Álvaro Siza. ‘O meu problema é que tenho pouca imaginação’

O maior arquiteto português e o decano dos críticos de arquitetura, o britânico Kenneth Frampton, encontraram-se na nova ala de Serralves para uma conversa memorável.

Quando em 1980 publicou a sua famosa História Crítica da Arquitetura Moderna, Kenneth Frampton colocou entre os grandes nomes da disciplina o de um arquiteto então ainda quase desconhecido a nível internacional, «o mestre português Álvaro Siza Vieira». Foi só depois disso que Siza fez alguns dos seus projetos mais emblemáticos, como o edifício Bonjour Tristesse, em Berlim (1984), a igreja do Marco de Canaveses (1996), o Pavilhão de Portugal na Expo 98 (1998) ou o Museu de Serralves, no Porto (1999).

Siza e Frampton, que só viria a Portugal pela primeira vez em 1981, acabariam por estabelecer uma amizade baseada na admiração e no respeito mútuos, tendo-se cruzado por várias vezes na atribuição de prémios de arquitetura em que Frampton fazia parte do júri e Siza foi o galardoado.

Recentemente, os dois velhos amigos voltaram a encontrar-se, no âmbito do ciclo ‘Arquitetura a Nu’, justamente na nova ala do Museu de Serralves assinada por Siza – «o faraó criou aqui a sua pirâmide, a sua casa para a eternidade», como comentou o moderador, o arquiteto António Choupina. A conversa coincidiu com o dia do 93.º aniversário de Frampton, e versou sobre o percurso de Siza e o ofício da arquitetura.

António Choupina: Kenneth, gostaria de começar por ler um pequeno texto que Siza escreveu sobre si, em que o descreve como «um viajante de toda a vida no espaço e no tempo. Olhos, ouvidos e voz que descobrem, recebem, compreendem e transmitem, abertos à partilha». Isto é uma espécie de resumo da forma como ele o vê e, de certo modo, descreve o que tem sido a forma como acompanha a carreira de Siza desde os anos 70, quando você viu a L’Architecture d’Aujourd’hui, de Bernard Huet, dedicada a Siza, tendo depois organizado a sua primeira viagem a Portugal em 1981. E houve toda a sequência, com os diferentes textos em 82 na [revista] Architectural Design em 83, na Perspecta, de Yale, e, obviamente, a grandiosa proposta de incluir Siza no seu livro História Crítica da Arquitetura Moderna.

