Pode ser que um dia os relatos deste tempo que vivemos, aqueles que em razão do seu encanto consigam perdurar, venham a ser lidos pelos leitores futuros, desses já sem ingenuidade nenhuma em relação ao devir histórico, como histórias de fantasmas. Há algo como um resíduo espectral em tudo aquilo que nos anima, sendo que a vertigem que nos persegue nos melhores textos que vão aparecendo se liga a uma ferocidade própria de seres que parecem encurralados numa realidade desoladora e amesquinhante, figuras que entram num confronto de tal ordem com o ambiente ao seu redor que alguns dos seus gestos e palavras assumem uma irrealidade tão extensa que produz em nós uma perturbação extraordinária.
Perante os desafios deste tempo, há uma solidão muito particular que se sente naqueles que acabam por escrever como se a este tivessem sido condenados, como se a literatura fosse o refúgio onde se abrigam aqueles que procuram extrair-se ao ruído do tempo, às suas desgostantes futilidades. E esses não cessam de se questionar onde ficaram os outros, aqueles que se tinham comprometido a vir cá ter, onde está essa humanidade envergonhada de ceder ao medo, à chantagem?
Enquanto corremos atrás desses fantasmas pelos corredores de um labirinto cada vez mais denso, até nos darmos conta de que somos nós próprios quem o alimenta com as nossas angústias e fadigas, acabamos por nos aperceber também de que a nossa espécie se terá perdido, deixando de ser possível. Se antes a situávamos algures entre os ratos e os anjos, hoje, essa hibridez começa a já não se dar. Temos uma coisa ou a outra, e sobretudo chegámos àquele momento em que os que passam por anjos são afinal uns ratos, e vice-versa. O escritor, no entanto, parece restar à margem da sociedade e da história, como um excedente da espécie humana, encurralado pela sua consciência aguda da contingência de tudo quanto o cerca, reduzido ao aborrecimento de viver enquanto conspira contra essa mesma vida, estando cativo desses arrepios que percorrem uma linguagem abandonada.
Os melhores escritores trazem com eles um certo fedor a inteligência como se pode ter um fedor a suor, notava Sartre. E sabemos bem como a inteligência cheira mal, tornando-se intolerável, sobretudo em tempos mais estúpidos. Faz parte da natureza dos que deixam a cabeça ser consumida pelo vespeiro das palavras fazerem um esforço para dirigir todo esse fragor, e por isso se dedicam a analisar tudo; querendo sempre entender o porquê e o como, acabam por desenvolver um espírito crítico e destruidor por mero vício. Essa é a miséria deles. Há um lado mítico nesta figura, e “toda a gente conhece os seus ares perseguidos, os seus monólogos sobre o destino, sobre o tempo, sobre a vida, pedaços escolhidos de uma antologia perpétua e suplicante” (Sartre).
Não conseguimos deixar de admirar-lhe essa loucura a que se foi entregando com cada frase, com as tantas horas de volta de uma substância tão incerta, em derivas que o levavam cada vez mais longe, ao ponto de um dia estar perdido no meio de si mesmo “como um Robinson numa ilha deserta”. As outras pessoas vão e vêm no seu pequeno museu pessoal, mas ele atravessou a sua consciência demasiadas vezes e perdeu o contacto com aquela integridade universal, esse conjunto de pressupostos e de pretensas evidências pelas quais os outros se guiam. Ele exilou-se no que há de fundamental, e este foi o preço que pagou “para ver a luz do dia como uma totalidade particular”, ao ponto de ser capaz de se inventar a si mesmo, bem como às suas interrogações e aos meios que lhe permitem dar-lhes respostas.
