Há uma consciência difusa de que estamos a entrar numa fase extrema de um processo “cujo fim não podemos prever com certeza, mas cujas consequências poderão ser catastróficas”, servindo-nos aqui das palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben, numa crónica publicada há pouco mais de uma semana. E se há um esforço hoje, e diante da instabilidade política que se vive por todo o mundo e também no nosso país, para manter uma reflexão crítica sobre os aspetos marcantes da nossa vida pública, escapando àquela tendência para um alheamento do destino político comum, o que, no entender de Eduardo Lourenço, sempre só poderia ser encarado como um sintoma de sonambulismo mental e ético, por outro lado, é difícil não se sentir atraiçoado logo de partida pelos termos com os quais se esgrimem os argumentos em confronto, recaindo estes tantas vezes em eufemismos ou trivializações. Assim, mesmo quando há uma vontade de assumir uma atividade autónoma de juízo, muitas vezes o que afasta tantos é essa perceção muito clara do quanto aqueles que se entregam à atividade política revelam, na verdade, uma menoridade intelectual e cívica confundindo-a com uma mera “participação verbal quotidiana e obsessiva, puramente imaginária ou glandular, nisso que abusivamente se chama ‘a vida política” e que é apenas o comentário gratuito e vão de um processo que de todo em todo escapa aos que o comentam” (E. Lourenço).
Na esfera pública mediática, há muito foi diagnosticado essa forma de degradação do discurso que passa pela devoração a que está sujeito por virtude do dramatismo e das afetações da opinião, esse regime de emoção induzida, de ostentação de um pathos sem substância. A substância é substituída pela guerra das virtudes, em que um conjunto de figuras se digladiam por meio de reações inflamadas, produzindo choques contínuos e fátuas demonstrações de virilidade ou vigor, e tudo isto se torna “a coisa mesma”, a própria substância da política. Assim, como nos diz Roberto Calasso, “a opinião encontra confirmação em si mesma, brota por si – a servidão tornou-se espontânea”.
Este ensaísta e prestigiado editor italiano, que morreu em 2021, notava como a totalidade da opinião constitui então um corpo, esse Grande Animal descrito num excerto memorável da República de Platão: “Cada um desses particulares mercenários, a quem o povo chama sofistas e considera seus rivais na arte, só ensinam as máximas que o próprio povo professa nas suas assembleias, e é a isso que eles chamam sabedoria; como se alguém, depois de ter aprendido a conhecer os impulsos e os desejos de um animal grande e forte, como se deve aproximar dele e tocar-lhe, quando e porquê se irrita e se acalma, os gritos que costuma emitir em cada ocasião, e qual o tom de voz que o acalma ou enfurece, depois de ter aprendido tudo isso durante muito tempo, lhe chamasse sabedoria, e, tendo-o sistematizado numa espécie de arte, embora sem saber ao certo quais desses apetites são belos ou feios, bons ou maus, justos ou injustos, e só aplicasse termos de acordo com os instintos do animal; dizendo que é bom o que lhe agrada, e mau o que o importuna, sem poder legitimar de outra forma essas qualificações; dizendo que é justo e belo o que é necessário, porque não viu e não é capaz de mostrar aos outros até que ponto a natureza do necessário difere, na realidade, da natureza do bom.”
Para Calasso, toda a rede das oposições que até hoje formavam a gramática e a sintaxe do pensamento foi usurpada pela opinião, que domina todos os regimes, sem perfil em todos os lugares e em nenhum, e “o excesso da sua presença é tal que permite apenas uma teologia negativa”. Assim o mais difícil é reconhecer quando se ultrapassou essa fronteira, como reconhecer o que não é opinião. Diz-nos Calasso que não nos podemos socorrer de nenhum mapa de opiniões, que a existir não teria qualquer utilidade, uma vez que “a opinião é acima de tudo um poder formal, um virtuosismo que aumenta constantemente, que ataca todos os materiais. A opinião troça de nós ao aceitar qualquer sentido, o que nos impede de a reconhecer pelas teses que apresenta (…), a opinião engole o pensamento e reprodu-lo em termos idênticos, apenas com ligeiras modificações”.
