Perguntei-lhe: “Qual a sua grande ambição?”. E surpreendi-me com a resposta: “Não tenho”. Insisti: “É difícil acreditar”. E ele: “Mas é verdade, asseguro-lhe. Só quero continuar vivo por muito tempo porque gosto muito de viver!”. Viveu mais 26 anos. Esta conversa que tive com Franz Beckenbauer, que morreu agora, poucos dias depois de Mário Zagallo, teve lugar em Munique, em Fevereiro de 1998.
Nevava muito. Coube-me, como era prática n’A Bola de antanho, ir buscar a casa o Prémio Vítor Santos, que o jornal destinava às grandes figuras internacionais, e trazê-lo para Lisboa. Nessa altura não conhecia Franzi, como lhe chamam os mais próximos, mas o meu camarada do Bild, Manfred Munschraf, um bom companheiro, disse-me, numa conversa que tivemos entretanto, que ele era, absolutamente, um “Junge von nebenan”, isto é, Um Rapaz da Porta ao Lado, no sentido de ser, como nós gostamos de dizer um gajo porreiro. Anna, a responsável pelas Relações Públicas do Bayern de Munique encarregou-se de me levar até ao velho Estádio Olímpico. Vi ao lado do Kaiser o, até aí, golo mais rápido de todos os tempos da Bundesliga, por Élber, logo aos 11 segundos de um Bayern-Hamburgo, e ficámos a dar à taramela na sua sala do estádio, adiantando a entrevista que tinha para lhe fazer. Depois, no dia seguinte, viajámos lado a lado no avião, troca de palavras já mais soltas, mais de Rapaz da Porta ao Lado (embora ele fosse um senhor em tudo), uma ou outra “schweinerein”, isto é, o calão, o dichote brejeiro, mas nada de “latrinnenparolen” que é a expressão para dizer palavrão mais extraordinária de todas as línguas.
Todos recordam Beckenbauer de ombro deslocado, braço amarrado ao corpo, jogando como nada se passasse na meia-final do Mundial de 1970, no México. Todos os que gostam de futebol têm num lugar qualquer da sua memória, uma imagem de Franzi. Até o ver descer do avião, na minha frente, já o olhava como O Rapaz da Porta ao Lado, mas depois lembrei-me de uma velha frase de Brian Clough, antigo treinador do Nottingham Forest, e percebi que tinha razão: “I once saw Franz Beckenbauer enter a restaurant and he did it the same way he played football: with class and authority”.
Beckenbauer, Franz, o Kaiser (sem aquele bigode apepinado de Guilherme II), encantou-se, como dizia Guimarães Rosa. Aos 78 anos de idade, disse adeus em silêncio, durante o sono, ele que já há uns tempos saíra de cena incapaz de ser, por maladia, o que sempre fora. Um céu sem pássaros sobre Munique. Um céu sem pássaros, agora, enquanto escrevo. Beckenbauer sorria um sorriso de anfitrião. Franz Anton Beckenbauer tinha um nome solene e aquele ar severo de cavalheiro prussiano mas era tranquilo, calado, sem peneiras. Sem peneiras como aqueles que não precisam delas para acrescentar centímetros ao seu tamanho. Eu tinha lido o livro de Beckenbauer. Convenci-me, sei lá por que raio de ideia súbita que me brotou dos interstícios do encéfalo, de que seria um bom tema de conversa. Ele amofinou-se. Não comigo, mas com o livro: “Foi um verdadeiro sacrifício. Que ideia tão estúpida. Não tenho o mínimo jeito para algo do género. Nem sei porque resolvi aceitar o projeto da editora”. Que eu saiba, não chegou a ser traduzido para português: chamava-se qualquer coisa como Eu Conto Como Foi, numa liberalíssima versão absolutamente minha. Aliás, convenhamos que a expressão liberalíssimo encaixa perfeitamente em Beckenbauer. Diziam que era um líbero, mas na verdade era, de facto, um… liberalíssimo.
Maestros Franzie e pavarotti
Beckenbauer começou a jogar futebol no SC München von 1906 ainda era um garoto de cueiros mas cedo passou para as escolas do Bayern e subiu todos os degraus da hierarquia, passando por treinador e presidente. Em 1964, aos 19 anos, foi chamado para comandar a defesa dos bávaros e ficou no seu posto até 1977: ganhou três Taças dos Campeões Europeus, foi vice-campeão do Mundo em Inglaterra, em 1966, capitão da Alemanha Ocidental, vencedora do Euro-72 e do Mundial de 1974, foi para Nova Iorque e para o Cosmos jogar ao lado de Pelé, ainda jogou duas épocas pelo Hamburgo, tornou-se treinador e levou a Alemanha a ser de novo campeã do Mundo em Itália, no Mundial de 1990.
Franzi, como alguns dos amigos lhe chamavam, contou-me: «Pressionaram-me bastante para publicar histórias que fui acumulando ao longo da minha carreira, episódios que reparti com gente das mais diversas áreas, desde a política às artes. Por exemplo, quando joguei no Cosmos, com Pelé, cada vez que entrava no balneário ficava com a sensação de que estava em Hollywood». Gostava de falar. De contar episódios: “Conheci pessoalmente o Luciano Pavarotti no Metropolitan de Nova Iorque. Um tipo extraordinário! Grande apreciador de futebol. Veio ter comigo, dobrou um joelho até tocar o chão e exclamou: ‘Maestro!’ Claro que aquilo confundiu um bocado os americanos presentes, que percebiam pouco ou nada de futebol e nem sabiam quem eu era”. Os joelhos de Beckenbauer e de Pavarotti nunca lhes terão dado problemas por aí além, segundo sei. Já os corações, alvoroçados, levaram ambos às mesas de operações. Um falava pouco, o outro cantava tanto, tanto. Estremecia com a voz o arcaboiço de um homem. E foram ambos estrelas. Franzi e Pavarotti, tanto na terra como no céu.