A utor de obras de enorme sucesso como uma biografia fundamental de Estaline em dois volumes (A Corte do Czar Vermelho e O Jovem Estaline, ed. Alêtheia), uma história dos Romanov (também em dois volumes, ed. Presença) e uma biografia de Jerusalém (eds. Alêtheia e Crítica), Simon Sebag Montefiore traz-nos agora o seu mais ambicioso e abrangente livro, O Mundo – Uma História da Humanidade (ed. Crítica). Um pesado calhamaço de 1250 páginas (excluindo bibliografia e índice remissivo), onde se propõe revisitar todo o nosso passado, desde o aparecimento em África da «primeira criatura que caminhava ereta sobre os dois pés» até ao avanço dos tanques de Moscovo em direção a Kiev em fevereiro de 2022. O fio condutor é a família.
Nascido em Londres há 58 anos, Montefiore é ele próprio oriundo de uma família proeminente, contando-se entre os seus antepassados o riquíssimo banqueiro e filantropo judeu Sir Moses Montefiore (1784-1885). Estudou no famoso colégio de Harrow e ainda muito jovem trabalhou num kibbutz em Israel. Com 17 anos foi para a África do Sul. “Toda a gente andava obcecada com o apartheid e eu queria ver como aquilo funcionava”. Descobriu que o sistema começava “a abrir fissuras” e arranjou um emprego nas minas de ouro. “Foi uma grande aventura”, recorda.
Houve mais. Antes de assentar andou por toda a antiga União Soviética como correspondente de guerra. “Foi o período mais feliz da minha vida, mesmo não tendo dinheiro, carreira, nem família”, confidencia-nos.
Hoje tem tudo isso – e até amigos excecionalmente bem colocados, como é o caso do Rei Carlos III de Inglaterra. Sobre o monarca, diz apenas que «é uma pessoa muito interessante» e que o ajudou quando Montefiore estava a preparar o seu primeiro livro de história, escrevendo cartas para os diretores dos museus russos, o que lhe abriu as portas de todos os arquivos. «É maravilhoso ter bons amigos», resume o autor.
Já tinha visto muitos livros ambiciosos, mas creio que nenhum como o seu. É preciso coragem para se abalançar a uma obra destas – e talvez um pouco de megalomania.
Claro.
Como começou a ganhar forma esta sua história da humanidade?
Como muitos dos meus outros livros. Vou à procura de um livro e não o encontro porque ele não existe. E então decido escrevê-lo eu. Nunca ninguém usou este estilo para contar a história do mundo, até porque eu quis inventar algo diferente do que já foi feito. Tem toda a razão: é certamente ambicioso. É engraçado quando fala da megalomania, porque atravessei várias crises com dúvidas sobre se conseguia ou não fazer isto. Mas claro que o leitor não vê isso, só vê o produto acabado. A ideia é simplesmente combinar todo o arco da história do mundo com um olhar próximo da vida humana. Essa proximidade é o que normalmente falta às histórias do mundo, enquanto às biografias falta a abrangência. Tentei juntar as duas coisas pegando na família, que é uma forma muito simples mas muito ambiciosa de ligar tudo.
Estava a pensar que Kenneth Clark, por exemplo, quando escreveu Civilização, começou só no alvor da Idade Média, e restringe-se ao Ocidente. Mas você quis abarcar tudo, toda a história da humanidade e toda a geografia: o Norte e o Sul, o Ocidente e o Oriente.
Tentei ser o mais diversificado possível, verdadeiramente global, porque muitas das histórias do mundo de modo algum retratam o mundo todo. O meu objetivo era ter muita África, muita Ásia… Há três Ásias, a Ásia ocidental, a Ásia Oriental e a Ásia meridional – e eu queria ter mais Irão, mais Índia do que alguém uma vez teve uma história do mundo. E mais Áfricas – a África também não é só uma, há a África saariana, a África ocidental, a África central, a África meridional. Tudo isto tinha de estar presente, integralmente. Mas sempre fui uma pessoa estranha… O meu hobby em criança era ler livros como uma História da Etiópia. A história de Inglaterra nunca me interessou.