Foi-se distanciando timidamente, até que se deu conta de que tinha apagado tudo o que havia herdado para recomeçar o mais perto possível do zero, e, procurando inventar a cada instante a bastardia, foi isto o que lhe permitiu escrever enfim uma página absolutamente radical. Acabará por recusar servir-se de alguma escada ou trampolim a não ser ele próprio, voltando-se sobre si, aproveitando as mil pregas da consciência, os mil anéis da reflexão para, roçando em si mesmo, sentir realmente, ver mais longe, mais fundo, fazer eclodir uma voz. Mas aqui ainda há o problema daquilo a que hoje se convencionou tomar e prestigiar enquanto literatura, sendo que a maioria desses livros cercados de uma adulação estéril estão em linha com essa mesma desordem palradora, e não produzem mais do que bibelots de inanidade sonora. São, na sua larga maioria, livros mortos e que se prestam a esse incessante regime das exéquias fúnebres…
“Gostamos de passear entre os túmulos da literatura, esse calmo cemitério, decifrar os epitáfios e ressuscitar por momentos significações eternas”, diz-nos Sarte. Ora, o problema é que há longos períodos em que só se aceita o destempero e o escândalo como uma herança se estiver já contida, liofilizada, se não for algo que possa subitamente pôr-se de novo a caminho arrastando-nos para um futuro desconhecido. Quanto aos poetas, sabemos bem como são capazes de se enredar nesses combinados de migalhas, entretendo-se a enfraquecer tanto a matéria como o espírito, desluzindo todas as suas convicções com aquilo que é mais supérfluo, deixando-se expulsar da vida enquanto julgam enfrentar a sua face, os seus aspectos mais dolorosos e rudes, entregando-se a uma ironia e a um escapismo sarcástico tão recomplicados que a vida os expulsa, pendurando-os junto aos portões, nessas gaiolas de baba lírica. “Quanto aos romancistas que não têm ainda a felicidade de estar enterrados, fazem-se mortos”, diz-nos Sartre: “vão buscar as palavras ao viveiro, matam-nas, abrem-nas, esvaziam-nas, amanham-nas e servem-no-las em sangue, no forno ou grelhadas.”
Nestes últimos tempos, e com os balanços e saldos do fim de ano ainda em perspectiva, é curioso notar como apareceram entre nós dois livros notáveis, estranhamente próximos, como que gerindo entre si um eco de devastadoras consequências, dois livros que conseguem dar cabo daquela suspeita de que nenhum enfrentamento decisivo tem ocorrido no espaço literário, suspeita essa que vai sendo alimentada precisamente por aqueles que já não se sentem capazes de gestos peremptórios, de criações tumultuosas, e que procuram convencer os outros de que a repugnância que sentem por si mesmos, pela sua fraqueza e esterilidade, serve para um diagnóstico com um alcance mais geral. Citando Lobo Antunes em tempos que já lá vão, “são os impotentes que se queixam de que neste país só se faz merda e que quando aparece alguém que não faz merda desatam a rosnar de fúria e de ciúme diante da tesão alheia por sentirem o trapo murcho nas ceroulas, por não serem capazes, por não serem definitivamente capazes de enconar a vida.”
Em País Rato, Jorge Roque serve-nos veneno como uma droga pura, sem a cortar com nenhuma outra substância, serve-nos uma demolição de qualquer ilusão moral que reste a este sítio onde nos achamos a cumprir pena, sendo a prisão a companhia que nos fazemos uns aos outros. E este é mais uma sessão de um longo ajuste de contas em que o autor se coloca numa posição destacada como o mais sanhoso dos herdeiros da nossa tradição abjeccionista, alguém que aproveita o que ainda lhe resta do coração para arrancar ao fundo de um sentimento avassalador de injustiça e de ódio diante da profunda degradação social e cultural do país e assim expelir um rol de acusações que não pode deixar de ser lido como uma tentativa de figurar um corpo imenso e sová-lo de todos os ângulos possíveis.
Empenhado há muito num empreendimento em que as palavras se vão combinando para engrenar um ritmo colérico, parece que Jorge Roque se vai desfazendo com cada desabafo, e as palavras surgem em relações oscilantes do passado, do presente e em direcção ao futuro, como se congeminasse uma espécie de maldição. É mais outro volume bastante magro, com oito textos de dimensões variáveis, numa obra que se constrói toda ela como um fulminante post-scriptum à literatura portuguesa, de tal modo que é a destruição mesma o que a cria, o que determina irreversivelmente o sentido desta escrita, a de um homem que pouco a pouco se transforma nesse ser letal para as ilusões que vão carregando ainda esta língua no inferno que há muito vinha adivinhando, mas ao qual não soube escapar.
“O que quer que cresça, mal desponta, é roído pelos ratos”, diz-nos logo no primeiro texto. E no segundo adianta: “Isto não muda. Tem, aliás, por único desígnio não mudar.” Roque fala-nos deste “recanto onde a vida tem o sabor de mais um dia enganado”, onde “cidadãos anónimos trabalham e pegam as contas, e votam quando é suposto para confirmar a liberdade que lhes pertence na condição de não a praticarem”. Fala-nos de um deserto que se entranha com toda a sua aridez na alma, de vidas sem sentido nem eco, perdidas para um enredo que persiste apenas no sentido de nos abraçar e digerir sem que nos cheguemos a libertar da esperança, para que a carne não fique demasiado tensa, mas se ofereça tenra a quem dela se alimentar.
