Comecei a dar aulas em Março de 1980, como assistente do Professor Joel Serrão, no Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Na realidade, fui mais do que assistente: concebi o programa e a bibliografia e durante vários anos dei todas as aulas do ‘cadeirão’ de ‘História Económica e Social do Antigo Regime na Europa’, uma cadeira do 3.º ano do curso. Acho que nunca estudei tanto como nesses anos de 1980 e 1981. Depois, já mais rodada, continuei a estudar para ir aperfeiçoando e actualizando o programa e a bibliografia, ao mesmo tempo que iniciei a investigação para o meu futuro doutoramento, pois não me seria concedido nenhum ano sabático para o efeito. Mais tarde, dei outras cadeiras, como História Política da Europa no século XIX ou História de Portugal no século XIX e História da Revolução Francesa de 1789, disciplinas do 4.º ano, além de mestrados vários. Lidei assim com uma grande variedade de alunos até 2012, quando, demasiado decepcionada, me mudei a tempo inteiro para o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, a que desde a sua fundação sempre tinha pertencido a tempo parcial e onde, tendo já feito a ‘agregação’ na F.C.S.H., cheguei rapidamente, por concurso, ao topo da carreira de investigação superior – Investigador-Coordenador. Também no Instituto, a par do meu trabalho de investigação, cheguei a dar aulas em pelo menos dois mestrados de pós-graduação. Nem por isso melhorei a minha opinião geral sobre os alunos com que me defrontei.
Por que abandonei a docência? Porque é muito frustrante dar aulas a alunos mais ou menos analfabetos e totalmente desinteressados. De 1980 até meados da década de noventa, sempre tive nas minhas turmas, que, conforme os anos, variavam entre cinquenta e noventa alunos, um apreciável lote de alunos bons e até muito bons; alunos que tinham uma formação de base razoável, que eram aplicados e estavam muito motivados para aprender e alargar os seus conhecimentos. Não foi sol de muita dura.
A partir de meados da década de noventa, o número dos bons alunos foi gradualmente decrescendo de ano para ano, até que os alunos muito bons se sumiram e os bons iam ficando reduzidos a uma meia dúzia. Não exagero: entre 2004 e 2006, quando dei o curso sobre a Revolução Francesa, já só tive alunos medíocres ou até muito maus. Não me apareceu ninguém que conseguisse alinhar duas ou três frases sensatas sobre a matéria; todos ignoravam que a Revolução se radicalizara ao ponto de abolir a monarquia, dissolver a Assembleia Nacional e convocar uma Convenção que dirigiria a Primeira República Francesa (Setembro de 1792); ninguém sabia o que eram os jacobinos. Isto no 4.º e último ano do curso.
Não demorei a perceber que o notório declínio da qualidade dos alunos se limitava a reflectir a crescente degradação do ensino liceal. E dei comigo a pensar como poderiam alunos como os meus – e dos meus colegas – vir a dar aulas no ensino liceal, já que saíam da Universidade largamente ignorantes e claramente impreparados para uma docência liceal de qualidade. A baixa qualidade dos alunos, a partir, como disse, de meados da década de noventa, tinha necessariamente de reflectir a crescente baixa qualidade da docência liceal, já que os estudantes saíam directamente da Universidade para o ensino público. Com as desastrosas levas de licenciados que a Universidade ia ‘formando’ todos os anos, a situação no secundário só pode ter continuado num percurso descendente.
É certo que existem todos os problemas com a colocação de professores que bem conhecemos. Mas isso só explica uma parte ínfima do problema. O desleixo do ensino superior, que passa diplomas de licenciatura a criaturas quase analfabetas – incapazes de ler livros do princípio ao fim, substituídos por umas fotocópias manhosas de um ou outro capítulo, e que frequentemente não sabem interpretar o pouco que lêem – o desleixo do ensino superior, dizia eu, tem outra causa para além da duvidosa competência dos docentes. Essa causa, talvez a principal, chama-se facilitismo. Com efeito, em obediência a uma cultura que, estupidamente, recomenda ou até exige que os jovens não sejam sobrecarregados com trabalhos de casa para poderem fruir da sua adolescência ou juventude com toda a leveza do ser, diminuiu-se drasticamente, ou até mesmo eliminou-se quase por completo esses trabalhos. Devem contar-se pelos dedos quantos alunos leram algum livro do Eça de fio a pavio, para já não falar n’Os Lusíadas de Camões, que no meu tempo, e ainda muito depois do meu tempo, eram de leitura integral obrigatória.
Mas há mais: há muito tempo que, com o mesmo intuito de não maçar os jovens e de lhes evitar qualquer espécie de stress – não vá ficarem traumatizados – foram abolidos exames e provas de aferição regulares. Chegar ao décimo segundo ano do liceu tornou-se um passeio no parque. Um aluno só chumba no final do Liceu se for um caso mesmo desesperado de estupidez e ignorância. É por tudo isto que o alarmante ranking em que o PISA coloca Portugal não deve surpreender ninguém.