Por ser demasiado familiar?
Demasiado familiar e a maior parte dela demasiado banal. Foi por isso que, quando tinha sete ou oito anos, o meu pai me disse: ‘Devias escrever uma história do mundo’.
Assistimos a uma tendência para a especialização em todos os domínios, e isso verifica-se também na história, com os historiadores a escreverem sobre assuntos muito específicos. Com este livro quis ir deliberadamente contra isso?
Tem razão, toda a gente hoje se especializa em especializar-se, e uma das especializações é em história mundial. Não há universidade que não tenha o seu professor de história mundial, não há dia em que não seja publicado um livro de história mundial por um professor de história mundial. Na verdade, abracei uma nova especialidade um pouco estranha. Uma especialidade que não é uma especialidade.
É interessante que tenha escolhido a família como fio condutor do seu livro, numa altura em que a família está em crise. No Ocidente, pelo menos, as taxas de divórcio nunca foram tão altas, os casais têm cada vez menos filhos, há cada vez mais pessoas a viverem sozinhas. Escolheu a família como núcleo do seu livro em parte porque descende de uma família ilustre e sente que isso moldou a sua história pessoal?
Não, não tem nada a ver com isso. Acho simplesmente que a família permite uma abordagem interessante porque reflete toda a sociedade. Reflete a religião, reflete a medicina, reflete a ciência, reflete as estruturas políticas. É uma lente genial para olhar para tudo. E é uma lente familiar – literalmente – a toda a gente. Pode ser uma unidade política, uma unidade financeira, uma unidade social, uma unidade cultural. Por isso resulta na perfeição. Mas não, não tem nada a ver comigo, não me interesso especialmente pela minha família. Ela entra onde é relevante – e foi-o por três vezes no século XIX – mas tirando isso interesso-me mais pelas famílias dos outros.
Há uns anos publicou Titãs da História, que é um conjunto de breves biografias. Nesta história do mundo quis retratar as grandes forças mas sem perder de vista a importância do indivíduo?
Os Titãs é um bicho diferente, porque é mais uma antologia. É um livro de diversão, mais para miúdos ou para adultos lerem no banho. Ou então para aquelas pessoas que não leem livros grandes, não se interessam por aí além por literatura, só querem saber as coisas.
Então divide a história em pequenas doses…
É um bicho diferente deste, um livro de consulta, mas um bom livro de consulta.
Voltando à história do mundo, foi difícil harmonizar o grande e o pequeno? Um livro destes – qualquer livro, na verdade – torna-se enfadonho e esquemático se não tiver pormenor.
É verdade. O segredo é o equilíbrio entre os pormenores e a abrangência. Temos de tomar imensas decisões para que funcione: como ligar tudo, como entretecer tudo, decidir o que é e o que não é importante. Há um milhão de decisões a tomar. Eu queria que tudo tivesse frescura, e abordei as coisas para as apresentar de uma forma que fosse fresca. Nem sempre isso é mostrado ao leitor, porque não quis entrar em polémicas historiográficas, mas tentei sempre novas abordagens.
Mas consegue-se ter uma nova abordagem quando já milhares de pessoas escreveram sobre o assunto – seja o Antigo Egipto, Roma ou Napoleão?
Sim, por exemplo, no caso de Napoleão, trato-o como os três Napoleões. Ninguém tinha feito isso antes. Porque quando os líderes são derrubados, como Napoleão ou o Xá do Irão, toda a gente escreve a história retrospetivamente, e diz coisas como ‘tinha o destino traçado’, ‘foi sempre um inútil’…
Porque já sabemos como as coisas se passaram.
Mas a verdade é que estamos a falar de duas figuras que foram incrivelmente bem-sucedidas – até deixarem de o ser. Por isso eu trato-os de forma muito diferente do que é habitual.