“Que poderá haver para acreditar num país que atravessou todos os regimes e permaneceu feudal na ordem económica e social, estreito na ambição mental, avaro no reconhecimento da grandeza e, mau grado afectuoso e queridinho, subterraneamente implacável no extermínio da diferença de quantos por excepção o ultrapassam e seriam os únicos que lhe poderiam trazer o que precisamente lhe falta.”
Os textos parecem organizar-se a partir de uma cadência que encontra um osso inteiro nesse ódio que se respira como um pó quando entram em cena alguns portugueses numa dessas anedotas desesperadas. Roque encontra um osso e recompõe a partir desse vestígio minúsculo toda a estrutura e a razão que animou o ódio no espírito de todos os que entre nós não são apenas restos, mas homens inteiros, e, depois dessa arqueologia toda e que chega até ao presente, dá-se conta de que essa criatura é ele mesmo. E a desolação de Roque diz-nos respeito a todos, pois ele desfaz-se em palavras e deixa que vejamos como o seu organismo é todo ele uma composição que serve a esta tenebrosa constatação de que ou nos livramos deste país ou ele é a doença que nos domina e, por fim, nos mata. Porque o problema que se coloca entre nós, como lembrava Jorge de Sena, “não é salvar Portugal, mas salvar-mo-nos de Portugal”.
Jorge Roque leva-nos até às entranhas desta consciência, e da reciprocidade odiosa que sentimos por este país. Com a sua prosa austera, num registo frio, quase modesto mas encarniçado, o autor vai-nos expondo aos sinais desses massacres particulares que somos levados a considerar que nos separam uns dos outros. Roque consegue desvelar um enredo carcerário e esgotante, sem recair em excessos, dominando a sua linguagem tão expressiva quanto dolorosa, empírica, fazendo apelo a uma consciência comum. E se sentimos a sua febre gelada nas nossas mãos, se ele nos contamina e se dirige directa e intimamente a cada leitor, é que ele é atravessado de uma ponta à outra por este desgosto imenso que está em cada um de nós semeado, contido com grande custo, ligado a um sentimento de insuficiência e culpa, pelo receio de que se o envergarmos logo nos destacaríamos dos outros como alvos preferenciais a abater.
Incapazes de estabelecer essas relações recíprocas, a obra de Roque dirige-se-nos num tom simultaneamente próximo e frio, radical e modesto, vago e rigoroso, banal e inimitável. É um livro que explica para cada um de nós a nossa derrota pessoal e a expõe, deste modo, como o verdadeiro traço comum que nos identifica como portugueses. “E a escolha é entre fuçar para ascender à elite abjecta dos espertos ou, recusando-a, engrossar a legião impotente dos parvos. Uns e outros felizes, furiosos, sucedidos, revoltados, generais da sua derrota ou príncipes da vitória inexistente, trazendo no bolso, inteiro ou rasgado, o fatídico cartão de cidadão.”
Roque vem com as mãos desfeitas e nas palmas exibe cada um dos pregos do caixão com esse recorte quadrangular onde cabem todos esses mitos viciosos de “um país em que cada cidadão é turista, apenas reconhecendo por pátria a existência individual, nunca a colectiva”.
É um livro desagradável da primeira à última linha, um livro que nos diz o que já sabemos, mas tudo de uma vez, e melhor: “País de eufemismo onde as pessoas são eufemismos de si mesmas e a vida diminutivo que se usa para não parecer mal. Aqui rareia a palavra clara e a violência franca, tudo é um pouco mais complicado do que o amor ou o ódio, a ternura ou a raiva, o sim ou o não. Tudo é um pouco mais cobarde, quer dizer, gentil e perverso, reverente e sórdido.”
