Com cada ano que começa, assistimos a um reinvestimento nas velhas superstições, e à falta de um quadro confiável que nos sirva de orientação para os dias que virão, fazemos o que tantos homens fizeram ao longo dos séculos, no escuro, quando se achavam perdidos, erguendo os olhos para as estrelas, divisando no meio daquela barafunda que, de princípio, pode até soar como um clamor dos abismos, as bases de um princípio de orientação minimamente auspicioso.
Remontando às mais arcanas fontes e à subtil desenvoltura com que as culturas ancestrais mergulhavam na imensidade do desconhecido, vemos como a forma mais antiga de determinismo surge ligada à astrologia, a esses códices enunciando as influências dos planetas, estabelecendo obscuras doutrinas quanto à leitura dos presságios, e isto remontando a uma noção do universo como um todo, em que cada uma das suas partes prefigura (ainda que de forma secreta) a história das outras. «Tudo o que acontece é um sinal de algo que vai acontecer», disse Séneca. E Cícero também já havia tentado expor uma conceção semelhante: «Os estoicos não admitem que os deuses possam intervir em cada fenda do fígado ou em cada canto dos pássaros, coisa indigna, dizem eles, da majestade divina e inadmissível sob todos os aspetos; sustentam, pelo contrário, que o mundo está ordenado desde o princípio, que certos acontecimentos são precedidos de certos sinais fornecidos pelas entranhas dos pássaros, pelos relâmpagos, pelos prodígios, pelas estrelas, pelos sonhos e pelas fúrias proféticas…. Como tudo acontece por destino, se houvesse um mortal cujo espírito pudesse compreender a cadeia geral das causas, ele seria infalível; pois aquele que conhece as causas de todos os acontecimentos futuros, necessariamente seria capaz de prever o futuro».
Curiosamente, nos nossos dias, apesar do favor que certas práticas ocultas voltaram a gozar, desde logo a astrologia, talvez nunca tenhamos estado tão impreparados para tentar reaver essas conceções, quando a frivolidade nos faz tropeçar na mistificação de tudo, e os nossos juízos estão carregados de um nível tal de ansiedade que nos leva a buscar soluções imediatas para realidades flutuantes, sendo as perguntas formuladas a partir de entendimentos cada vez mais estreitos da própria existência. Se houve sempre um certo fascínio com as figuras oraculares, esses espíritos capazes de formular profecias, para se retomar esse fôlego primeiro teríamos de nos libertar de um eixo fundamental da forma como as nossas vidas e pensamento se organizam, e que passa pela conceção linear do tempo. Porque enquanto princípio orientador, o que a astrologia oferece não é a certeza, mas a distância. Não se trata de procurar compreender os eventos numa linha temporal, mas aceitar um enquadramento tão mais vasto que nos obriga a assumir uma posição menos reativa. Para se mergulhar nesse regime divinatório, é preciso deixar que o próprio pensamento se livre dos nós que foi firmando, de tal modo que se possa chegar àquele ponto em que, como nos diz o verso de Herberto Helder, «cada lenço que ata, a própria seda do lenço o desata». Ora, a astrologia postula que a história não segue uma arrumação linear de progresso ascendente, mas que se move em ciclos, e que os atores históricos correspondem arquétipos. Remontamos a quadros mitológicos, aos caracteres cujo magnífico desenho permite depois traçar perspetivas infindáveis, chaves de leitura, de um modo semelhante à forma como os navegadores aprendiam a ler as estrelas para reconhecer em que ponto relativo se encontravam face àquela noite imensa. A tendência contemporânea é para reduzir tudo à sua função utilitária, que chega a ser a mais mesquinha, e, por essa razão, vemos essas astrólogas de televisão e revista, como cartomantes de feira, a promoverem a mais cretina e inescrupulosa das noções daquilo que antes era encarado como uma forma artística, uma vez que a astrologia se baseia num quadro de interpretação simbólico e espiritual, ou seja, numa linguagem literária cuja verdade não pode ser validada nem invalidada pela ciência empírica. Para muitas pessoas, mais do que uma forma de obter respostas e sentir o cheiro daquilo que está ao lume nessa divisão onde se cozinha o nosso futuro, a astrologia funciona sobretudo como um sistema complexo que obriga o pensamento a desvincular-se de juízos redutores e imbecilizantes. Chega a ser uma forma de prazer, envolvendo uma compreensão matemática, as suas regras, bem como uma gramática e um vocabulário autónomos. À medida que os planetas transitam, entram em signos diferentes, adquirindo significados diferentes. Num determinado contexto, Urano pode indicar morte súbita; noutro, um acesso a uma energia revolucionária. Há uma miríade de combinações que servem para desbloquear a forma como contamos as nossas histórias, sejam elas pessoais ou coletivas. Trata-se, portanto, de um jogo de interpretação que obriga a um descentramento em relação às angústias que nos consomem e a esses pontos de pressão a que somos submetidos na vida quotidiana. É natural, por isso, que esta linguagem tenha seduzido tantos escritores e poetas ao longo dos séculos, e que o laço entre literatura e astrologia, entre outras linguagens para desafiar a imensa fronteira do desconhecido, tenha sempre sido proveitoso.
