O telefone tocou longamente mas não obtive resposta. Não é de admirar. Sven-Göran Eriksson tem vivido no centro de um furacão macabro desde que, no circunspecto inglês The Times, anunciou que talvez não tivesse mais do que um ano de vida, avassalado por um cancro no pâncreas. Enviei-lhe uma mensagem escrita e fiquei à espera de um sinal do lado de lá. Não tardou muito. Número privado e uma voz bem conhecida muito mais positiva e animada do que poderia esperar: “Hey, my friend! Still working in newspappers? But not in A Bola anymore, do you?” Não, Sven, claro que não! Esse é um sítio que se apagou de vez da minha vida para nunca mais ter regresso. E, no entanto, não admira que a questão tenha sido posta nestes termos, foi no tempo em que trabalhei em ABola que mais privei com o que foi, por duas vezes, treinador do Benfica, embora dois dos nossos últimos encontros pessoais tenham sido em Lisboa (no Estádio da Luz), em 2004, e em Gelsenkirchen (na Veltins-Arena), em 2006, quando eu era assessor da selecção nacional que, por duas vezes consecutivas, afastou a Inglaterra de Eriksson, primeiro do Europeu e, em seguida, do Mundial. Corria o dia 1 de Junho: fui ter com ele ao corredor que dava para as entradas dos balneários depois de ter ido entregar uma camisola do Figo ao Beckham que lha pedira durante o jogo. Fiquei ao lado dele, em silêncio. Nunca, em tantos anos, o vira tão profundamente frustrado. Depois quebrou o silêncio: “Afonso, esta é talvez a derrota mais dolorosa da minha vida”. E eu, que estava naturalmente feliz, sem saber o que dizer-lhe, sem saber como confortá-lo. Demos um shake-hands vigoroso, trocámos uma palmada no ombro, e seguimos o caminho do regresso para a vida que nos esperava. Nós para Munique e para a meia-final contra a França, ele para a Grande Ilha para lá da Mancha para finalizar a sua carreira como seleccionador inglês. Rodeado por uma turba de jornalistas sedentos de sangue após a sua terceira eliminação consecutiva nos quartos-de-final de uma grande competição – três vezes frente a Luiz Felipe Scolari, curiosamente –, limitou-se a ser o gentil-homem que sempre foi: “Queria ser julgado como um homem sério que fez o seu melhor”. Em cinco anos e meio no comando da equipa dos Três Leões perdeu três jogos oficiais. “A margem entre o sucesso e o fracasso é fina como uma lâmina”, disse-me uma vez. A vida deu-lhe razão. A vida, ou o que lhe resta dela, continua a dar-lhe razão.
Escrevo sobre alguém de quem gosto muito: nascido a 5 de Fevereiro de 1948, numa cidadezinha chamada Sunne, em Värmland, no centro da Suécia, entalada entre dois lagos, o Övre Fryken (Lago do Norte) e o Mellan-Fryken (Lago do Meio).Na sua biografia, Sven-Göran Eriksson – A Minha História, escrita a duas mãos com um prestigiado jornalista sueco, Stefan Lövgren, uma frase marca muito do que foi a vida de Sven: “Como é que um polido e discreto sueco, nascido na pacata província de Värmland, conseguiu chegar ao topo num meio dominado pelo dinheiro e por egocêntricos?”. Descobri a resposta a essa pergunta e a muitas outras que se encadearam nela: afinal fui eu quem traduziu o livro para português. É um livro triste. Eriksson, que foi um jovem cometa que encantou a Europa com uma equipa do Gotemburgo que venceu a Taça UEFA em 1982, batendo o Hamburgo na segunda-mão da final, na Alemanha, por 3-0, e que por um triz não voltou a ganhar a mesma prova no ano seguinte com o Benfica (perdeu a final frente ao Anderlecht, sendo em seguida contratado pela Roma), acabou por se desiludir com a vida e consigo mesmo. Nunca resistiu ao chamamento da beleza feminina. A sua primeira mulher, Anna, da qual teve os seus dois filhos, Johan e Lina, era uma senhora lindíssima. Mas Sven nunca estava satisfeito, a ponto de, já em Itália, ter começado um romance mediático com outra capa de revista chamada Grazziella. Nessa altura a sua carreira de treinador perdera o brilho. Chamavam-lhe Il Perdente Sucesso (O Perdedor de Sucesso). Mas o grande desastre feminino que teve de encarar foi Nancy del’Oglio, uma advogada e figura da alta sociedade romana. Apesar disso, de um dia para o outro, a sorte mudou de lado: foi campeão de Itália com a Lazio, venceu a última Taça das Taças, foi o primeiro estrangeiro a ocupar o cargo de seleccionador de Inglaterra.