Heráclito disse que nunca podemos atravessar o mesmo rio duas vezes – ou, segundo outra versão, «não podemos banhar-nos duas vezes na água do mesmo rio». Hegel disse que a história se repete. E Marx acrescentou: «A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa». Quem tinha razão? Heráclito ou Hegel e Marx?
Heráclito tem sempre razão. Porque é sempre tudo novo. Hegel e Marx eram muito espertos, muito espirituosos. Mas não é verdade que a história se repita. Napoleão I e Napoleão III eram ambos pessoas pouco sérias. Mas um não foi especialmente uma tragédia nem o outro especialmente uma farsa [como escreveu Marx no ensaio O 18 Brumário de Luís Bonaparte], ambos tinham características próprias.
Mas quando olhamos para os fracassos da invasão da Rússia, primeiro por Napoleão, em 1812, depois por Hitler, em 1941, podemos tender a pensar que a história se repete.
Mas não se está a repetir. Também podíamos falar da invasão da Rússia por Carlos XII da Suécia [que foi bem sucedida]. É da própria natureza da Rússia ser ‘invadível’, porque não tem fronteiras. E também foi invadida várias vezes pelo Leste. A estepe eurasiática é eminentemente ‘invadível’ mas quase impossível de conquistar.
Há algumas semanas, um grupo de astrónomos fez uma petição para rebatizar duas galáxias, as Nuvens de Magalhães. Alegam que Fernão de Magalhães foi um ‘colonialista violento’ e por isso não deve ter o seu nome inscrito nos céus. Não é um pouco ingénuo pensar que a história se pode fazer sem violência?
É completamente ingénuo. Temos de evitar essa ideia idiota de querermos ser os grandes justiceiros, que é uma praga que impede de escrever história a sério. E está a substituir uma abordagem antiquada, que é conceber a história como uma espécie de lengalenga infantil de heróis e vilões, por um novo conjunto de heróis e vilões. Mas é igualmente imbecil, e má história.
Você já escreveu livros sobre Jerusalém, sobre os Romanov, sobre Estaline. É mais excitante escrever sobre períodos de fome, de guerra, de catástrofe, do que sobre períodos de paz e prosperidade?
Claro. Foi por isso que nunca escrevi uma história da Grã-Bretanha ou uma história das estâncias balneares britânicas. Porque me interesso pelo dramatismo da existência humana. É sobre isso que quero escrever. Outras pessoas podem escrever sobre políticas industriais no Norte, por exemplo. É por isso que esses temas que referiu me assentam tão bem, porque me entusiasmam. Eu só escrevo livros de história que eu próprio gostaria de ler. Este está cheio de sexo e grandeza. Mas também está cheio de citações de grandes obras de literatura e celebrações da poesia, da arte, da música. É para essas coisas que eu vivo. Penso que o livro me reflete um pouco – e até nessa megalomania…
Espero não o ter ofendido quando falei nisso…
Eu sou ‘inofendível’.
Há poucos dias acabei de ler um livro sobre o Antigo Egipto. E antes desse li um sobre os últimos dias da aristocracia russa. E tinham uma coisa em comum, sabe o quê? Comentários seus, elogiosos, na contracapa. Imagino que escreva muitas críticas de livros.
Costumava escrever muitas críticas, e fazer pequenos comentários. E tentava ser generoso para toda a gente. Na altura lia tudo o que saía e quando se lê tudo é muito fácil escrever críticas. Mas deixei de fazer isso, porque agora já não leio muitos livros de história.
Não? Porquê?
Cheguei a um ponto de exaustão, e agora estou apenas a desfrutar.
Mas deve ter sido extremamente útil.
E foi. Eu era como um canibal, andava sempre à procura dos corpos das outras pessoas para os comer e pôr nos meus livros.
A população mundial está nos oito mil milhões de pessoas, e continua a crescer. Isso parece-me uma prova do nosso sucesso enquanto espécie. Acha que a humanidade está a ir no bom caminho? As coisas têm tendência para melhorar ou para piorar?
