma maior humanização ao hospital. São um modo de atuação que privilegia muito a dignidade da pessoa, a presença para com o doente e isso, para mim, é fantástico. Depois, fazer o doutoramento em Bioética surge desta necessidade de responder a perguntas que, muitas das vezes, se levantam nas nossas vidas. Por exemplo: “O que é o aborto? Porquê o aborto? O que é a eutanásia? Porquê a eutanásia? O que são as diretivas antecipadas de vontade? Porquê as diretivas antecipadas de vontade?”. São questões tão difíceis e às quais nós, Igreja, devemos prestar atenção estudando-as. A questão ética e a da dignidade são fundamentais nos nossos dias. Se não soubermos analisar eticamente tudo aquilo que fazemos, algo poderá não estar bem equilibrado. O foco será sempre trazer maior humanidade à minha vida, aos meus trabalhos, às pessoas que me rodeiam e deixar esta pequena semente da reflexão ética em contexto hospitalar, também relacional e social.
O que falha mais nos Cuidados Paliativos? Existem hospitais onde nem existem unidades de Cuidados Paliativos, apenas equipas especializados.
O contexto em Cuidados Paliativos é diferente do resto do contexto hospitalar. Equivalem a criar espaços dignos para aquele doente e falta-nos, de facto, criar essas unidades. Mas também falta, muitas das vezes, aceitar que a nossa vida tem um término. Enquanto sociedade, não estamos preparados para a morte. Continua a ser um tema tabu. O tema morte é afastado das crianças e dos adolescentes e ficamos distantes desta questão. Então, quando nos confrontamos com ela… Tudo é difícil de gerir e debater. E esta é que é a palavra: aceitar. Somos frágeis e hoje estamos aqui, mas amanhã podemos não estar. E a questão da aceitação é muito importante em Cuidados Paliativos. A partir do momento em que aceitamos a nossa partida, a nossa perda, ganhamos qualidade de vida. Os dias que faltam, que restam, podem ser bonitos. Temos de fazer com que os dias contem e não contar os dias. Nascemos sem nada e morremos com nada.
Mas não é fácil aceitar que vamos morrer ou que alguém que amamos vai partir.
Claro que não. Até a mim me custa aceitar, mesmo trabalhando neste contexto. Mas não podemos querer prender as pessoas cá. Gosto muito de pensar que, independentemente da presença ou da ausência, e estamos a falar em vida e morte, há tanta coisa que acontece e se descobre… E ainda podemos viver com essas pessoas que amamos… Elas nunca vão desaparecer! Interiormente, continuamos a amar as pessoas que são fundamentais para nós. É o sentimento que fica connosco. É claro que custa. Ainda por cima, quando pessoas tão boas e que nos fazem bem partem. É um caminho que temos de fazer: social e espiritualmente. Temos de ter tempo para parar, refletir e ganhar métodos para aceitarmos a nossa fragilidade. Todos somos frágeis independentemente da idade.
Para além de não aceitarmos a morte, não aceitamos a fragilidade.
Sim. As redes sociais são um exemplo nato de como a escondemos. Só mostramos aquilo que há de bonito na nossa vida. Para mim não são um meio de trabalho: uso-as sem qualquer problema, mas sinto que apenas mostram aquilo que queremos. Há edição de imagem, a procura do melhor ângulo… Temos medo de mostrar que também choramos, que também temos dores. São meio espectaculares para comunicarmos, é algo bonito e prazeroso.
Como é que tem sido a sua experiência? Há pessoas que o elogiam e há até quem lhe peça ajuda nas caixas de comentários.
Tem sido positiva porque, de facto, a forma mais fácil para encontrarmos alguém e comunicarmos com essa pessoa são as redes sociais. Quando alguém quer desabafar, encontrar-se comigo, etc., chega até mim, algumas vezes, pelo Instagram. Agora, no meio disto tudo, é importante perceber que o fundamental não é este contacto distante, mas sim o contacto de proximidade. Estar à mesa, estar próximo do outro. A tendência será sempre estarmos conectados 24h a uma rede social e esquecermo-nos daqueles que são fundamentais e estão ao nosso lado e precisam do nosso olhar, do nosso toque, do nosso sorriso… A rede social não nos ensina isso. E a inteligência artificial também não nos ensina a abraçar, a sorrir e a amar.