Kenneth Frampton: Sim, ando por aí há muito tempo, mas aqui estou. É verdade que encontrei a obra [de Siza] com o Bernard Huet, que foi um editor incrível da L’Architecture d’Aujourd’hui, em 76. E ele estava de tal modo consciente da importância da obra do Álvaro em Portugal que também incluiu alguns versos de Fernando Pessoa. Portanto a minha descoberta do Álvaro foi de algum modo inseparável da minha descoberta de Pessoa. Mesmo em tradução, Pessoa surge como uma figura extraordinária. Um espírito que, do meu ponto de vista, não está completamente apartado do espírito do Álvaro. De tempos a tempos, penso que houve certos encontros que foram importantes para mim. Um deles foi com a transformação de uma pequena casa de um vitivinicultor [Alcino Cardoso] em Moledo do Minho, onde havia umas ruínas. E certos gestos impressionaram-me. Também foi a primeira vez que me apercebi de uma certa influência de Frank Lloyd Wright na obra [de Siza]. Porque, como provavelmente sabem, a ala dos quartos de dormir tem uma forte ênfase horizontal, o telhado reforça a proximidade da obra com o chão, por oposição ao corpo da antiga casa de pedra. E o que é muito tocante nisso é que o arquiteto está a fazer uma afirmação muito clara de que a casa antiga não deve ser esmagada ou perturbada. O cliente, claro, quer mais quartos de dormir, mas os quartos são acrescentados de uma forma que a casa antiga conserva a sua presença. Achei isso impressionante. Outra coisa em que não queria acreditar no que os meus olhos viam foi essa tradição artesanal de cortar postes de pedra para suportar as vinhas. E o uso que o Álvaro faz deste material em bruto, como um material encontrado, para a estrutura de entrada da piscina. E há ainda outro elemento de que o Álvaro me falou e que eu não sabia – e continuo a achar inacreditável. Os amigos abastados destes clientes abastados disseram-lhes para se livrarem das antigas vinhas e plantarem laranjeiras, porque não precisavam de manutenção, eram mais produtivas, etc., etc. E, se bem me lembro, você contou-me que foi uma luta para convencê-los a não fazerem isso e manterem as vinhas. Se calhar é apenas uma história – talvez eu acredite demasiado em si. [risos] A dimensão do arquiteto vai além de apenas projetar o edifício. Há também um sentido de responsabilidade em relação à continuidade da cultura, e isso para mim é tudo o que importa. O que aquele lugar tinha sido continua lá, coexiste com o que é hoje. Penso que isso é um feito poético. E o que é espantoso é que ao longo da vida a dimensão da sua obra, porque nesta extensão – e no edifício original [do Museu de Serralves] também – há um jogo cheio de vitalidade com a sequência espacial da nova ala, em que a exuberância, penso que podemos usar essa palavra, é tão estimulante. É um prazer estar aqui e experienciar essa sequência espacial. Estou a passar de uma coisa que está no passado distante para algo muito recente… Há um aforismo seu que diz: ‘Os arquitetos não inventam nada, apenas transformam a realidade’. Acho isto tão profundo, para estudantes de arquitetura, por exemplo. A grande ideia é a transformação da realidade. Hoje já lhe referi aquele ensaio inicial em que nota o facto de muitas das suas obras, nessa época da sua vida, não terem sido bem cuidadas, não sei as palavras verbatim, mas diz qualquer coisa como: ‘A maioria das minhas obras ou foram alteradas, ou não foram concluídas, ou foram destruídas’. E depois diz esta coisa muito bonita: ‘Mas há algo que permanece, adoptado por alguém’. É uma afirmação muito tocante.