Chega a parecer uma antologia dos urros reprimidos ou não um pouco por todo este país de limbos e repartições que nos fazem sentir prisioneiros uns com os outros, uns dentro dos outros, os gritos sem ar dos que se deparam diariamente com esse absurdo atordoante dos entraves constantes deste enredo intestinal que nos vai destroçando aos poucos. “Bem-vindo ao país da morte em vida” é o título de um texto, frase que se vai repetindo ao longo das oito páginas que ocupa como um implacável refrão. “Bem-vindo ao país da morte em vida. Repito-me, é claro que me repito, que outra coisa poderia fazer, sou português, por mais que o não queira, por mais que o não seja para lá da circunstância de me ter calhado sê-lo, uma história vulgar que culmina neste cidadão sentado à mesa de olhos postos no telejornal (…) Bem-vindo ao país da morte em vida. Estás fodido e eu também, pronto, é isto, não adianta refugiarmo-nos em palavreios (…) de pouco te valem estas rebeldias, ainda para mais literárias, não são elas que te aliviam a pena na pátria penitenciária, sem acusação, nem defesa, tribunal ou lei, num processo cujo trâmite é o sucessivo adiamento. Bem-vindo ao país da morte em vida. Aconteceu-te existires aqui, agora nada te livra deste azar, uma vida passa rápido, mais rápido do que o tempo de a pensar, começaste mal, percebeste-o tarde, é o suficiente para a doença se entranhar e não te restar senão viver a álcoois, comprimidos, fugas, precipícios, empates com sabor a vitória, vitórias que são apenas derrotas, e tu na fotografia a sorrir, como se não fosse tua a cara nela chapada. Bem-vindo ao país da morte em vida. Julgo que não é preciso dizer mais nada, pira-te enquanto podes, a sete pés, setecentos, todos os de que fores capaz, pira-te de vez, sem olhares para trás, sem olhares para a frente, haja ou não haja frente, exila-te, fora ou dentro, guardando sempre a máxima distância, irreconciliável distância, sem nunca esqueceres a aversão, o repúdio, o asco, tudo quanto te afasta irredutivelmente daqui.”
Este é um veneno para a própria esperança, para todo este percurso armadilhado que nos faz persistir encadeando umas miragens nas outras. E o que vai ficando claro da leitura destes textos é como está aí para ser assumido por nós o valor de se entregar à derrota, nas linhas daquilo que reclamava Pasolini: “Penso que é necessário educar as novas gerações para o valor da derrota. A lidar com ela. Na humanidade que dela emerge. Na construção de uma identidade capaz de perceber uma comunidade de destino, na qual é possível falhar e recomeçar sem afectar a coragem e a dignidade. Em não ser um alpinista social, em não pisar o corpo dos outros para chegar primeiro. Neste mundo de vencedores vulgares e desonestos, de fazedores falsos e oportunistas, de eminências que ocupam o poder, que escamoteiam o presente e nem se fala do futuro, de todos aqueles que têm a neurose do sucesso, da fama, de se alcançar uma posição. Perante esta antropologia do vencedor, prefiro de longe o perdedor”.
Ora, da leitura da obra de Jorge Roque pode retirar-se uma noção desse imprevisto lucro que se alcança ao fazer de morto, levar o seu tempo a retomar o fôlego e depois levantar-se, tendo reconhecido como este país fez de nós todos um bando de cadáveres empilhado. Então poderemos por fim abandonar a pilha dos mortos e recomeçar tudo, inventando uma esperança morta para começar aos poucos a viver de acordo com as nossas condições. De outro modo, continuaremos prisioneiros, tentando trepar essa montanha “de vidas entorpecidas na regular existência cabisbaixa”.
O outro livro que vem exigir de nós um confronto também se assemelha a este em tantos aspectos, mas desde logo importa ressalvar que em ambos os casos o que encontramos ainda não é ou já deixou de ser a imbecil da poesia de que nos cevam, essa que há muito se foi juntar aos tantos modos de fazer um sentido que ritma as conveniências e a bem pensância de que vivemos cercados. Se Jorge Roque denuncia um “povo de indolentes que fazem do verbo um expediente para a apatia”, em Canto do Aumento, às tantas, Andreia C. Faria reconhece como à nossa volta, e neste tempo, “é tão grande e sedutor todo este mal que quase sempre o que passa por denúncia é apenas a luxúria de contá-lo”.