“Portugal está sempre no meu coração”
Deixemos, para já, Sven e as mulheres. Estamos ao telefone. Falo-lhe de como em Portugal a notícia da sua doença foi encarada com mágoa. Noto um toque de comoção na sua voz geralmente pouco dada a revelar emoções: “Obrigado! Isso é muito próprio de vocês, portugueses. Sempre simpáticos! Portugal faz parte da minha vida! Trabalhei no Benfica cinco anos. Anos maravilhosos Com vitórias e títulos e finais europeias. E um público sempre fantástico. Vou ser sempre benfiquista. Cá dentro! Serei sempre!”.
Em 1983 eu ainda era um estudante de Direito que pouco estudava e me limitava a seguir uma tradição centenária da família. Eriksson chegara para mudar o futebol em Portugal. O seu Benfica jogava um futebol ofensivo e encantador, fosse contra quem fosse e em que campo fosse. Fui ao Estádio da Luz. Nesse tempo havia uma porta de ferro que dava para os balneários dos treinadores. Entrava-se na Luz como se num moinho. Bati, apareceu-me alguém, pedi para falar com Sven só porque queria saber o segredo do seu sucesso e do que conduziu a que uma geração de jogadores portugueses que parecia perdida voltasse a ter uma segunda oportunidade. E ele apareceu, sorridente, sem vaidades, disponível para aturar um garoto, e explicou-me, com aquela simplicidade das coisas realmente simples: “A qualidade dos jogadores portugueses é enorme. Mas, às vezes, parece que não acreditam em si próprios, que têm medo do fracasso. Precisam de saber correr riscos e perceber que são suficientemente bons para ultrapassarem os momentos maus e transformá-los em sucessos”. C’um catano!, diria o povinho – passaram-se 41 anos!!!
Uns anos mais tarde, o meu querido António Oliveira, Príncipe de Mogofores, o Toni, que foi certamente uma das pessoas que mais privou com Sven, contou-me: “Na primeira-mão da Taça UEFA, na Luz, tinha ele acabado de chegar ao Benfica, jogámos com o Bétis e ganhámos por 2-1. Resultado mau que nos deixou um bocado frustrados. Entrei no escritório no fim do jogo e o Eriksson estava a ler um fax da France-Presse, ou da LUSA, com os resultados todos do dia. Depois virou-se para mim e disse com toda a calma do mundo: ‘Estive aqui a ver as equipas que participam na prova e acho que temos uma boa chance de a ganharmos’. Pensei que ele era maluco. Isto é bem revelador da forma como encarava as dificuldades. Na segunda-mão, em Sevilha, estávamos a perder por 0-1 ao intervalo. Virou-se para os jogadores e disse simplesmente: ‘Se somos muito melhor equipa do que eles, se vocês são muito melhores jogadores do que os deles, por que não ganhamos este jogo?’. O Carlos Manuel e o Nené marcaram e vencemos por 2-1. Depois fomos por aí fora até à final”. Foi esse o segredo de Eriksson. O da mentalidade. Abandonar a ideia de pobrezinhos aos quais, como diria o outro, faltavam trinta metros para poderem medir-se com os melhores. Nos anos imediatos à chegada do jovem sueco de Sunne, o Benfica esteve presente nessa final da UEFA, o FC Porto chegou à final da Taça das Taças, e a Selecção Nacional esteve nas fases finais do Euro-84 e do Mundial-86 quando, até aí, 1966 fora o ano da única presença numa grande competição. Há coisas indiscutíveis porque entram pelos olhos dentro até de um amblíope. E o futebol português tem uma divida de gratidão para com Sven-Göran Eriksson. Que saiba respeitá-la enquanto é tempo.