Há muitos problemas que advêm das redes sociais ou que são exacerbados pelas mesmas como os distúrbios alimentares. O que acha que devia ser feito?
As redes sociais acabam por ser um meio publicitário, de divulgação, de trabalho… Podemos tirar várias estratégias e vários pontos. De facto, o trabalho não é o da rede social mas o nosso trabalho para com ela. O envolvimento que, pessoalmente, damos a uma rede social para mim é espectacular porque, por exemplo, sigo algumas páginas que me dão alguns critérios ligados ao clima, ao ambiente, ao ecossistema, etc. Dão-me prismas bonitos que desconhecia e, se calhar, não os conheceria de outra forma. Mas acredito que há coisas que surgem e das quais não preciso para viver. Portanto, a questão da regulação das redes sociais parece-me um trabalho pessoal. A título de exemplo, o tempo que passamos em frente ao ecrã.
Que tipo de pedidos de ajuda lhe chegam?
Os dos adolescentes têm muito a ver com decisões de vida. “Porquê este curso? E porque não aquele? Estou muito confuso”. A partir dos 25 anos, já é muito a questão de Deus, a questão espiritual, “Porque é que não estou a fazer caminho?”. Em fim de vida, as conversas são muito em volta da dor e do sofrimento. “A minha esposa/o meu marido vai partir. Como é que vou lidar com isto?” e, claro, a solidão. A solidão é muito muito ingrata para a faixa etária mais velha e esta questão bate-me à porta regularmente.
Segundo o Eurostat temos, pelo menos, 500 mil idosos a viverem sozinhos em Portugal. Estamos a prestar-lhes a devida atenção?
Podemos fazer muito mais por eles enquanto sociedade. Os lares de idosos estão cheios. Não há vagas e naqueles que há… As mensalidades são tão elevadas que as reformas não são suficientes. A Igreja faz muito no âmbito social porque, quando falamos nele, em Portugal, 75% é feito pela Igreja. E esta é uma questão importante porque, muitas das vezes, não vemos isto. É bonito construir escolas, porque significa que o país avança, mas também temos de encontrar estratégias para o fim da vida. As pessoas não devem estar sós e abandonadas.
Porque senão a terceira idade, como é comumente denominada, torna-se aterrorizadora.
Exatamente. E é precisamente contra isso que os Cuidados Paliativos lutam: para que os últimos dias tenham qualidade. Não se trata apenas do fim da vida, mas também um bocadinho do “antes”.
O que pensou da Jornada Mundial da Juventude (JMJ)?
As Jornadas serão sempre um momento motivador para os jovens e para quem nelas participa. Há pré-jornadas, jornadas e pós-jornadas. O pré-jornadas foi bonito porque se percebeu que houve o envolvimento de muita gente para preparar este encontro mas, sobretudo, para preparar este acolhimento do Papa e dos jovens que estiveram aqui presentes. Parece-me que foi espectacular. O pós-jornadas… Ainda estamos nesse pós, mas penso que o Papa nos deixou critérios bonitos para termos um período posterior bonito também. Tem de nos fazer mexer, fazer sair dos nossos sofás e das nossas igrejas e, de facto, fazer-nos ir ao encontro de quem precisa e estar próximos do nosso mundo.
E das controvérsias que se geraram como a dos cartazes sobre os abusos sexuais?
São naturais em contexto de Jornadas. Aconteceu em Espanha e isto ocorre porque a Igreja sempre escondeu as suas fragilidades. E vai ao encontro daquela questão de que falávamos no início: quando aceitamos as nossas fragilidades, quando aceitamos que a Igreja é constituída por seres humanos… Não escondermos a nossa fragilidade perante uma situação mais dúbia e difícil. Esta questão dos abusos é estranha, dura de entender e surge com um impacto muito grande na Igreja. E para nós, mais novos, é duro vivermos com esta carga. É como se todos os padres cometessem esse crime. Temos o desafio de mostrar que a Igreja tem um rosto de beleza. Enquanto a Igreja não aceitar que tem fragilidades, continuará a ter pessoas a quererem feri-la.
Acaba por haver um estigma e quem não tem culpa dos abusos sexuais que foram cometidos sofre.