Álvaro Siza: Referiu uma coisa que eu disse ou escrevi um dia sobre os arquitetos não inventarem, apenas transformarem. Penso que o meu problema é que tenho muito pouca imaginação. [risos da plateia] É verdade. E tenho de me concentrar e olhar para o que já existe. Não tenho uma ideia e digo: ‘Isto é assim’. Preciso de olhar e de tentar encontrar um ponto do percurso para seguir em frente. Devo dizer que sempre que recebo um convite para um projeto, ainda hoje, fico um pouco preocupado, quase em pânico, porque não tenho a certeza se vou conseguir fazer aquilo. Costumo dizer que trabalhamos através das dificuldades. Porque compreender essas dificuldades é parte da informação para um projeto. É um caminho duro, e talvez seja por isso que não estou em muito boa forma… demasiados anos a trabalhar. Mas tive muitas ajudas, felizmente. Quando entrei para a escola de arquitetura, não queria terminar [o curso], queria ser escultor. Mas a família achou que seria uma vida demasiado boémia. Por isso fui para arquitetura, que era um pouco mais respeitável – não muito. Mas com a ideia de mudar para escultura, que era na mesma escola. Conheci algumas pessoas, e tinha complexos terríveis porque não sabia nada sobre arquitetura – não tinha ninguém na família que tivesse contacto com a arquitetura. Portanto sentia-me mal, porque para mim todos os meus colegas eram sábios e sentia-me cada vez mais pequeno. Até que tive uma oportunidade. Com a nova direção da escola veio uma nova equipa de professores. Pessoas jovens, interessadas em ser modernas, o que era muito difícil naquela época, havia muitos obstáculos. E alguns já com contactos no estrangeiro, como [Fernando] Távora, não apenas ele, mas Távora foi muito importante na escola. Havia aqueles que sempre tinham olhado para mim como ignorante, sem vocação nenhuma para a arquitetura, e alguns desses professores novos mostravam-se interessados quando falavam comigo, não andavam à procura de um estudante que já sabia de arquitetura, mas perceberam que eu era um estudante que, olhando para este movimento, queria saber algo mais. O diretor, Carlos Ramos, foi o primeiro a corrigir um trabalho meu. Disse-me assim: ‘Não vou fazer uma crítica ao seu trabalho, porque vejo que não faz ideia do que é a arquitetura moderna. Por isso dou-lhe um conselho: vá a uma livraria e compre algumas revistas sobre isso’. Fui à livraria com o meu pai – o meu pai era engenheiro e comprou os seus livros de engenharia – e por sorte as três Architecture d’Aujourd’hui que havia eram Gropius – e Carlos Ramos, o diretor [da escola] era um ‘bauhausiano’ -, Neutra, gostei de ver as fotografias, e um que eu não fazia ideia de quem era, chamado Alvar Aalto. Quando olhei para as páginas da revista de Alvar Aalto fiquei em choque. Olhei para aquilo como podia olhar para uma escultura. É claro que a arquitetura tem a ver com a escultura, como tem a ver com a música, com o ballet e com a poesia. Mas não se compara com a escultura, é completamente diferente. Não apenas porque as pessoas vivem dentro dela, mas por outras razões. De qualquer modo, tive, mais ou menos por essa altura, a mesma impressão quando visitei Barcelona com os meus pais e fomos ver Gaudí. O meu pai tinha-me mostrado fotografias e eu disse: ‘Isto é escultura’, por isso interessava-me. Visitei quase todas as obras de Gaudí sempre com essa ideia: ‘Isto é escultura’. Até que reparei que naquele edifício havia tudo o que havia na minha casa em Matosinhos: pilares, paredes, janelas e por aí fora. Então percebi que olhar para aquilo como escultura era um erro, era arquitetura. Graças a estes encontros com Gaudí e Aalto passei a interessar-me realmente por arquitetura. E como alguns dos professores me ouviam com interesse e gostavam de conversar comigo calmamente, comecei a pensar que podia ser arquiteto. Interessei-me cada vez mais e tive oportunidades. A primeira foi que no meu quarto ano de arquitetura fui convidado a fazer três casas. O meu primeiro trabalho. Como não sabia nada, comecei a falar com os artesãos, os trabalhadores, os carpinteiros. Ouvir os conselhos que me deram enriqueceu-me muito, porque um era do Sul e outro, noutra casa, era do Norte, e eu via como eles trabalhavam de maneiras diferentes, não era uma rotina, era um conhecimento que tinha passado de geração em geração, desenvolvido numa área específica de Portugal, com prevalência de certos materiais, de certas tradições, influências árabes no Sul, influências celtas no Norte, por isso a minha ideia da arquitetura foi-se tornando cada vez mais rica. E também comecei a viajar. Tinha ido algumas vezes com os meus pais a Espanha, mas a primeira vez que saí da Península Ibérica já tinha 40 anos, penso. Fui a Paris, claro, uma viagem paga pela Gulbenkian. Depois tive outras oportunidades de ir a Itália, aqui e ali, tive a oportunidade de visitar muitos edifícios, já não estava ‘preso’ como quando entrei na faculdade, em que moderno era só o Corbusier, quase só isso. E houve muitas ajudas. Até tê-lo conhecido a si! E aos poucos comecei a acreditar que podia ser arquiteto. Comecei a trabalhar, a trabalhar, depois fui mal tratado em Portugal – eu e outros colegas, porque tínhamos trabalhado em projetos de habitação social depois da revolução, por isso não havia trabalho para nós. Eu era um marginal. Mas essas obras despertaram interesse no estrangeiro, e comecei a ter convites para trabalhar na Holanda, em Berlim, e por aí fora, e também na América, durante um curto período. Por isso comecei a ter mais confiança. Ainda não acreditava muito em mim, mas com pequenas ajudas, e o interesse de algumas pessoas, tornei-me arquiteto. Mas sempre um bocadinho em pânico com a possibilidade de uma obra.