Memórias repartidas de muitos anos…
Como aceitar sem doer esta maldição que caiu sobre uma pessoa que estimo muito e conheço há mais tempo do que duram algumas vidas? Não sei. Não sei mesmo. Sven-Göran Eriksson interrompeu a sua carreira em Itália em 1989 e veio para o Benfica durante três anos antes de voltar para a Sampdória e, depois, para a Lazio. Então já eu era jornalista, falávamos com frequência, acho que guardou com simpatia os momentos em que fui, por auto-recreação, bater-lhe à porta. Portugal permitiu-lhe retomar a relação familiar com a mulher e com os filhos mas por pouco tempo. No seu livro, reconheceu que veio encontrar um futebol português muito diferente: “Durante a minha ausência de cinco anos de Portugal, o futebol tornou-se mais sujo, mais corrupto. Havia muitos escândalos e muitas conversas sobre árbitros”. Desiludiu-se. Ainda conseguiu ser campeão e levar o Benfica a mais uma final da Taça dos Campeões, perdida para o Milan, mas na última época, apesar de ter concedido apenas duas derrotas oficiais, já estava de novo com a cabeça em Itália. Foi para a Sampdória, que investira muito dinheiro em jogadores como Mancini, Cerezzo, Vialli e Gullitt, e acabei por encontrá-lo pouco tempo depois quando fui ter com ele a Génova antes de uma eliminatória frente ao FC Porto para a Taça das Taças. Foi um reencontro por demais agradável. Voltara a ganhar alegria no trabalho e ainda tinha muito para desabafar sobre o futebol português que, basicamente, acabara de abandonar. A Sampdória passou às meias finais, depois de perder em casa por 0-1 e ganhar nas Antas por 1-0 (decisão nas grandes penalidades), estive em ambos os jogos, falámos, e ele deu-me a entender que havia de novo dificuldades na relação com os filhos, sobretudo com Lina, que sempre lhe foi rebelde, ainda por cima quando a mãe foi diagnosticada com cancro. Passou cinco épocas em Génova e não conseguiu ganhar nada mais do que uma Taça de Itália. Parecia que a sombra do fracasso o perseguia. Chegou a ter um acordo para dirigir o Blackburn, mas acabaria por assinar pela Lazio onde exigiu a companhia de Tord Grip, um dos seus mestres da juventude – descobri Tord uma vez nos montes da Ligúria a preparar em segredo uma equipa de sub-21 da Indonésia, mas essa é outra história. Em Roma formou uma squadra maravilhosa na qual cabiam os portugueses Fernando Couto e Sérgio Conceição, além de outros como Nedved, Vieri, Stankovic, Mancini, Nesta ou Mihailovic: levou os Biancocelesti ao segundo título de campeões da sua história após a proeza de 1973-74, ganhou a Taça e a derradeira Taça das Taças. Passou a ser Il Mítico!