Mas todos temos fragilidades. Eu sei que tenho fragilidades. Os padres são homens frágeis. Caminhamos por este exemplo bonito que é a vida de Jesus, mas há fragilidades no meio disto tudo. Por isso é que costumamos dizer que o caminho mais direito nem sempre é o mais curto. Porque o caminho que temos de traçar para chegarmos a algum objetivo tem curvas, obstáculos, dificuldades… Temos de os contornar e ultrapassar para atingir o objetivo.
E por falar nessas fragilidades, o que pensa do celibato?
A questão do celibato nunca foi uniforme ao longo da história da Igreja. O meu modo de olhar para as coisas é: a partir do momento em que percebo que a minha vida é doada para um bem maior, de facto sinto que a disponibilidade para constituir família acaba por ser bastante reduzida. E digo isto porque tudo aquilo que faço, tendo a minha agenda idealizada com aquilo que faço… O timing de família seria bastante reduzido. E já assim é. Porque passamos mais tempo em contexto de trabalho do que em contexto familiar, tirando as horas de sono. Sinto que seria difícil acompanhar de maneira bonita a família que constituísse. Temos o exemplo dos pastores evangélicos, com os quais me relaciono de maneira bastante próxima, que acabam por ter uma maior dinâmica de reflexão sobre a família porque têm essa experiência. Ou seja, pegando nesse exemplo, conseguem humanizar mais o seu próprio trabalho porque têm uma experiência realizada. Não sei se enquanto Igreja funcionaria. Não consigo dizer se sou a favor ou contra: prefiro dizer que sou um homem livre quanto a esse assunto! E gostava que fosse uma questão livre, mas percebo a dificuldade do “sim” e do “não”.
Continua a ser algo que causa confusão à maioria das pessoas.
Sim, também me faz confusão, mas consigo perceber no contexto prático de vida o porquê. A única questão, parece-me, é a qualidade que poderíamos dar a uma família. E tem muitas questões ligadas à vida pessoal de cada um. Não é fácil de gerir. Até porque há muitas conversas que tenho que são privadas e não as posso contar a mais ninguém. E vamos imaginar que tinha uma esposa: se falei com uma pessoa em contexto de confissão, não lhe poderia dizer o que se passou. Criava logo ali uma barreira de confiança muito grande. Não é suposto haver segredos numa relação a dois. Até por aí é complicado gerir. Portanto, não tenho uma resposta. Temos a tendência de colocar tudo em duas gavetas, a do “sim” e a do “não”. Mas vou-me apercebendo, ao longo da vida, que não podemos dizer apenas que somos a favor ou contra. Temos de refletir, olhar para as situações concretas e decidir ou ajudar alguém a decidir. Um “sim” ou um “não” não existe, mas sim, existe uma pessoa.
Numa entrevista, o seu irmão disse que “falta humanizar a Igreja, arrojar e tocar no coração daqueles que estão afastados e que não se sentem identificados”. O que é que o Antonino pensa?
A questão da humanidade é espectacular porque sinto que só podemos chegar ao conhecimento através dela. Antes de tudo, está a humanidade. Criada por Deus e só podemos conhecê-lo quando conhecemos a humanidade. Por isso, essa questão de que o meu irmão fala parece-me muito interessante. Depois, o que falta é olharmos para o exemplo de Jesus e percebermos que a Igreja tem de caminhar a partir do mesmo. E que, muitas das vezes, distancia-se desse exemplo e desse ponto de partida. A Igreja tem de olhar para as bases e fazer de Jesus o pilar de onde tudo se pode refletir. E, por vezes, a Igreja parece que não olha para as atitudes que Jesus teve como tomada de decisão. Por isso é que quando olhamos para o Papa Francisco pensamos na pessoa de Jesus: acolhe, abraça, ri, está presente, quer fazer caminho, abarca todos, não exclui ninguém. Foi Jesus que nos ensinou a viver assim. Até porque a nossa Constituição portuguesa não tem nenhuma lei que nos peça para amar. Podemos respeitar o outro, ter um conjunto de regras que nos fazem estar próximos do outro, mas a palavra “amar” nem sequer aparece em contexto de lei. Isto é tipicamente cristão. É uma máxima que devemos aproveitar: amarmo-nos sempre uns aos outros!