AC: Pegando no que Siza estava dizer sobre essa primeira revista sobre Aalto, e a ironia de Aalto ter batizado o seu barco ‘Ninguém é profeta na sua própria terra’, que é um pouco o seu sentimento a seguir à revolução, acho curioso que o Kenneth tenha estado presente quando ele recebeu a medalha Alvar Aalto em 1988 e menos de três meses depois, como presidente do júri do primeiro Prémio Mies van der Rohe. Convenceu o júri – certamente não estaria sozinho – a conceder essa honra pela primeira vez ao banco de Vila do Conde. Depois Siza escreve-lhe uma carta que termina com uma frase enigmática: ‘Como podemos ficar contentes por termos projetos quando a Europa não tem projeto?’. Acha que o Álvaro construiu o seu projeto independentemente do projeto europeu?

KF: Isso foi mais tarde, na realidade. Porque tivemos uma troca de correspondência em que fiquei a saber que você [Siza] tinha uma quantidade de projetos. E eu escrevi-lhe: ‘Deve estar muito contente por ter todos estes projetos’. E você respondeu-me: ‘É verdade, tenho muito trabalho. Mas como posso estar contente quando a Europa não tem um projeto?’. Tanto quanto me lembro foi assim. E isso teve um enorme impacto em mim. Continuo a achar que isso foi essencialmente uma declaração política. Penso que essa continua a ser a questão: você vê que os líderes mundiais – estou a falar dos políticos, claro – têm os seus próprios interesses, mas não têm um projeto, um grande projeto para a sociedade. Quanto à questão do banco e do prémio europeu, acho que é um edifício muito forte, e não foi difícil [escolhê-lo]. Havia pessoas que apreciavam muito o seu trabalho, em particular na Catalunha, os catalães sentiam muita afinidade com o seu trabalho. Ignasi de Solà-Morales, que infelizmente morreu muito jovem, era um grande entusiasta do seu trabalho, e [Vittorio] Gregotti também. Outra coisa que me ocorre enquanto falo é esta questão – você usa a palavra ‘pânico’. A palavra projeto também se relaciona com a ideia de ser atirado, e em certo sentido toda a criatura é atirada cá para fora quando nasce. Quando se começa alguma coisa, se faz alguma coisa, é-se confrontado com um desafio. E, nesse momento em que somos confrontados, acho que toda a gente sente essa espécie de pânico. E, tal como o formula na metáfora do capitão do navio, a rota não é clara. E o que é tão notável no aforismo ‘a ideia está no lugar, não na cabeça’ é a evocação de: por onde se começa quando temos a folha em branco? Nalguns casos, por exemplo, parece-me que você começou por desenhar uma paisagem e as formas quase brotaram da paisagem. Através do ato de desenhar, induz a forma daquele lugar em particular, fazendo-a sair do chão. Julgo que as piscinas de marés são literalmente induzidas a partir do chão. É por isso que acho o aforismo ‘a ideia está no lugar, não na cabeça’ um pensamento incrivelmente criativo em si. Acho a sua obra, nesse sentido, muito encorajadora, e também a honestidade do que acabou de dizer: ‘Quando recebo um projeto há um momento em que fico em pânico’. É uma confrontação com a realidade, com a realidade existencial face aos desafios. Tudo isso é muito encorajador porque é muito direto e é também necessariamente irónico, penso.

