Se arrotar é feio e é-o, arrotar a Natal, não fica melhor. Arrotar propositadamente, acho hediondo. Porém aqui estou eu com os meus botões, a eructar a Natal. Eructar é mais bonito A palavra. Porque o ato em si, é o mesmo. Declaremos que estou a esmoer aquela prolongada sensação, de ter sobrevivido a mais um Natal, e sobretudo com a absolvição de tudo se ter passado bem. Poucas coisas há, que superem a emoção de sobrevivência a um Natal feliz. Se ficou a pensar em questões carnais, saiba que concordo. Mas convém ser mais prosaico, então digamos que não me interessa a idade que tenho, mas sim os Natais que celebrei. Desde logo, porque ninguém me pergunta quantos natais vivi. Nasci em agosto e não perto do 25 de dezembro, contudo continuo a viver o Natal como um aniversário. Porque o é, com as prendas, os preparativos de festa, os lindos sorrisos, os desejos bem-aventurados provindos como chuva de palavras, onde nos queremos molhar. O Natal oferece-nos a oportunidade de, no melhor dos casos, vivermos um filme feliz, no pior, de fazermos um balanço anual, como as lojas do antigamente. Dirão que sim, que é o aniversário do Menino. Sim, sou um menino, e é o aniversario de todos nós, meninas e meninos em conjunto. E dos outres também.
Inicia-se a película com a clássica composição de uma equipa, ao estilo do Ocean’s Eleven. E são necessários vários almoços e jantares, ganhando vários quilos de lastro, nas duas semanas precedendo o dia de Natal. Ao que vêm, sabemos, os que vêm nem sempre. Entre abraços estranhando a comparência de uns, notamos a ausência de outros. Ou nem por isso.
Na derradeira noite, tradicionalmente encontramos os mesmos familiares todas as consoadas, na expectativa de não revermos a maioria deles, a não ser doze meses depois. Por vezes alguém se descuidou e lá está um bebé a mais, ao passo que os velhotes, cada ano é previsto haver um a menos. Ou forçosamente um dia nessa benzida noite, não caberíamos todos à mesa. É a realidade: para todos estarem, alguns têm de faltar.
Atravessamos ansiosamente para o capítulo seguinte, ementando a Grande Farra do Marco Ferreri à mesa de Natal. Ao descobrirmos o enfeitado piroso do repasto, eis que perante o inexorável pecado mortal da gula, nos surge (vá-se lá saber de onde? todos os anos é igual!) um fugaz pensamento para os pobres, coitados, que nada têm. Uma vez que o tivemos, urge que tal pensamento se varra rápido, não nos corte ele o apetite. Seria desastroso numa noite de Natal, pelo que aconselho a imagem de um veloz, mas pesado arrastar de esponja sobre giz em ardósia, soltando o tombar da poeira. Resulta sempre e assim sorrindo, bebemos e comemos até enfartar. Enfartar sim, porque comas o que comeres, enfartas sempre e sobra sempre muita paparoca na noite de Natal. É o milagre da desmultiplicação e do empanzinar. Curiosamente aquela ideia dos pobres é assimilada, verificando desproporcionado dinheiro gasto em prendas e consequente incumbência de ingurgitarmos à força, tudo o que sobrou de alimentos durante a semana seguinte, ou até o bolor nos alertar. Aí sim, “que pena, estragou-se comida, podíamos ter dado a quem dela precisa”. E abrimos mais uma garrafa, para esquecer o assunto. O Natal é só um, mas nem todo os espíritos são iguais.
Referi as prendas, não haveria Natal sem as saborosas prendas, cada vez mais para dar, cada vez menos a receber. De irritante que é, compro sempre uma prenda para mim, e todos os natais faço um género de Lista de Schindler, onde escolho quem é eleito e quem é riscado. A minha barba ficou branca e o pai Natal é o único gordo, ao qual não me importo de ser comparado.
É triste porque passa demasiado rápido a vida e o Natal, apesar de ser eternamente reconfortante. Tem isso de semelhante aos casamentos, dão demasiado trabalho, são demasiado caros e passam num ápice. E é triste sim, porque essência da felicidade se reduz a momentos, a instantes que criamos e deles nos impregnamos. Recordando, olhamos a quem veio, sabendo que partirá, querendo segurá-los de unhas e dentes, como as crianças fazem às suas prendas. Com a idade, as nossas prendas, são os presentes.
Não sendo eu nem natalense, nem natalista, sou um defensor nato do Natal. E não sendo o Natal quando um homem quiser, porque importa que o seja quando é, o Natal perdura e festeja-se até ao dia de Reis. Portanto, coragem! Lembro-me que certa vez, só no mês de junho seguinte desfiz a minha árvore de Natal. Confesso que foi um hiperbólico espírito de Natalício.
Tão inócuo, tão bom.