Um dos primeiros tratados sobre astrologia foi escrito em hexâmetros, Astronomica é um longo poema dividido em cinco livros em que Marco Manílio imitou o estilo de Lucrécio na tentativa de entregar à posteridade o primeiro quadro interpretativo que procura assimilar a influência do circuito zodiacal na vida dos homens. Da vida deste poeta e astrólogo romano do século I d.C. não se conhece praticamente mais nada, e embora não seja citado por nenhum dos grandes autores da era, aquele seu tratado viria a tornar-se o centro das obsessões do poeta inglês A. E. Housman, que publicou, ao longo de 27 anos, uma edição anotada dos cinco livros da Astronomica, o último dos quais em 1930, considerando que era esta a sua magnum opus. O próprio Housman se deu conta de que dificilmente aquela sua obra obscura viria a granjear-lhe um grande reconhecimento entre os seus pares. E até aos nossos dias continua a gerar alguma perplexidade o que o terá levado Housman a deixar de lado os seus estudos à volta de um poeta tão influente como Propércio em favor de Manílio. E é preciso ter em conta que as suas edições e textos críticos de autores clássicos como Juvenal e Lucain ainda hoje são amplamente estudados. Este intrigante desvio levou o mais influente dos críticos literários da época, Edmund Wilson, a sinalizar o seu espanto diante das incontáveis horas que Housman devotou àquele obscuro poeta astrólogo: «Trata-se certamente do espetáculo de uma mente de notável penetração e vigor, de sensibilidade e intensidade invulgares, condenando-se a deveres que a impedem de atingir a sua plenitude». Um outro autor, Harry Eyres, disse que a escolha de Housman poderia ser vista como «um acto de autopunição», mostrando um desdém não menos assombroso ao ver tantos anos dedicados a «um versejador romano menor cujo longo poema didático sobre astrologia deve ser classificado como um dos mais obscuros nos anais da poesia».
Balzac ‘precursor’ de Pessoa
Talvez nunca se venha a saber o que viu Housman de tão potente naquele tratado. De qualquer modo, são inúmeros os exemplos dos escritores e poetas que em algum momento sentiram o apelo do oculto, e em particular dos sistemas astrológicos. Bem antes de Fernando Pessoa o fazer para os seus heterónimos, diz-se que era Balzac quem estabelecia para as personagens da Comédia Humana fichas horoscópicas onde encontrava todas as motivações das suas vidas e o tema dos seus destinos. Não é de estranhar que um homem cujo vício pelo café é não menos que lendário, dizendo-se que chegava a beber 50 chávenas por dia, fazendo um tão grande esforço por ver as horas do dia engolirem as da noite, diante desse prato imenso, se pusesse a encarar a noite como um fruto encaroçado de estrelas, para usar uma expressão de um outro poeta (Paulo Henriques Brito). No fundo, os escritores não são mais do que esses detetives noctívagos, que se servem do impulso e da liberdade que lhes confere o sono e os sonhos dos demais para se lançarem em derivas como se fossem a desenhar um rumo no espaço que fica entre as estrelas, nessa sucessão infinita de correspondências secretas que se deixam ler no breu. É fácil supor que as estrelas se dão conta de tudo quanto se passa na terra. E, desse ponto de vista, não chega a ser assim tão surpreendente que as mentes mais inquisitivas que vão surgindo a cada geração procurem debruçar-se sobre o mapa que elas desenham, como vigilantes que persistem naquela imponente quietude, ruminando as horas. Basta contemplar o mistério dessa luz que persiste anos viajando no espaço e nos dá notícias de estrelas entretanto mortas para sentir um estranho tumulto cá dentro. Não nos causa assim tanta estranheza a faceta de astrólogo de Fernando Pessoa, que entre as suas inúmeros projetos e tentativas de escapar às servidões que a vida nos impõem, chegou a auferir «alguns tostões com a astrologia».