Assim, assume-se claramente o perigo de recair no “fácil pessimismo apocalíptico de tantos desses maestros da retórica actuais, que se comprazem em anunciar continuamente desastres” (Claudio Magris) e em proclamar que a vida não é mais que um vazio construído por uma sucessão de equívocos que permite depois criar situações de absoluto horror. No confronto que esta poeta empreende, o seu esforço passa para por rasgar o pescoço a uma série de lugares-comuns, desvirtuar noções facilitistas, como se procurasse uma densidade analítica por meio de um raríssimo vigor em que a composição ensaística se organiza através de fragmentos com um impulso e um rasgo extraordinários, e que ficam a dever-se a essa desenvoltura poética, à capacidade de nos seduzir e sobressaltar, deixando-nos sem protecção face aos seus movimentos. Vamos escorregando, sendo puxados, com textos que descem como se ao fundo de um poço, como se nos forçassem a encarar a realidade a partir de um lugar onde o tempo se suspendesse, onde a própria gravidade se alterasse, “como numa paisagem submarina, onde todas as coisas têm um aspecto vacilante, oscilam, irreais e precisas, como objectos de pesadelo, incham, tomam proporções estranhas” (Nathalie Sarraute).
Não há aqui grandes actos preparatórios, demorados preliminares, o livro não precisa de tomar balanço. Desde o arranque e com cada página que se segue, sentimo-nos conduzidos de forma delicada mas firme, sem esforço, mas arrastados, sem capacidade de opor resistência a um registo que mistura um sentido de urgência a uma capacidade de produzir imagens e sensações absurdamente cativantes. “Como esses rios espalhados pelo Éden, rios de que nunca alguém viu a nascente, como esse manar incerto entre o sonho e a memória, a pura imaginação corpórea desses rios que Deus ou o poeta fizeram confluir com o concreto rio Tigre, o manifesto rio Eufrates, assim o mundo nos encontra – grandes massas insustidas, vagando pelas grandes extensões da terra, sem saber de que lado da realidade. Sem saber de que lado da noite, como quando éramos crianças e a mãe apagava a luz. Com a leveza indistinta dos sonhos. A penumbra alcança os quatro cantos da nossa condição.”
Neste caso estamos diante de um livro que reúne três ensaios cuja complexidade se alia a uma subtileza e sensibilidade que não simula um tom afectado e sabedor, nem nos molesta o juízo com aquele registo dos taciturnos pregadores da era das trevas contemporânea. Os sinais mais devastadores chegam aqui a ser desvelados sem particular ênfase, e em vez de vir em tom aleivoso largar napalm entre cada constatação mais tormentosa, a poeta parece muito consciente de que qualquer análise mais inusitada abre margem a momentos de esplendor, e que não é preciso forçar nada. Basta fazer um esforço por acompanhar a realidade, que nunca é inerte, e que por isso se furta a juízos demasiado severos. Esta está sempre a modificar-se, e os que a apreciam, em vez de procurarem capturá-la em fórmulas estáticas, acabam também por entrar eles próprios numa metamorfose ágil, dando-se conta de que o mesmo princípio os guia na criação, uma vez que toda ela surge da luta de uma forma em potência contra uma forma imitada.
Logo no início Andreia C. Faria situa-nos dizendo que “estamos na margem ilusória da abundância (…) do lado errado do desejo, consumindo com emoção apocalíptica, mas consagrando o gosto ao minimal para que a alma tenha ainda por onde se salvar”. Pouco depois vai buscar à infância o efeito de perturbação diante dos velhos mendigos, esses seres que acabam por nos comover à medida que nos vamos libertando de todos os estigmas sociais para sermos capazes de ler a integridade da recusa que eles significam, sobretudo agora que “começamos a saber que em breve o mundo será um lugar pobre, árido, descarnado, e também nós começamos a sê-lo, também nós estimamos a dificuldade do que aí vem”.
