Uma borracha na cidade

Existe uma mão invisível que segura numa borracha e vai apagando a história de Lisboa.

Querida avó,

Ia tomar um café na Rua Tomás Ribeiro. O espaço que frequentava há décadas é agora um restaurante de “Ramen”, imagina. Subo até à Av. da República com o intuito de te comprar um lenço, na Casa Xangai, para usares com o teu casaco novo.

Fiquei pela intenção. Pasma-te! A Casa Xangai encerrou. A derradeira proprietária foi a neta do fundador da casa, que funcionou durante 70 anos. Mais uma Loja com História que fecha. Vou sentir falta do seu magnífico letreiro verde e das inconfundíveis cortinas que cobriam a montra. Coisas que já fazem já parte das nossas memórias.

Por falar em memórias, não é que a loja “A Vida Portuguesa” (que existia no Chiado) também fechou. Cada vez que ia a esta loja era como entrar numa máquina do tempo que, através dos artigos expostos, nos levava numa viagem às memórias de infância e das casas dos nossos avós.

A centenária Livraria Ferin, a segunda mais antiga de Lisboa, também fechou portas por não ter conseguido superar as dificuldades financeiras dos últimos anos.

A Casa Chineza, depois de 157 anos de atividade, também chegou ao fim. Era onde eu tomava café sempre que ia à Baixa. Vendiam as melhores queijadas da Madeira, em Lisboa. As saudades que vou ter de ver os folares e outros bolos e salgados nas montras.

Ouvi dizer que o prédio vai ser um Hotel. Decidi que este ano não me ausento de casa mais do que uma semana. Caso contrário arrisco a ter a casa convertida num AL e alguém a dormir na minha cama.

Precisamos mesmo de dez lojas de pastéis de nata na mesma rua? Precisamos ter em cada esquina uma loja daquelas que tem a cabeça de uma vaca espetada na montra?

Existe uma mão invisível que segura numa borracha e vai apagando a história de Lisboa.

Resta-nos escrever para perpetuar estas memórias!

Bjs

Querido neto,

Não me digas nada! Percebes agora porque me sinto tão triste sempre que vou a Lisboa. Cada vez tenho menos referências de locais que frequentei a vida toda. Às vezes ponho-me a pensar em sítios e cafés de Lisboa que foram tão importantes quando eu era criança – e que agora não existem, ou estão transformados noutras lojas e ninguém se recorda o que elas eram e a importância que tiveram aí pelo princípio dos anos 50.

Podia falar de lojas como os Porfírios, o José Alexandre, o Grandela, e tantos outros – mas aquele que lembro melhor e me faz mais falta é a Leitaria Persa, no Rossio, e fiquei logo muito zangada quando, há anos, ela se transformou numa loja de objectos para turistas.

Na Leitaria Persa conspirava-se para derrubar a ditadura. Claro que as conspirações nunca davam em nada – mas continuavam sempre.

Foram as primeiras conspirações em que – sem saber – eu participei. O meu tio era um desses conspiradores. Para a polícia não perceber, levava-me sempre com ele, que assim parecia apenas ser um senhor (avô? tio?) muito amigo da menina que levava com ele…

E eu adorava estar ali!

Sentavam-me em cima do balcão, todas as pessoas que entravam achavam-me muita graça e enchiam-me os bolsos de chocolates e rebuçados, o dono também gostava porque fazia negócio. Lembro-me que um dia entrou na leitaria um casal americano e pediu cerveja. Naquela altura nenhum empregado de leitaria sabia falar outra língua para além do português (e mesmo esse…) e ficaram a olhar para o casal sem saberem o que fazer. Mas eu falava inglês desde muito pequenina, e disse ao empregado o que é que eles queriam.

Bom, o casal americano gostou tanto e mim, beijocaram-me, fizeram-me festas, e deram-me uma moeda de um dólar – que ainda hoje guardo em minha casa, e digo sempre que foi o primeiro trabalho remunerado que fiz na minha vida.

Percebes agora por que tenho tantas saudades da Leitaria Persa?

Bjs