Mais de 1500 mapas astrais
É longo o rasto de documentos no espólio de Pessoa que sinalizam esta obsessão, que a certa altura o viu estabelecer não apenas a sua carta astrológica, mas a de tantos dos seus heterónimos. Entre as suas frustradas ficções que assentavam na ideia de se livrar de preocupações financeiras, em 1915 Pessoa chegou a negociar os termos para inventar no seu drama em gente um astrólogo, que batizou de Raphael Baldaya, tendo ido ao ponto de divisar uma tabela de honorários para as consultas e diferentes serviços que se via a prestar. Segundo os investigadores, no espólio pessoano foram encontrados mapas astrais de mais de 1500 personagens históricas ou contemporâneas. Entre eles, Robespierre, Guilherme II da Alemanha, D. Carlos de Portugal, D. Sebastião, Lord Byron, Sidónio Pais, Salazar, Mussolini, Chopin, Leopoldo II da Bélgica, Victor Hugo, Luís II da Baviera, Afonso XIII de Espanha, Vítor Emanuel III de Itália e Shakespeare. Nalguns casos mostrou um interesse particular, tendo voltado a eles, e feito em alturas diferentes esse cadastro celeste, casos de Napoleão, da Rainha D. Amélia, do escritor Raul Leal, ou do escritor Oscar Wilde. Neste último caso, Pessoa chegou a comentar entre o seu perfil astrológico e o de Wilde. Outro aspeto que ficou conhecido quando Paulo Cardoso editou, com a colaboração de Jerónimo Pizarro, o volume Cartas Astrológicas de Fernando Pessoa (ed. Bertrand, 2011), é o facto de o poeta ter chegado a calcular com grande proximidade o ano da sua morte (1935). Pizarro vincava como Pessoa se mostrou um astrólogo muitíssimo competente, com conhecimentos avançados, passando horas entregue a cálculos matemáticos e interpretações detalhadas, prevendo, entre outras coisas, que ia morrer por volta dos 50 anos. E só terá falhado o mês porque desconhecia o minuto da hora em que nasceu, sendo obrigado a fazer um cálculo aproximado. De resto, terá sido esta incerteza sobre a hora exata do seu nascimento que o levou a aprofundar os seus estudos astrológicos, depois de em 1908 ter encomendado a astrólogos estrangeiros que lhe fizessem o seu mapa natal. Ao dar-se conta de que uma diferença de alguns minutos podia levar a variações diagramáticas significativas a partir do seu signo ascendente, terá sido este o anzol que o puxou, levando-o a aproximações cada vez mais minuciosas às influências do quadro zodiacal. Segundo se apurou, no final da sua vida, quase 5% dos livros da sua biblioteca versavam sobre astrologia e outros ramos esotéricos, sendo que pelo menos 10% do seu imenso espólio contém menções astrológicas diretas, entre eles as centenas de mapas astrais feitos à mão pelo próprio Pessoa. Daquele seu semi-heterónimo astrólogo, sobreviveram os ensaios de dois tratados astrológicos, além do anúncio que Pessoa fez sair num jornal oferecendo os serviços de Raphael Baldaya. De acordo com a biografia de João Gaspar Simões, terá sido ainda na juventude que Pessoa manifestou curiosidade pelo ocultismo, tendo participado ocasionalmente, na casa da tia Anica (Ana Luísa Nogueira de Freitas), de algumas das sessões espíritas que esta acolhia. Em 1915, através de uma encomenda da Livraria Clássica de Lisboa, entramos num período de euforia em relação a estas temáticas. E numa carta à tia espírita, datada de 24 de junho de 1916, Pessoa descreve as capacidades recém-adquiridas: «Aí por fins de março, comecei a ser médium. Imagine! Eu, que (como deve recordar-se) era um elemento atrasador das sessões semiespíritas que fazíamos, comecei, de repente, com a escrita automática”. Na sua correspondência relata ainda uma série de premonições, visões astrais e etéreas. Garante que lhe era possível, na escuridão, ver o magnetismo nas suas mãos, e nos exercícios de escrita automática, predominam os símbolos da Cabala e da Maçonaria. Na carta à tia Anica revela ainda: “Começo a adquirir o que os ocultistas chamam de visão astral, também chamada de visão etherica, tudo isto está muito em princípio, mas não admite dúvidas, é tudo por enquanto muito imperfeito e em certos momentos só, mas esses momentos existem (…) há mais curiosidade do que susto, ainda que haja coisas que às vezes metem um certo respeito, como quando várias vezes olhando para o espelho a minha cara desaparece e surge a face de um homem de barba ou um outro qualquer, são quatro ao todo, assim me parece, já sei bastante das ciências ocultas para reconhecer que estão sendo em mim acordados os sentidos chamados superiores para um fim qualquer”.