É preciso um certo nível de educação que começa a ser rara para ser capaz de interpretar esse heroísmo dos anjos que andam por aí tratados como ratos. Num tempo em que proliferam os gurus e os profetas patarecos, todos esses falsos “espíritos libertos” que nos contemplam do alto da sua salvação, à medida que nos afeiçoamos ao ritmo da catástrofe, começamos a sentir-nos degradados diante da impostura daqueles que ocupam os lugares de evidência no nosso espaço mediático, e, como assinala Cioran, após tanta fraude e impostura, é reconfortante contemplar um mendigo. “Ele, ao menos, não mente aos outros nem a si próprio: a sua doutrina, se é que a tem, encarna-a; não gosta do trabalho e demonstra-o; como nada deseja possuir, cultiva o seu despojamento, condição da sua liberdade. O seu pensamento resolve-se no seu ser, e o seu ser no seu pensamento. Falta-lhe tudo, é ele próprio, dura: viver imediatamente a eternidade é viver apenas um dia de cada vez. Por isso, para ele, os outros são presa da ilusão. Se depende deles, vinga-se observando-os, especialista que é do reverso dos sentimentos ‘nobres’. A sua preguiça, de uma qualidade muito rara, faz dele um ser verdadeiramente ‘liberto’, perdido num mundo de gente tola e iludida. Sabe mais sobre a renúncia do que a maior parte das vossas obras esotéricas. Para vos convencerdes disso, basta sairdes à rua… Mas não! Preferis os textos que pregam a mendicidade. Como nenhuma consequência prática acompanha as vossas libertações, não é de admirar que o último dos mendigos valha mais do que vós.”
Faria nunca iria tão longe, e se as suas aberturas pouco devem à radicalidade, é com a intuição que vai recosendo o seu fôlego, e percebe-se como a sua escrita é apurada através de uma lenta fermentação, e como a superfície textual é uma pele exibindo sucessivas cicatrizações, como um ser que abre as mesmas feridas uma e outra vez e provoca em si mesmo uma metamorfose intimamente dolorosa mas que lhe permite absorver o mundo com uma espécie de fascínio traumático.
Aqui é assumida a condição de uma pobreza carregada no sangue (“sou filha de pobres, neta de pobres, vinda de um longo abraço de pobres, mas a mim nunca nada me faltou e posso por isso usá-la, como se acabasse de descobri-la, essa palavra extrema”), e mesmo se o tal período de abundância permitiu ganhar folga suficiente para pôr um garrote no que poderia ser um complexo, esta confissão sugere uma inversão da nobreza, sem chegar, contudo, ao ponto de argumentar a favor de uma reversão diabólica. “Sim, estamos cercados pela necromancia da finança, a obscura passagem do dinheiro entre esclavagistas mortos e artistas vivos, estamos excluídos da boa casta e da cripta bafienta das heranças, temos de trabalhar sem outro propósito além de pagar as contas e essa exigência torna amorfa a nossa raiva”…
No fundo, a lucidez e a pregnância do ensaio que abre o livro e lhe dá o nome está ligada à autora não se excluir nem procurar isentar-se do alcance do próprio quadro que traça. E deve assinalar-se também o facto de o regime de autópsia de País Rato prosseguir aqui em termos em tudo semelhantes, como se não nos restasse senão reconhecer que tudo aquilo a que insistem em chamar vida não passa de revulsão num organismo em avançado estado de decomposição: “Ouvir morrer um país calado, ouvir morrer pela língua que já ninguém fala essa ideia absurda de um país. A velha frota apodrecida, as velhas formas de a manter à tona, quer dizer, pagar impostos num país que apodreceu. Ser posta ao serviço, existir para turista ver, ser dita nos termos de activistas ou burocratas, no horário em que o jornal da noite inventa uma comunidade. Não há comunidade, só empobrecer é um movimento colectivo.”
Há uma impiedade tal nestes pronunciamentos que hoje se alargam a todos os autores que mais vigorosamente têm impedido a língua de se entregar a um mero estertor e que, caso não haja um esforço político sério de procurar acolher e atenuar esta malevolência, nos diz que estão enganados todos aqueles que imaginam que algum país possa sobreviver moral e animicamente a um tão corrosivo retrato, sendo que em breve ninguém quererá sentir-se português, e qualquer um que aqui nasça apenas secundará Fernando Pessoa quando este largou aos coices desde as cavalariças do estuporado génio de Álvaro de Campos ao dirigir-se a este “Portugal-centavos, resto de Monarquia a apodrecer República extrema-unção-enxovalho da Desgraça”.
Estamos muito longe dos ecos das efemérides glosadas em tom épico nas colunas dos jornais, e se do passado resiste ainda alguma daquela alacridade ingénua entre as múmias patrioteiras e alguma delas repete que este é um país de poetas, está na altura de corrigi-las lembrando que no último século este país não foi outra coisa senão um saco de pancada dos poetas.
