Faz-me espécie saber que o Portugal socialista das cativações que levaram à falência dos serviços públicos e que perde um tempo estúpido a regatear quatro milhões gastos na vida de duas crianças seja um dos financiadores de um novo supercomputador dos mais potentes da Europa e ninguém cuide de saber quanto se investiu nem qual é o retorno esperado desse investimento. Sim, porque se o investimento global nesse supercomputador foi superior a 200 milhões de euros e metade corresponde a fundos europeus, também é do conhecimento público que a outra metade foi maioritariamente suportada por Espanha e houve outros dois países cofinanciadores, Turquia e Portugal, em percentagens que o Barcelona Supercomputing Center (BSC) – onde fica parqueado e cujos serviços de comunicação se encarregaram de propagandear a cerimónia de inauguração – se recusou divulgar.
Uma recusa sem sentido, porque no próprio site da Fundação para a Ciência e Tecnologia (representante nacional no projeto) pode ler-se que Portugal terá direito a 5% da capacidade do MareNostrum 5, sendo que Espanha e Turquia partilharão os restantes 45% (em partes que a FCT também não descrimina, vá lá perceber-se porquê). Sendo que na mesma nota se acrescenta: «Estas percentagens são as mesmas que cada parceiro assumiu na aquisição destes sistemas». E assim ficamos a saber que Portugal pagou cerca de 10 milhões de euros do custo total de 202 milhões do MareNostrum 5.
Para quê? Para dispor dos tais 5% da sua capacidade.
Mas mais elucida a FCT: «A par com a inauguração do Deucalion, realizada a 6 de setembro deste ano em Guimarães, ficam assim corporizadas as ações previstas no âmbito da parceria europeia do programa-quadro Horizonte Europa que juntaram Portugal e Espanha na empresa comum (joint undertaking) EuroHPC». Acrescentando: «Juntamente com a disponibilização destes recursos, a FCT passa a associar tempo de cálculo nestas máquinas (Deucalion e MareNostrum 5) ao abrigo dos concursos de projetos em todos os domínios científicos, sem requerer uma avaliação científica adicional».
Ora, aí está, o que Portugal assegura com este investimento é que haverá projetos científicos nacionais que ficam dispensados da avaliação científica adicional a que terão de sujeitar-se todos os projetos europeus concorrentes à utilização dos 50% de capacidade do MareNostrum 5 geridos pela empresa criada em 2018 para administrar a computação europeia, a EuroHPC.
Como acontecerá com os projetos científicos com mérito de todos os países europeus (para além de Espanha, da Turquia e de Portugal) que não tiveram de investir um cêntimo adicional neste MareNostrum 5.
Dá para entender? Dá, mas não é nada bom nem para a comunidade científica portuguesa nem para os governantes que assim gerem o erário público.
Quando o mundo decidiu parar e fechar-se em casa para conter a primeira epidemia do século XXI, Portugal regozijou com os milhares de milhões que a União Europeia decidiu disponibilizar para os Planos de Recuperação e Resiliência (PRR).
A juntar a programas como o Portugal 2020 e o Portugal 20-30, nunca o país beneficiara de tantos milhares de milhões.
Ao ponto de o chefe de Governo, ele próprio, falar numa autêntica «bazuca» para o desenvolvimento do país, privado de investimento público que se veja desde o tempo da troika.
O mesmo primeiro-ministro que agora, em plena crise política e já com o Governo em gestão, foi a Belém apresentar cumprimentos de Natal ao Presidente da República e ‘tranquilizá-lo’ em relação aos seus fundados receios de desaproveitamento dos fundos do PRR, anunciando que já foram disponibilizadas mais umas significativas tranches por Bruxelas.
Pois sim, a verdade é que Bruxelas já começou a cortar nos fundos disponíveis por incumprimento de Portugal.
E, se tem entrado dinheiro no país como nunca se viu, cadê ele?
Onde está o investimento público e o investimento privado que é suposto justificar tantos milhares de milhões?Nos anos 80 e 90 multiplicaram-se os críticos do ‘betão’ porque o país passou a ser atravessado por autoestradas de norte a sul do continente e de poente a nascente, que é como quem diz do litoral ao interior. E fizeram-se viadutos e pontes, como a Vasco da Gama, e Expos, e CCB’s e universidades e parques industriais em várias capitais de distrito…
As obras viam-se. E se houve críticos à aplicação dos fundos…
Agora, simplesmente não se vê nada.
Diz-se que a aposta é na modernização do país e na transição digital e na computação e no desenvolvimento tecnológico.
Seja, mas o que se vê é demasiado pouco para tanto milhar de milhão, não há evidências de transição digital alguma, os serviços públicos estão cada vez mais e generalizadamente obsoletos e incapazes de responder às necessidades mais basilares.
E eis que aparece o supercomputador em Barcelona com investimento português.
Mare Nostrum era o nome que Roma Antiga e Imperial dava ao Mediterrâneo, que banha Barcelona mas não passa de Gibraltar e só aquece um pouquinho as águas algarvias do bem mais frio e português Atlântico.
O MareNostrum5 também permitirá alimentar projetos da comunidade científica nacional dispensados de uma avaliação adicional, mas a verdade é que não aquece nem arrefece mais ninguém.
Já Pessoa questionava ao mar salgado quanto do seu sal seriam lágrimas de Portugal.
E Camões, se tivesse nascido cinco séculos depois, provavelmente teria, como Saramago, renegado o país cujos maiores feitos cantou e que agora paga, sim, a quem os quer reescrever e maldizer. Ai, os Lusíadas…