Era Eusébio e chovia e o povo chorou com o céu

Eusébio morreu faz hoje dez anos. O povo ignorou a tarde negra e as bátegas de água,  saudou o seu caixão pelas ruas de Lisboa.

E assim, de repente, passaram-se 10 anos. Não sei como parar esta vertigem do Tempo, mas estou certo de que não vai lá com comprimidos. Dia 5 de Janeiro de 2014 — acordei com a chuva na janela e com a mensagem do Jorge Laires  «O nosso Pantera Negra morreu!». Claro que não morreu mesmo de morrer, será eterno para sempre, mas fez um intervalo e parece-me que já não volta para a segunda parte. 6 de janeiro tornou-se um dia longo, longo.

Na véspera, Eusébio voou com o vento. Era Lisboa e chovia, diria Castro Alves. Eusébio e o vento eram irmãos: sopravam ambos. Eusébio soprou sempre em rajadas contra o destino. Tenho saudades dele, meu amigo, com a memória ínfima de todos os pormenores da sua carreira. Joguei a seu lado, imaginem só!, várias vezes numa equipa de A Bola que se reforçava com veteranos de truz. Enfim, jogar não joguei: ele jogava e eu corria para ver se percebia os seus passes mágicos. A maior parte não percebi. Era outra coisa. Um universo à parte do Universo de todos nós, os que morremos mesmo de morrer.

Dizem que chover é um verbo defectivo: que só se conjuga na terceira pessoa do singular. Mentira! Eusébio conjugava-o na primeira pessoa. Eusébio chovia. E relampejava, e trovejava e tempestuava sobre os adversários e sobre as balizas. Eusébio estava para lá do verbo. Era a imagem e a imaginação. Imaginem um golo, perfeito, irretocável: Eusébio marcou-o. Não sei em que dia, em que jogo, mas marcou-o. E pouco me importa se há ou não filmes e fotografias que o confirmem. A memória regista-o. A memória coletiva que fica um tudo nada para além do risco branco do impossível.

Dia 6 de janeiro foi um dia tão longo

Eusébio coxeava. Era como se fosse a sua bandeira. Quando o via agarrado à muleta, doía-me por dentro. Não por ele, que não se envergonhava das cicatrizes da sua guerra, mas por essa crueldade infinita do Tempo que não respeita a perfeição momentânea dos homens. Eusébio coxeava, e, no entanto, naquele dia 6 de janeiro, deu a volta ao Estádio da Luz. E deu a volta a Lisboa. Carregado aos ombros daqueles a quem nunca deixou cair. Sim, recuperem os momentos: sempre que precisámos de Eusébio ele esteve lá. Contra a Coreia, mas muito mais. Contra a derrota, contra o infortúnio, contra a vida vidinha deste país que o mar não quer, como escrevia Ruy Belo. Alegria do povo. Alegria de um povo tão triste.

Eusébio nunca nos falhou. Podíamos mentir: «Uma vez, era miúdo, vi o Eusébio marcar um golo de antes de meio campo, de costas para a baliza, sem deixar a bola cair no chão!». Verdade! Todos vimos! Eusébio existia para que o exagero pudesse existir. O exagero era ele.

O céu também chora o adeus dos seus preferidos.

Havia em cada um dos que se perfilavam pelas ruas da Lisboa cinzenta e aflita, a vontade de suplicar: «Não chovas! Por favor, não chovas!». E o céu, calado. Eusébio percorre a cidade, devagar, pela última vez, e para mim é como se corresse, de novo com aquela passada vertiginosa de quem tem pressa, de quem tem tanta pressa, o braço no ar, comemorando o golo eterno, o sorriso um pouco tímido, um pouco travesso, de quem driblou o fado e o manto negro de um Portugal que continua a lamuriar-se pelas esquinas gastas de bairros sem tempo. As pessoas aplaudem-no enquanto corre. Querem tocar-lhe. Algumas choram. Há qualquer coisa que desapareceu em cada um de nós, mas não sabemos ao certo o quê. Uma ânsia de conseguirmos ser o que não fomos? O que é que foge de nós enquanto Eusébio foge? Escrevo frases que já escrevi. Como se escrevesse os golos de Eusébio no videotape. Também a mim, apetece dizer: «Parem de chover! Parem de morrer!».

Um campo de futebol era pequeno demais para Eusébio: 120 por 90 metros??? Deixem-me rir. Ele ia e vinha, chutava e ia buscar a bola ao fundo da baliza e voltava a correr, com ela debaixo do braço, com pressa, sempre cheio de pressa, para chutar outra vez e ser golo outra vez e correr outra vez, sempre a correr, hora e meia a correr, dias a correr, meses e anos a correr. Se um campo de futebol era pequeno demais para Eusébio, como pode ele caber numa porcaria de um caixão?

Dia 6 de janeiro foi o dia mais longo da vida de um Eusébio morto. As lágrimas do céu de Lisboa caíram sobre Eusébio. A noite caiu sobre Eusébio. A terra caiu sobre Eusébio. A chuva continua a cair sobre Eusébio. Até mesmo hoje, dez anos já passados, pode lá ser? Eusébio que tinha em si o bilho inconfundível da Estrela Solar ficou, de repente, sozinho na falsa companhia dos outros mortos que nos esperam mas sabiam que ele continuaria vivo para lá da morte. Eusébio corria para lá das linhas de um campo de futebol, continuará a correr para lá dos muros sujos de um cemitério manso.

Mas, para já, neste momento, está só. Talvez descanse um pouco. O dia foi longo, como vimos, e ele atravessou Lisboa ao colo do povo. Em redor há silêncio. E as gotas da chuva e o marulhar dos ciprestes.

Um céu negro, cor de pele.

Um buraco dentro de nós…  

afonso.melo@nascerdosol.pt