Nos seus movimentos, e através de um poder de restrição e reserva, estes ensaios poéticos de Andreia C Faria vão originando uma força vitalista, provocando-nos a não nos imobilizarmos na certeza do nada, nas fórmulas desencantadas e cínicas. É um livro que faz apelo ao poder indefinido da expansão, da capacidade de estabelecer associações que tudo contaminam, que não deixam nada intocado. Eis também, por fim, um livro vivo que ressalta numa colecção composta quase inteiramente de pilhagens e numa desconsideração bastante sintomática em relação ao meio editorial envolvente, sendo as edições Sr. Teste uma marca decisivamente inscrita nos modelos de oportunismo deste tempo, parasitando o esforço de tantos editores que, com outro cuidado e empenho, publicaram os mesmos autores, às vezes até os mesmos textos, mas também num desrespeito muitas vezes pelos autores, que se vêem sofrível e apressadamente traduzidos, paginados, apenas para garantir um lucro imediato. E, finalmente, por alguns leitores incautos, se bem que, com o passar do tempo, deve assinalar-se como estes acabam por ser coniventes com este modelo, interessados apenas em entreter o seu fetiche literato, deixando-se espelhar agradadamente neste esquema de contrafacção e sacanice.
Feita esta ressalva, e mesmo assinalando a incoerência entre o que lemos, com a defesa de um despojamento, e depois o enredo de crapulices que sustenta objectos como este, podemos levar tudo isto ainda como balanço para esta fraqueza tão mais dolorosa pela consciência aguda que de si mesma. São outros modos de sorrir e acatar as limitações que alguns impõem sobre si e depois o passam adiante enquanto despesas da época. “Toda a inocência da banalidade. O nosso crime tornado paródia, já se sabe, por efeito da repetição”, como se refere a certa altura.
Porque dos poetas, de alguns que talvez tenham chegado demasiado tarde e a que só resta gozar os fins da festa, não seria de esperar que por meio de artifícios da razão se pudesse ainda encontrar aquela força de ilusão para irmos à procura de outra vida, de uma vida nova. Se hoje tão poucos se consideram imunes às atracções deste mundo “que assedia os meus sentidos, que os satura até à febre, esse mundo narcótico, artificial, que chia agora até aos ossos da sua vaidosa fogueira, esse mundo a que o fogo da velocidade deforma os sons”, isto também nos garante que aquela comoção com os mendigos é uma comoção consigo mesmo, própria de uma “raça de convulsionários, no centro de uma farsa de proporções cósmicas” (Cioran).
No fundo, todos sabem mais ou menos que o que pesa e nos corrói intimamente é a noção da coragem que exigem de nós as nossas convicções, pois a autenticidade de uma existência hoje consistirá na sua própria ruína. E é neste sentido que só já se pode escrever contra poesia, contra todos esses que se servem dos seus dons para camuflar a sua adesão. “Fazem a si mesmos uma promessa solene e aguardam um milagre que os tire deste abismo medíocre em que o destino os mergulhou. Mas nada acontece. Continuam todos a ser os mesmos”, vinca Cioran.
Vivemos assim um tremendo impasse em que alguns apenas se comprometem até certo ponto da vida, querendo ser dispensados de tantos aspectos, alegando que esta não é o seu elemento.
Recorrendo a uma compensação floral, Andreia C. Faria coloca as coisas nestes termos: “Penso no mundo como uma rosa de brilho desfeito, sem pulso, quebrada. Uma rosa que continuará muito além da minha morte./ A exausta proliferação da rosa – sou mais uma que lhe bebe do sujo relento, que a dedilha até ferir a carne. Acredito na carne, dou o flanco ao dedo inquisitivo, abro-me à velha fé desorbitada.”
Então, e depois o que vem a ser isso da carne? “A carne, crivo da memória, sedimento de fantasmas. A carne perfumada pelo sono, lembrada pela morte, cercada.” Assim vamos chegando àquele vazio das vidas sem objecto, de um coração demissionário e que nos enreda no brilho de uma estrela de farsa, iluminando este tempo demasiado embotado. O que resta? “O desejo de forçar a relação entre a linguagem e as coisas, de alimentar o escândalo dos nomes até que de novo seja possível falar”, escreve a poeta.