Nem para melhorar nem para piorar. Quando as pessoas falam de progresso, obviamente beneficiamos de avanços técnicos e científicos e os números da população refletem isso, o que parece positivo. O último século e meio assistiu a um sucesso exponencial, a uma conquista, um triunfo sobre o mundo, algo que nunca se tinha visto. Falo de algumas dessas coisas no livro – da medicina, da ciência, de métodos agrícolas, por aí fora. Sim, vivemos num tempo extraordinário. E, apesar do que está a acontecer na Ucrânia e no Médio Oriente, estranhamente este é o melhor período da história humana para estar vivo. Mesmo com as coisas terríveis que estão a acontecer.
Quer dizer, desde que tenhamos a sorte de estar no sítio certo…
Sim, tem de se nascer no sítio certo. Depende muito do acaso geográfico. Mas houve épocas em que havia muito poucos ‘sítios certos’. Costumava haver grandes fomes, e hoje, em parte graças à ciência e à agricultura, são muito menos frequentes. De uma forma geral, é um bom momento para estar vivo.
Embora eu suspeite que estejamos a ficar demasiado confortáveis. Não poderá ser um risco haver tantas facilidades?
Uma parte estranha da natureza humana é que as pessoas precisam de emoção, precisam de luta, precisam de guerra. O facto de a vida se ter tornado tão confortável na nossa época, e é por isso que chamo aos nossos países ‘democracias do conforto’, julgo que tirou a tensão das lutas pelos ideais liberais democráticos. E as pessoas foram à procura da emoção da luta noutras partes, por exemplo atacando as próprias democracias, o que pode ser catastrófico para todos nós.
Referiu essa necessidade de luta e de emoção. O facto é que muitas pessoas vivem com todo o conforto e são profundamente infelizes, enquanto outras passam por enormes dificuldades e sentem-se felizes.
Quando era mais novo fui correspondente de guerra. Não tinha carreira, dinheiro, família, nada. E foi uma época de grande sofrimento para muita gente, durante a queda da União Soviética. Eu tinha vinte e poucos anos e estava lá por minha conta. Foi a altura mais feliz da minha vida, porque me sentia em queda livre num momento fascinante de desagregação histórica.
Esteve em Moscovo?
Estive em toda a parte. Na Ásia Central, no Cáucaso, nos países Bálticos, na Ucrânia. Só não fui à Sibéria.
Nas livrarias e bibliotecas temos prateleiras e prateleiras cheias de livros de história do século XX.
É fascinante, não é?
Deve ser muito difícil para alguém que escreve um livro como o seu evitar uma certa distorção, uma vez que, pelas leis da perspetiva, o que está próximo de nós parece muito maior do que aquilo que está distante. Mas também por causa de todos os acontecimentos do século XX. Tinha essa noção presente quando escreveu?
Sim, tinha essa noção, mas não o vejo como uma distorção, até porque em nenhuma outra época houve tantos seres humanos sobre os quais escrever.
Sim, e esse aumento da população também provoca uma aceleração dos acontecimentos.
Tudo acontece mais depressa. Há mais pessoas, mais material à disposição do historiador. E as pessoas estão a fazer mais coisas a todos os níveis. Por isso sempre vi este livro como um triângulo invertido. Por um lado, porque há muito pouca história no início, e por outro porque haver tão poucos seres humanos, o que faz com que haja muito pouco material. À medida que o tempo avança, vai-se alargando, primeiro com a abertura do mundo por Portugal e daí em diante. Obviamente, numa época em que temos 8 mil milhões de pessoas, há muito mais para escrever do que numa época em que há 70 mil. Por isso é que dedico muito mais páginas aos últimos séculos do que aos primeiros. Mas não vejo qualquer problema nisso.
Simon Sebag Montefiore. ‘Este é o melhor período da História para se estar vivo’
A história de Inglaterra pareceu-lhe sempre ‘demasiado banal’ e por isso, quando tinha oito anos, o pai disse-lhe que devia escrever uma história do mundo. Cumpriu esse desígnio meio século depois, com algumas crises pelo meio. O resultado é um livro de 1250 páginas, tomando como fio condutor a família.