Neste balanço, há ainda a referir outros problemas, para além daqueles relativos ao acesso aos cuidados de saúde, que foram descritos no artigo anterior.
Os investimentos feitos no SNS, nos últimos 8 anos de governação socialista, para a expansão de instalações, como de novos hospitais e de centos de saúde, e para a aquisição de equipamentos, como TAC’s e ressonâncias magnéticas, situaram-se a níveis muito baixos.
Com efeito, os orçamentos das despesas de investimento tiveram taxas de execução inferiores aquelas que se verificaram no período da troika. As taxas de execução entre 2015 e 2022 são as seguintes: 2015=69%; 2016=55%; 2017=43%; 2018=47%; 2019=49%; 2020=61%; 2021=103% e 2022=45% (UTAO, OE, CGE, DGO). Ou seja, neste período, as taxas de execução foram sempre inferiores ao orçamentado, salvo em 2021, e em muitos anos o investimento realizado foi metade ou menos de metade do investimento previsto. Mesmo no ano que agora findou, de jan. a nov., a taxa de execução foi de apenas 34% (Síntese da execução orçamental – DGO-Dez. 2023)
Estes cortes no investimento deveram-se à politica das cativações impostas pelo ministro das Finanças que subordinaram as necessidades de um setor vital para a população, como a saúde, à diminuição do défice público e traduziram-se pela limitação na construção de novas instalações (no caso dos hospitais não foi posto em serviço um único, no SNS, nestes 8 anos de governos socialistas) e pela dificuldade na aquisição de equipamentos, como por exemplo, na imagiologia (TAC’s, ressonâncias magnéticas etc.).
A gestão dos recursos humanos foi outra das áreas em que, nos últimos 8 anos, se agravaram os problemas.
Não houve planeamento das necessidades de recursos humanos no SNS, quer na antecipação do número de reformas dos profissionais mais idosos, que era previsível (em especial dos médicos que iniciaram a sua carreira nos fins da década de 70 e inicio de 80) quer na previsão da necessidade de recrutamento de novos profissionais (em particular de médicos).
A par desta falta de planeamento, não foram criadas as condições para atrair e reter, no SNS, os novos profissionais, em termos de remuneração e expectativas de carreira, em especial dos jovens médicos.
Estes aspetos, conjugados com a recusa dos médicos em efetuarem horas extraordinárias, estão também na origem dos gravíssimos problemas a que hoje assistimos nas urgências dos hospitais e que referi no artigo anterior.
A este respeito, e para justificar a situação a que chegámos, existe a ‘narrativa’ de que o país não dispõe de médicos suficientes porque a formação é insuficiente devido ao numerus clausus no ingresso nas faculdades de medicina.
Ora esta ‘narrativa’ não resiste à realidade dos factos. Segundo a OCDE (‘Health at Glance’ 2021) Portugal, de entre os 38 países, é o 3.º com mais médicos por 1.000 habitantes e a formação de médicos é 17% superior à média da OCDE. A nível mundial, Portugal é o 8.º país com mais médicos por 1.000 habitantes (World Factbook-Jan. 2020)
Com efeito, não há falta de médicos em Portugal. O que se passa é que, estão, cada vez menos, no SNS, por falta de condições de atratividade (de remuneração, de expectativas de carreira, e por um ambiente de trabalho desorganizado) escolhendo, cada vez mais, o setor privado da saúde ou a emigração.
A gestão global do SNS, ou seja, a gestão das pessoas, dos ativos físicos e instalações e dos meios financeiros, continua a ser a principal causa da ineficiência e incapacidade de resposta às necessidades da população, em especial nos hospitais e nos CSP (centros de saúde) não convertidos em USF’s Unidades de Saúde Familiar.
Com exceção das USF’s, de tipo B, em que existe a contratualização dos cuidados a prestar à população, com equipes de profissionais, com remunerações ligadas ao cumprimento de objetivos, a gestão dos RH, nos hospitais e CSP, continuou, ao longo destes últimos anos, a ser burocrática, sem o reconhecimento do desempenho individual e recompensa por mérito e com influência partidária na nomeação de cargos de chefia.
A gestão do SNS foi também limitada politicamente pela ação do Ministério das Finanças (MF), não só na imposição de cativações aos orçamentos da saúde, como atrás referi, como também pela forte diminuição da autonomia das unidades do SNS, em especial dos hospitais, que se viram privados de poder contratar novos profissionais, por vezes em número diminuto, sem autorização do MF o que, em regra, demorava largos meses a ser concedida.
A criação da Direção Executiva (DE), em finais de 2022, veio alterar a forma de gerir globalmente o SNS.