AS: A propósito do que disse sobre a paisagem e a arquitetura, poderia dizer que tive outra oportunidade. A minha segunda obra, e a seguinte, foram numa área maravilhosa, livre, num contexto urbano, o restaurante da Boa Nova e a piscina [de marés]. O restaurante chegou-me através de [Fernando] Távora, com quem trabalhei uns três anos, foi o meu primeiro emprego. E certo dia ele diz aos colaboradores (éramos cinco): ‘Há um concurso para um restaurante em Matosinhos, eu não o posso fazer, mas vocês podem’. E nós respondemos: ‘Nós também não podemos, porque ainda não somos arquitetos, não temos o diploma’. E ele diz esta coisa extraordinária: ‘Não há problema, eu assino’. E no último dia do concurso ele estava no gabinete, uma sala pequena, para escrever a memória descritiva, e fez um bonito poema sobre a obra. Penso que foi por isso que ganhámos o concurso. Mas o pânico foi mesmo grande. Távora foi visitar o local com os colaboradores e disse-nos: ‘O edifício tem de ser aqui’. E isso era no meio das rochas. Essa foi a segunda razão por que ganhámos o concurso: porque aquele sítio era maravilhoso e novo, uma descoberta da paisagem, porque não dava para a praia, como todos os outros tinham feito, mas para uma pequena área onde o mar subia e descia, diferente todos os dias. Eu próprio passei muitos dias a desenhar as rochas, uma a uma, porque a documentação topográfica não dava um conhecimento preciso de onde íamos pôr o edifício. Trabalhámos no duro, o edifício foi terminado e depois recebi o convite para a piscina, que estava a ser construída pelo irmão de Távora. Pude comparar situações muito diferentes e tão próximas uma da outra. A Boa Nova com aquela colina, as rochas, pequena, com pormenores, etc. A outra, uma praia com muita areia, a horizontalidade total da paisagem: o mar, a avenida, tudo era horizontal e desimpedido de construção. E comecei a fazer uma autocrítica em relação ao projeto da Boa Nova. Apesar de o edifício ter tido sucesso, não estava completamente satisfeito, e percebi que era por causa daqueles paralelos, não era suficientemente forte. No caso da piscina, o sítio também era maior, plano. Numa crítica à Boa Nova, disse: ‘A arquitetura não pode ser uma imitação da paisagem. Isso é um suicídio do arquiteto. A arquitetura é simetria’. Ali tudo é orgânico, tive dificuldade em desenhar porque era tudo tortuoso. ‘Para desenhar este edifício de forma funcional preciso de quadrados e de retângulos’, pensei. E desenvolveu-se neste contraste entre coisas tão próximas, numa relação entre a geometria e a natureza orgânica. Isso para mim foi uma boa lição. Tive a oportunidade de ter situações diferentes, uma primeira com um processo bastante engenhoso e a outra a céu aberto com grandes áreas e o contraste das rochas com toda esta horizontalidade. Essas foram as duas primeiras experiências que me marcaram. A natureza, a paisagem, é muito importante. Mas também é importante descobrir a arquitetura, a geometria, não é para seguir a paisagem de forma mimética. O que eu disse desse pânico de não acreditar em mim quando chegava a um novo projeto é sincero. É verdade, ainda sinto isso. E essa imaginação fraca, como algo que vem de dentro, de repente, e a necessidade, que tanto me tem ajudado e continua a ajudar, de olhar para o trabalho de outros arquitetos, para novas cidades, novos projetos, foi essa a forma que encontrei de continuar a avançar. E o conhecimento, o estudo de muitas obras de arquitetura, mas que não podemos usar como imitação. Quando trabalho, não penso: ‘Para aqui seria bom aquele edifício do Alvar Aalto’. Ou do Corbusier. Vi tantas coisas, não posso usá-las de forma voluntária, porque me perderia. O que acontece é que elas estão no nosso bom amigo, o subconsciente – o subconsciente vem e ajuda-nos. Tentando encontrar o caminho através de pequenos esquissos, muitas hipóteses, algumas loucas, boas para descartar, passo a passo, encontramos um caminho seguro.

KF: Você uma vez perguntou-me: ‘Acha que tem de se começar pela tipologia?’. E eu julgo que disse: ‘Penso que sim’. A obra tem muita energia, mas há uma base lacónica. É uma obra muito discreta, na forma como se relaciona com o lugar e com as anteriores tipologias da arquitetura. Tem este dom de conseguir fazer uma espécie de afirmação silenciosa que também possui energia plástica. Sinto que essa é a grande força da sua obra.

AS: Isso resulta de muito trabalho, porque as coisas simples são muito difíceis, muito complexas. Quando comecei punha demasiadas coisas nos primeiros desenhos. No princípio do meu trabalho faço muitos desenhos, diferentes soluções, não no computador, em esquissos, porque o computador para isto é demasiado lento, e os esquissos são muito rápidos. E portanto muitas ideias para o desenvolvimento do projeto. O trabalho de desenvolver um projeto de arquitetura em certo sentido é tirar o que não é necessário, é limpar, para chegar a alguma coisa que seja plena de significado e de pensamentos, mas que não estão evidentes. Algumas pessoas dizem: ‘Você faz uma arquitetura muito simples’. E eu respondo: ‘Sim, é muito complexa’.