“Gosto muito do Rui Costa”
Em Fevereiro de 2004, no Estádio do Algarve, houve um Portugal-Inglaterra amigável (1-1). Fui ter com ele à cabina inglesa quase como tinha acontecido em 1983. Ficou surpreso. “Nunca pensei que deixasse de escrever em jornais”, referiu. Nem eu, meu querido Mr. Eriksson, nem eu: foi um momento único e irrepetível em que vivi com os meus irmãos da equipa de Portugal uma alegria ímpar neste país sempre tão triste. Mas agora estou de volta às páginas. “Os adeptos do Benfica sempre demonstraram, e bem, carinho por mim. E o mesmo se passa comigo. Tenho um grande carinho pelos adeptos do Benfica, sempre maravilhosos, por isso desejo-lhes as maiores alegrias. Já há muito tempo que não falo com o Rui Costa, mas gosto muito dele”, diz do outro lado da ligação whatsapp, maravilha da tecnologia que nos garante conversas longas de graça de um lado para o outro do mundo. Bem, não é preciso exagerar. Vendo bem, Sven-Göran Eriksson não está assim tão longe, nem na distância e muito menos na memória. Aproprio-me aqui de outra conversa que tive com ele, noutro Campeonato do Mundo, o de 2010, na África do Sul, onde esteve expressamente para a fase final conduzindo a Costa do Marfim e cabendo-lhe, mais uma vez, defrontar Portugal, então em Port Elizabeth. Scolari já se fora, a maldição partira com o Felipão, se calhar. Carlos Queiroz era o seleccionador português, o jogo foi típico de um primeiro jogo de uma fase de grupos, acabou com um maçador empate a zero. Rui Costa, que Eriksson lançou como titular no Benfica e a quem deu o número 10, estava a caminhar firmemente como director-desportivo e com a ambição que sempre teve de ser presidente do clube pelo qual vive apaixonado. Sven perguntou-me por ele. E depois acrescentou: “Gosto muito dele como pessoa. Foi um jogador grandíssimo e sei que está a fazer um bom trabalho como dirigente. Tem tudo para ser um grande dirigente porque sabe tudo de futebol. Desejo-lhe a melhor sorte do mundo”. Depois, mais um shake-hands entre nós dois. À espera em que momento nos voltaríamos a cruzar pessoalmente. No futebol nunca se sabe, as coisas surgem surpreendentemente, não vale muito a pena entrar em cáculos. Às vezes ligava-lhe no dia dos anos, 5 de Fevereiro, só para uma palavra de indiscutível consideração. A última que me lembro estava ele no Leicester (acabei agora mesmo de apagar o seu número de telefone inglês que entretanto ficou mudo) e a caminho da China na tentativa de recuperar alguma da sua fortuna que um tal de Samir Khan geriu de forma a levá-lo à falência, roubando-lhe tudo o que pôde. No livro A Minha História, Eriksson que nunca ligou peva ao dinheiro que tinha e se preocupava bem mais com as mulheres que poderia ter – a sua ligação com Ulrika, funcionária da The Football Association, tornou-se um escândalo nos tabloides, quase tão grande como o do falso sheik, Mazher Mahmood, que não passava de um repórter do News of the World e gravou e publicou uma conversa telefónica com ele na qual Sven se mostrou disponível para largar de imediato a selecção inglesa por uma oferta milionária – arrepende-se amargamente de não saber nada sobre as suas contas, a ponto de, cinco ou seis anos após a separação, ainda andar a pagar o apartamento e o carro alugado de Nancy del’Oglio. Com o filho instalado no mercado oriental, acabou por ainda aceitar o cargo de seleccionador das Filipinas numa tentativa desesperada de regressar ao futebol e reconquistar a partir daí algum emprego minimamente interessante e relativamente bem pago.
A conclusão é quase metafórica: que vale o dinheiro para um homem capaz de dizer friamente que não lhe resta mais do que um ano de vida? Com a mesma frieza, ou pelo menos com uma capacidade de se distanciar desse ditame do destino e falar sobre ele sem que, como dizem os ingleses, lhe trema o lábio de cima. Sven-Göran Eriksson, um dos melhores treinadores e um dos homens mais polidos que tive o prazer de conhecer está pronto para o que vier. Voltar a conversar com ele foi um prazer enorme. Dia 5 de Fevereiro voltarei a ligar-lhe. Para lhe dar uma abraço à conta dos seus 76 anos.