E este é o elemento mais poderoso deste livro, a sensação de estarmos diante de uma obra angulosa, vibrando de contradições, num mortífero debate já não com o mundo ao redor mas com o próprio peso, sentido e alcance das palavras. “Devia começar por esta palavra, ‘humano’, e tudo o que ela suscita. As palavras têm tonalidades, e a de humano é-lhe trazida pela proximidade sonora com húmus, húmido, ou pela rima com tutano. É uma palavra densa, fermentada no escuro, nascida entre as ervas, revolvida pelas minhocas e pelo nariz dos cães. Uma palavra desenterrada, apodrecida, cujo cheiro já não é possível ocultar.”
Este esforço de uma etimologização selvagem e que desvirtua para se reapropriar do sentido das palavras, deslocando-as para um efeito de bastardia e sedição, é uma promessa de algo radicalmente novo, de um esforço para desvirgar o idioma, retirá-lo a esta imobilidade, abrindo-o àquele elemento de agressão perpétua do imprevisível, das sugestões mais improváveis. E trata-se de uma promessa a que devemos agarrar-nos quando à nossa volta só vemos inspirações e ardores degradados. “É o estribilho de outro mundo que nos faz procurar linhas de fuga no espelho, que nos faz fumar cigarros às escondidas, à noite na varanda, sentindo a nossa solidão maior que a das estrelas. O corpo dói, os ossos crescem bruscamente como na tortura.”
Se isto nos permite reclamarmo-nos deste recreio do Vazio ao nosso redor, vendo-o como um sonho derramado pelo qual somos engolidos, se a libertação passaria agora por tomar essa vertigem como a nossa lei, levando-nos a envergar uma auréola subterrânea, uma coroa apropriada à nossa queda, assim nos libertaríamos desse equívoco em que vivem os criados, como nos diz Cioran – “e todos os homens que aderem ao tempo são criados”. “O nosso mal? Séculos e séculos de atenção ao tempo, de idolatria do devir.”
Em consequência, em lugar de águas profundas, de explorações realmente inquietantes, Andreia C. Faria assinala como tudo hoje se processa num espaço artificialmente iluminado e, por isso, não se desenvolvem os dons da cegueira. “Já não há cegueira, sombras, agora tudo cabe nesta luz de aquário entre o didactismo e a redenção. (…) Então adeus, velhos répteis do cérebro, adeus, veios de água nocturna. Já não há lugar para a falível e assombrada natureza humana, muito menos para a sua velha poesia. As pessoas já não querem essa poesia, essa que tira de ouvido o ritmo medonho da vida. A poesia agora tem de ser total, totalizante, tem de ser de todos ou de nenhum. Tem de estar ao nível do panfleto para não excluir ninguém, ao nível raso do cartaz. A poesia agora é um choro limpo igual ao samba, à raiva induzida das boas causas, às tardes de sábado na manifestação.”
Talvez alguma coisa mudasse se ficassem condenados realmente a lerem-se, como castigo, por uma eternidade uns aos outros. E só. Condenados a definharem nessa parasitária insistência sem lhes ser dada a possibilidade de recorrerem ao manancial da tradição, aos grandes rios que deixaram entre nós este tremendo lastro, pois de algum modo a falta de urgência e de radicalidade talvez se prenda com um certo fervor apocalíptico. Como nos diz Faria, “há uma grande beleza que as coisas deixam na terra ao desaparecerem”. De alguma forma, talvez a maior parte dos poetas estejam rendidos a esta noção da beleza que se mistura também a um culto pelos mortos (“A beleza é a marca da desigualdade entre os vivos e os mortos”…), a beleza como uma sombra que persiste entre nós em sinal “do que não existe, do que já não está, do que desapareceu”.
Vivemos enfartados entre as ruínas do passado, iludindo-nos com a ideia de que nomear a beleza, percebê-la sob o manto da devastação é quanto basta. Mas aqui está a poderosa inversão a que a poeta submete esta palavra.
Cesare Pavese anunciara algo em termos semelhantes: “Virá a morte e terá os teus olhos –/ esta morte que nos acompanha/ de manhã à noite, insone,/ surda, como um velho remorso/ ou um vício absurdo”… Já Andreia C. Faria, ao pressentir a vida que decai, que entra na penumbra, diz-nos como assim começam as insónias, sobressaltadas por “lembranças muito vívidas da morte”. Porque também a ausência virá sobre nós: “tenho uma névoa de dor nos ossos, a luz escassa de alguns cabelos brancos. Afasto-me de espelhos. Afasto enquanto posso o dano que chega com a maturidade, mas um dia terei de aprender. Um dia verei a beleza, os modos com que ela nos arrasa”.