KF: [Risos]

AS: Ir ao essencial e tirar o que não interessa é muito importante. Por exemplo, na construção, o meu desejo está sempre relacionado com não revelar, não pôr a nu o esforço da estrutura. Gosto de estar num espaço em que não tenho aquela sensação: ‘Que estrutura fantástica, como conseguiram fazer isto?’ A minha intenção é não revelar, não deixar que estas dificuldades dominem o espaço. Num edifício forte podemos sentir a calma, o que procuro é sempre essa possibilidade de nos sentirmos calmos dentro de um espaço.

AC: Diria que essa espécie de insegurança referida por Siza antes é o contraponto da segurança do edifício terminado, e particularmente essas obras iniciais que são hoje obras-primas e até monumentos nomeados para Património da Humanidade da UNESCO, algo em que em certo sentido você [KF] sempre acreditou, independentemente de Siza acreditar ou não nele próprio. Por exemplo, você também estava no júri quando lhe foi atribuída a medalha de ouro do Royal Institute of British Architects [RIBA]. E essa abertura do mundo anglo-saxónico deve muito à sua confiança, ou crença, na sua obra e no poder que a obra de Siza transmite. Quais são as forças elementares que o motivaram – fosse na atribuição do primeiro prémio Mies van der Rohe, da medalha de ouro do RIBA, ou mais tarde, em 2014, do prémio Mies Crown Hall of the Americas – para insistir tanto na importância da obra de Siza? Sei que é uma pergunta traiçoeira…

KF: E poderia levar a uma resposta repetitiva… De facto estive envolvido no reconhecimento da obra nestes momentos que referiu. Lembro-me claramente, por exemplo, que na medalha de ouro do RIBA havia uma certa pressão para atribuir o prémio a um arquiteto britânico em particular. E eu fiz pressão no sentido contrário. A troca de argumentos continuou e acabámos por chegar a uma espécie de acordo de cavalheiros: ‘Este ano recebe o arquiteto britânico e para o ano recebe o Siza’. E assim foi. O prémio europeu [Mies van der Rohe] foi muito mais fácil porque se baseava numa obra específica, e todo o processo de decisão era mais cosmopolita. Havia nomes fortes espanhóis, catalães, italianos, etc., uma cultura mediterrânica. Achei interessante o que [Siza] disse sobre a simplicidade complexa e sobre o seu desejo de estar num espaço onde não se vê todos os tipos de elementos estruturais, e a calma desse espaço. Acho que é claramente o que acontece no seu caso. Mas ao mesmo tempo a questão dos materiais e de como dão carácter à obra é, para mim, fundamental. No pequeno lote de vinha da casa do vitivinicultor de Moledo do Minho, os postes de granito são parte da materialidade do lugar. O material não é apenas a estrutura, é também a substância de que é feito o edifício. Sinto que a obra é lacónica, por não ser abertamente expressiva no sentido estrutural. Isso também lhe dá o seu carácter escultórico – escultórico e espacial –, que é complementado e enriquecido pela forma como os materiais são usados.

AS: Reparei que você estava a olhar com atenção para as paredes de pedra quando vínhamos para aqui. Eu perco muito tempo com os pormenores. A forma como sentimos um espaço resulta de decisões muito pequenas. Falando em pormenores, esta pesquisa é um trabalho duplo, porque primeiro temos de analisar todas as possibilidades de combinar diferentes materiais, e, em segundo lugar, temos de desenvolvê-lo de forma a não vermos os pormenores. Se o pormenor invade o espaço, o espaço fica reduzido. Portanto há estes dois momentos para o pormenor. E são pequenas conquistas que fazemos. A parte difícil, claro, é a ideia de conjunto de um edifício, mas o trabalho também é compensado por pequenas conquistas. Se eu num dado momento vejo como aquele ângulo vai atravessar os materiais, por exemplo, fico contente. E aumenta a minha confiança no desenvolvimento do edifício. Pequenas conquistas.