A primeira coluna de astrologia
No esforço para compreender a popularidade de que goza atualmente a astrologia, tem sido notado como, em tempos de crise, as pessoas procuram algo em que acreditar, e estando desfasadas de um contexto cultural e de valores que desse sentido à vida, subitamente sentem o arrepio perante o sem sentido de um universo hostil. A primeira coluna de astrologia num jornal foi encomendada em agosto de 1930, no rescaldo do crash da bolsa, para o tabloide britânico Sunday Express. A ocasião era o nascimento da Princesa Margarida. O artigo ‘What the Stars Foretell for the New Princess’ teve tamanho êxito, e provou ser uma distração que trouxe uma nota de leveza num momento tão difícil, que o jornal decidiu fazer daquela uma coluna regular. E assim tem sido desde então, e com cada colapso ou conflito, mais se adensa esta trama de divertimentos distrativos, de frivolidades mais ou menos inconsequentes, com as suas bolsas persistentes de vendedores de banha da cobra. Mas na base desta imensa patranha, está algo de poderoso e genuíno, sendo que a astrologia tem as suas origens na antiga Mesopotâmia, tendo-se espalhado pelo Egipto, Grécia, Império Romano e mundo islâmico. Era um jogo para o qual as pessoas se viravam em momentos de grande incerteza e de tormento, ajudando a ganhar confiança e a procurar algum apoio na hora de assumir decisões que poderiam ter consequências decisivas, e por isso se guiavam por essas sugestões na hora de decidir quando semear a terra e quando ir para a guerra. “A ideia que está no cerne da astrologia é que o padrão de vida de uma pessoa – ou o seu carácter, a sua natureza – corresponde ao padrão planetário no momento do seu nascimento”, escreve o historiador Benson Bobrick no seu livro de 2005, The Fated Sky. “Esta ideia é tão antiga como o mundo é antigo – que todas as coisas têm a marca do momento em que nascem”.
O olhar fixo das estrelas
Talvez não seja mais do que uma ardilosa superstição, mas se o homem criou Deus à sua imagem, não é de estranhar que tenha tentado também conspirar com os astros, obter o seu favor, assumir a vantagem dessa posição distante, essa piedade da sua duração, como certos corpos esplendem no meio do vazio gozando o sentimento de uma eternidade dançante. E mesmo se o crítico de cultura alemão Theodor Adorno, no seu sulfuroso libelo de 1953, ‘As Estrelas Descem à Terra’, se atira à coluna de signos astrológicos de um jornal, argumentando que a astrologia apelava a “pessoas que já não se sentem sujeitos autodeterminantes do seu destino”, há inúmeros exemplos de líderes que buscam consolo nestas formas de superstição. Adorno bem pode zurzir a tendência do homem médio desde meados do século passado para aceitar fórmulas do pensamento mágico que se agarram a sistemas de “opacidade e inescrutabilidade” fascista, mas o certo é que muitos reconhecem como há um valor que se retira em reconhecer essa vulnerabilidade e o facto de, muitas vezes, não sermos os agentes do nosso próprio destino, abrindo margem a um reconhecimento de que tantas vezes as nossas vidas são governadas por forças e circunstâncias fora do nosso controlo. Como sabemos que os nossos códigos genéticos nos predispõem a certas doenças e que o escalão de rendimentos em que nascemos pode determinar o nosso futuro, chega a ser reconfortante saber que Theodore Roosevelt mantinha o seu mapa astral numa mesa da sua sala de estar, que Charles de Gaulle e François Mitterrand consultavam regularmente astrólogos. Ou que, de acordo com o chefe de gabinete de Ronald Reagan, este consultava um astrólogo antes de “praticamente todos os movimentos e decisões importantes”, incluindo o momento do anúncio da sua reeleição, as ações militares em Granada e na Líbia e as negociações de desarmamento com Mikhail Gorbachev. Esta relação supersticiosa com os elementos do zodíaco serve-nos, afinal, como uma perspetiva dos homens a partir desse olhar fixo das estrelas, do seu silêncio, e podendo o Céu ser encarado como o terreno baldio da Terra, é natural que nos momentos de maior intranquilidade contemplemos a nossa própria trajetória entre a infinidade dos astros, esperando captar algum sinal. Às vezes este exercício serve-nos de alento, outras vezes, como diz Lêdo Ivo, é uma forma de distração, de não aderirmos ao que nos maça ou esmaga: “E assim se passam as nossas vidas, até a morte, quando os dejetos de nossas almas são lançados na eternidade e poluem as galáxias”.