Há anos que, em artigos e colaboração em livros publicados, tenho vindo a defender a criação de um Instituto público, com a nomeação de um Presidente Executivo (CEO na terminologia inglesa) responsável pela gestão global do SNS.
De facto uma ‘máquina’ tão extensa e com recursos humanos (cerca de 151.000 pessoas) e meios financeiros (14 mil milhões no orçamento para 2023) tão vastos, exige uma gestão profissional que contribua para a definição do rumo estratégico a seguir, a decidir pelo poder politico, e que tenha a capacidade operacional de introduzir, no concreto, as mudanças necessárias e de combater a ineficiência do SNS.
Contudo, este CEO não conseguirá cumprir a sua missão sem ter a capacidade, a autonomia, e o poder para gerir todos os recursos humanos, financeiros e físicos do SNS, o que até agora não é evidente dados os poderes também atribuídos a outros órgãos da estrutura central do Ministério das Finanças, como a ACSS – Administração Central do Sistema de Saúde e a SPMS – Serviços Partilhados do Ministério da Saúde que podem conflituar com a ação do CEO. Sem a atribuição clara de poderes ao CEO sobre os recursos humanos, financeiros e físicos, a sua atuação será sempre limitada e potencialmente ineficaz.
Mesmo reconhecendo, como positiva, a criação da DE do SNS, tal não significa que este órgão esteja a apontar a estratégia certa quanto à evolução e futuro do SNS.
A decisão recente de alargar a todo o território nacional as ULS’s – Unidades Locais de Saúde, com a criação de 31 destas novas unidades, com início de atividade em 2024 e que é apresentada como a grande reforma do SNS constitui, a meu ver, um erro estratégico que o país (ou seja toda a população) pagará mais tarde pelas razões apontadas no meu extenso artigo recentemente publicado, a este respeito, e que, em síntese, enumero de seguida:
1.ª. A estratégia para a reforma estrutural da Saúde (que venho defendendo há anos), e que é decisiva para ultrapassar a incapacidade de resposta às necessidades da população, passa pela evolução do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para o conceito de Sistema Nacional de Saúde onde coexistam as iniciativas pública, privada e social através da contratualização pelo Estado de cuidados de saúde para a população às iniciativas privada e social. Esta contratualização deu já excelentes resultados (melhor qualidade e atendimento para a população e economias de centenas de milhões de euros para o Estado) nos Hospitais públicos em PPP’s – Parcerias Público Privadas, como está plenamente comprovado, por entidades oficiais, como o Tribunal de Contas (TC) e a ERS-Entidade Reguladora da Saúde.
Ora, a verticalização imposta pelas ULS’s integrando, nestas unidades, os hospitais e centros de saúde, de uma dada área ou território, impossibilita, na prática, a contratualização de cuidados de saúde às iniciativas privada e social e, por isso, a adoção daquela estratégia fundamental para o país.
2.ª. Os centros de saúde devem ser a ‘porta de entrada’ no sistema de saúde e o seu foco deve estar na promoção da saúde, na prevenção da doença e no acompanhamento próximo pelos médicos de família dos doentes, em especial, os crónicos, e no seu tratamento.
Ora, as ULS’s colocam os centros de saúde sob a influência (e dependentes das necessidades de gestão) dos hospitais, numa lógica de funcionamento de comando e controle, comprometendo a sua autonomia e afastando-os do seu foco fundamental.
3.ª. É fundamental a integração dos cuidados de saúde primários e cuidados hospitalares, em benefício do utente, mas não tem que ser feita por via da verticalização daqueles cuidados numa estrutura única: as ULS’s. Os centros de saúde deverão estar numa relação ‘cliente-prestador de serviços’ com os hospitais, e não sujeitos a uma relação subordinada de gestão.
4.ª. A integração dos cuidados primários e hospitalares é feita nos sistemas de saúde europeus sem que existam estruturas verticais, como as ULS’s. Aliás, no NHS-National Health Service inglês, do qual retirámos o modelo para o nosso SNS, os cuidados primários assentam em profissionais, independentes, contratualizados: os ‘general practitioners’, não se colocando, sequer, a questão da integração de cuidados através de estruturas verticais.
5.ª. A integração dos cuidados primários e dos cuidados hospitalares pode e deve ser feita através do Processo Clínico Eletrónico que dê acesso aos médicos, quer dos centros de saúde quer dos hospitais, de toda a informação necessária sobre o doente.
6.ª. Dois estudos, um de Fev. de 2015 da ERS-Entidade Reguladora da Saúde e outro de 2018, respeitante a 5 ULS’s já existentes no período de 2015 a 2018, não comprovam as vantagens desta via de integração de cuidados, retirando a sustentação a esta opção.