AC: Hoje passámos o dia todo aqui, praticamente, e de manhã visitámos tanto o museu como esta nova ala. Vimos muitos pormenores, desde a luz da manhã que vem da janela que está mesmo atrás de si, à luz do fim da tarde que vem daquela janela triangular lá em cima. Mas o Kenneth reparou num pormenor que foi o tamanho da gravilha. Disse-me que achava que a gravilha devia ser maior.

KF: [risos] Uma das consequências dos pormenores é que, quando damos uma volta pelo edifício, assim que percebemos a mensagem que os pormenores nos transmitem, damo-nos conta de cada nuance. Tornamo-nos muito sensíveis a estas pequenas circunstâncias. Dei por mim a reparar nas molduras das janelas, que dialogam entre si, tanto no exterior como no interior. Quando entrei, dali a pouco comecei a olhar para a gravilha e achei que tinha uma dimensão um pouco estranha. Mas talvez seja este tipo de reação que o arquiteto pretende. E fiquei a pensar que as pedrinhas da gravilha deviam ser ligeiramente maiores. O que é que acha? [risos]

AS: Aparentemente não é uma coisa importante. Mas se olharmos para o edifício de cima para baixo, a gravilha torna-se muito importante, porque é como a fundação do edifício. Não podemos esquecer isto: tudo é importante. Quanto às janelas…

KF: Lá fora reparei que havia referências cruzadas entre as molduras das janelas. Não consigo exprimir-me com precisão, mas pareceu-me haver uma espécie de ambiguidade intencional na forma como a janela é emoldurada.

AS: A primeira vez que visitei a casa de Adolf Loos, uma bonita casa em Praga, não estava muito interessado no Adolf Loos, porque ao olhar para os desenhos achei muito estranha a distribuição das janelas, quase caótica. Depois de visitar a casa por dentro, saí e o que vi lá fora já era outra coisa. Eu é que não tinha percebido antes. Depois de as ter visto por dentro, a posição das janelas era muito clara, era impossível mudá-las de sítio. Elas estavam desenhadas sempre com base nesta relação interior-exterior. Com esta estratégia, ele conseguia uma espécie de magnetismo entre as janelas. Já não pareciam estranhas. E tudo está relacionado com a possibilidade de vermos em simultâneo o interior e o exterior do edifício. A simultaneidade é fundamental na apreciação de um edifício. E é algo que os fotógrafos também conseguem mostrar. Os fotógrafos têm uma relação profunda com a arquitetura, são os mestres da capacidade de ver – não olhar, ver. E alguns ajudaram-me muito, como o [Gabriele] Basilico, ou o [Giovanni] Chiaromonte, que morreu há dias. Porque olhamos para as fotografias e pensamos: ‘Porque é que este edifício é tão bonito?’. E prestamos atenção a isto e àquilo… Quando passamos nas ruas não temos esta visão total.

KF: É interessante como Loos está presente na sua obra. Vejo na Malagueira vestígios de Adolf Loos. E sobretudo na Casa Avelino Duarte. Aquela escada é um momento muito vienense…

AS: Fiz essa casa depois da visita à casa de Adolf Loos em Praga. Tinha uma encomenda para fazer uma casa numa avenida nova onde não havia nada, a não ser duas ou três casas de emigrantes, horríveis. O meu pânico foi total. A paisagem era horizontal, a zona ficava perto do mar, mas não muito, não havia árvores, aquela avenida era péssima. ‘Como posso fazer uma casa neste sítio?’ Então lembrei-me. Tinha presente a visita ao Adolf Loos e o que fiz estava cheio dessas impressões, não como uma coisa direta…

KF: Uma citação.

AS: Mas como algo por onde começar. Temos de aprender truques para começar na arquitetura.

KF: A memória também tem um papel a desempenhar, não é? Mas depois há uma conjugação do espaço e dos materiais. O material também tem um toque de Viena. E outra coisa belíssima nessa casa é um certo jogo rítmico – vão estreito-vão largo-vão estreito-vão largo. Há uma presença de Palladio…

AS: Você escreveu um texto sobre essa casa. Agora me lembro!