Estamos assim diante de uma forma de produzir juízos momentâneos, que se confundem com simples impulsos, e que sujeitam a gramática e a sintaxe de que nos servimos para enquadrar determinados aspetos ou fenómenos da vida política a uma tal volatilidade em que estamos no terreno de uma pura emoção, esvaziada de qualquer racionalidade.
Como lembra António Guerreiro, este mundo da opinião “é agonístico, isto é, alimenta-se das ilusões marciais, das virtudes heroicas, e imagina-se sempre em combate para dar provas de existência. Além disso, é quase exclusivamente reativo, parasitário e amplificador de ecos. Por isso mesmo é volátil e funciona por ondas que se formam, se agigantam e se desfazem em pouquíssimo tempo, até que uma nova onda recomeça”. Tudo recai assim num regime de maior ou menor agressividade moral, naquele sentido em que o ódio e o amor se esgrimem enquanto manifestações enganadoras, aproveitando-se de indícios ocasionais, e apenas para capturar o maior número de pessoas, gerando essas tendências coletivas em que podem exprimir-se os tais impulsos violentos reprimidos. Estas tendências são agravadas nas sociedades modernas em virtude do que Adorno denominava a “claustrofobia das pessoas no mundo administrado”, sendo este caracterizado como “rede densamente interconectada”. Basta pensar no regime pesporrente das redes sociais como um cenário que atualmente se sobrepõe a qualquer paisagem real, com os seus humores a dominarem uma imprensa que busca um reflexo e avalia o seu alcance pela distribuição que obtém dos seus artigos, ou os números de visualizações, tendo nós chegado a uma vertigem em que a quantidade impede qualquer revolta contra ela.
Robert Musil lembrava como um certo regime de agressividade moral permite essa “coerção literalmente fantástica de reagir ao próximo de uma qualquer forma veemente, derramar-se nele, ou destruí-lo, ou criar em relação a ele algumas constelações ricas em invenções interiores”. Este grande escritor austríaco nota que mesmo o imperativo categórico e aquilo que, desde ele, é tido como uma experiência moral específica, não é, no fundo, senão uma nobre intriga rabugenta visando o regresso ao sentimento. Ora, o que acontece é que aos poucos, e para satisfazer este desejo de conversão sentimental, o próprio mundo se vê convertido em fábula, isto de forma a que os seus signos possam ser manipulados sem oferecerem grande resistência, e usurpados por aqueles facínoras do bem e do mal que, num horror insonso perante a forma de um fenómeno, se recusam a tocar-lhe.
Assim, somos devolvidos à lição de Elias Canetti que explica a formação dos efeitos de massa pelo receio do contacto, pelo pavor de ser tocado pelo desconhecido. E ele refere como entre os fenómenos mais sinistros da história intelectual humana se encontra a fuga ao concreto. Deste modo, o regime da opinião serve como uma manifestação desse desejo de escapar ao confronto com tudo aquilo que nos cerca e exige de nós uma ação decisiva. “O balanço dos gestos exuberantes, o lado aventuroso e temerário das expedições a terras distantes enganam quanto aos motivos que lhes estão por detrás. Não é raro tratar-se, simplesmente, de evitar aquilo que está mais próximo, porque não estamos à sua altura. (…) Seria necessária muita tacanhez para condenar essa extravagância do espírito, embora, de vez em quando, ela resulte de manifesta fraqueza. Levou a um alargamento do nosso horizonte, de que estamos orgulhosos. Mas a situação da humanidade é hoje, como todos nós sabemos, tão séria que temos de nos voltar para aquilo que está mais próximo e é mais concreto. Nem suspeitamos sequer de quanto tempo nos resta para olhar de frente o mais penoso, e, no entanto, bem pode ser que o nosso destino dependa de determinados conhecimentos difíceis, que ainda não temos.”