KF: Sim, gosto muito dessa casa…

AC: Estamos a aproximar-nos do final. O Kenneth tinha pensado começar a sua aula na Escola de Arquitetura para o 90.º aniversário de Siza com os esquissos que Siza fez da Villa Getty, mas depois mudou de ideias. Num desses esquissos, Siza escreveu: ‘Porta para o inacessível Jardim do Éden’. Será este edifício onde estamos uma porta para o Jardim do Éden – e para o Parque de Serralves?

AS: Eu gostei muito da Califórnia, mas a maioria das pessoas com quem falo dizem mal da Califórnia, porque não estiveram lá com o Peter Testa. Eu estive lá com ele e gostei muito, não apenas do clima, mas do ambiente.

KF: É muito interessante porque esse Jardim do Éden está relacionado com uma abertura. E parece-me que este novo edifício está cheio de aberturas para o parque, e cada uma delas é uma abertura ‘edénica’. Perguntou-me por que mudei a forma como ia começar a aula. Os desenhos dão uma sensação de embriaguez, o arquiteto-desenhador está completamente inebriado com o sítio, com a vegetação, com esta réplica de uma villa romana. Os desenhos são tão poderosos que nos deixam sem palavras. Tudo o que se possa dizer sobre eles é redundante. Excepto que o projeto de Peter Testa e Álvaro Siza não foi adiante. E isso é algo que me leva a refletir acerca deste tipo de concursos: o que poderia ter sido. Quando se pensa que Le Corbusier e Pierre Jeanneret poderiam ter ganho o concurso da Liga das Nações em 1927, se o projeto deles tivesse sido construído, teria mudado a cultura da arquitetura moderna. Há projetos assim. Se a proposta de Mendes da Rocha para o Centro Pompidou tivesse ganho, teria transformado completamente a cultura. Se Testa e Siza tivessem ganho o concurso na Califórnia, isso teria tido um enorme impacto na arquitetura americana e a nível mundial. Testemunhamos grandes perdas…

AS: O mundo perdeu uma quantidade de grandes projetos. Da última vez que estive na Finlândia, o Alvar Aalto já tinha morrido. Fui aos arquivos de arquitetura e havia desenhos de toda a gente mas nem um de Alvar Aalto. E o arquiteto que lá estava disse-nos: ‘O Alvar Aalto era um bocadinho maluco. Estava sempre a fazer desenhos no café para mostrar como era brilhante’. Fiquei estupefacto. E depois tive algumas informações que explicavam isto. Ele tinha participado num concurso para um pavilhão de uma feira na América ou em Paris, já não sei. E ganhou o primeiro prémio, o segundo prémio e o terceiro prémio. [risos] Como haviam de reagir os arquitetos do seu país depois de perderem o primeiro, o segundo e o terceiro prémio para outro arquiteto? É desesperante! Por isso tinha tantos críticos. Ele não chegou a terminar o seu maravilhoso plano urbanístico para Helsínquia porque havia uma forte oposição. Por isso, aqui fica um conselho: nunca ganhem os três primeiros prémios.

[Pergunta do público] Até estou com medo de perguntar isto. Julgo que chegou a conhecer o Alvar Aalto. Pode falar-nos sobre esse encontro?

AS: Alvar Aalto adorava vinho. E havia um arquiteto português que todos os Natais lhe mandava uma garrafa de vinho. E Aalto uma vez enviou-lhe, como agradecimento, um desenho – não sei onde está hoje esse arquiteto, isto foi há muitos anos. Quando fomos lá, tentámos ter uma reunião com Alvar Aalto e deixámos um bilhete a pedir para nos encontrarmos no dia seguinte. Ele pensava que eu era o homem que lhe enviava as garrafas de vinho. A verdade é que nos recebeu muito bem, estivemos meia hora ou talvez mais a conversar com ele num belo escritório, num pátio. Mas ele estava enganado:_eu nunca lhe mandei vinho.l

Transcrição, tradução e edição de José Cabrita Saraiva

Agradecimento: Museu de Arte Contemporânea de Serralves